São Paulo, sábado, 13 de abril de 2002

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Sentimento de identidade

Leia trecho de um livro inédito do crítico literário Antonio Candido sobre o romantismo brasileiro

O Romantismo no Brasil
Antonio Candido Humanitas (Tel.0/xx/11/3091-4589) 106 págs., 15,00

ANTONIO CANDIDO

No Brasil o Romantismo foi responsável por uma notável difusão da poesia, mas é preciso completar dizendo que atuação parecida teve o romance, gênero relativamente informe por comparação, escrito muitas vezes de maneira mais próxima à fala e requerendo menos informação para ser apreciado. A literatura de tradição clássica exigia um mínimo de conhecimentos, pois quem ignorasse a mitologia e a história da Antiguidade não poderia penetrar adequadamente no código literário básico; sem falar na necessidade de conhecer um pouco as regras estritas que comandavam cada gênero, visto como a apreciação dependia da possibilidade de aferir a fidelidade dos textos em relação a elas.
Mas o Romantismo puxou a literatura para temas e paisagens locais, usando linguagem mais natural, aproximada dos usos linguísticos, embora o correr do tempo a faça parecer afetada para nós. O homem comum ficava à vontade quando lia numa péssima ficção de Joaquim Norberto, ou num bom romance de Alencar, que os figurantes passeavam na floresta da Tijuca, andavam pela praia do Flamengo e trabalhavam na rua do Ouvidor. Nos poemas, ouviam falar do conhecido sabiá, compreendiam as alusões às "virgens morenas" e acomodavam bem o ouvido aos ritmos parecidos com o das letras de modinha. Não precisavam ter em mente o que fora a Batalha de Salamina nem conhecer o significado de Terpsícore; muito menos saber que Febo era o sol e Cronos o tempo. Sob este aspecto, as diferentes formas de particularização foram importantes como fator de democratização da literatura, inclusive atenuando um pouco o abismo que antes separava a literatura erudita da literatura popular. Foi como se cada um pudesse encontrar mais facilmente nos textos, que muitas vezes eram ouvidos, com ou sem música, uma linguagem mais apta a exprimir o mundo em que vivia e os sentimentos que os animavam.
Importante nesse sentido foi a passagem da oralidade de salão e academia, típica do arcadismo, para a oralidade de teatro, comício, reunião política -coisas novas no Brasil, culminadas pelo movimento abolicionista, que pôs os poetas, oradores, jornalistas em contato intenso com o povo. Sendo mais acessível, a literatura do tempo do romantismo pôde popularizar-se mais e dar voz aos que não tinham meios de exprimir-se em nível erudito.
Por isso ela contribuiu para a idéia que o brasileiro ia formando de si mesmo, ou seja, para o sentimento de identidade, por meio de mecanismos que ampliaram e tornaram mais comunicativa a mensagem. Ao mesmo tempo, implantou a noção ideologicamente importante que a nossa produção literária era própria, -e isso faz pensar no problema, hoje sem interesse, mas importante no pensamento crítico até bem pouco, de saber até que ponto o que se fazia aqui era reflexo ou criação. Pensando sobretudo na poesia, para simplificar, é possível dizer que o relacionamento da literatura brasileira do romantismo com as literaturas matrizes da Europa pode ser sugerido por meio do estudo de três processos, implícitos na fatura dos textos, que podem ser denominados, de maneira aproximativa, transposição, substituição e invenção.
A transposição consiste em passar para o contexto brasileiro as expressões, concepções, lendas, imagens, situações ficcionais, estilos das literaturas européias, numa apropriação (perfeitamente legítima) que se integra e dá ao leitor a impressão de alguma coisa que é muito nossa, e ao mesmo tempo faz sentir a presença das raízes culturais. No poemeto "Juvenília", de Fagundes Varela, a atmosfera encantada de magia é obtida por meio de um arsenal que exprime outros contextos: "pérola de Ofir", "fada", "silfo". Mas como isso é expresso numa tonalidade sentimental que nos habituamos a considerar como própria, os elementos transpostos funcionam ao modo de ingredientes de um universo familiar, o que não surpreende se considerarmos que, apesar das alegações rituais do nacionalismo literário mais extremado, a nossa cultura dominante é a mesma que gerou aquelas imagens e entidades.
Por isso, em gerações anteriores, Silva Alvarenga transpusera esquemas estróficos e rítmicos tomados a Paolo Rolli e Metastasio para elaborar os seus melodiosos rondós, que sempre pareceram corresponder ao que há de mais autêntico na sensibilidade brasileira. Mas há casos em que a transposição parece inassimilável, como quando Bernardo Guimarães coloca flocos de neve nas árvores de certas paisagens de seus versos, sabendo-se que a sua experiência se refere à natureza tropical. No entanto, eles acabam funcionando, porque evocam a paisagem dos países de onde nos veio a civilização e que, portanto, a imaginação dos brasileiros incorpora como parte de um patrimônio que afinal de contas está nas suas raízes.
A substituição é um processo mais profundo do ponto de vista da linguagem e da interpenetração cultural. Nele, o escritor brasileiro põe de lado a terminologia, as entidades, as situações da literatura européia e as substitui por outras, claramente locais, a fim de que desempenhem o mesmo papel. Por exemplo: substituem o cavaleiro pelo índio, o fidalgo pelo fazendeiro, o torneio pela vaquejada, como se pode ver em "O Sertanejo", de José de Alencar.
Assim, na introdução ao poema "Os Timbiras" o gosto pelas ruínas é substituído pela descrição da aljava rota que pende dos ombros do índio vencido e vai deixando cair as flechas inúteis, simbolizando o fim da sua sociedade.



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