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Sentimento de identidade
Leia trecho de um livro inédito do crítico literário Antonio Candido sobre o romantismo brasileiro
O Romantismo no Brasil
Antonio Candido
Humanitas
(Tel.0/xx/11/3091-4589)
106 págs., 15,00
ANTONIO CANDIDO
No Brasil o Romantismo foi responsável por uma notável difusão da poesia,
mas é preciso completar dizendo que
atuação parecida teve o romance, gênero
relativamente informe por comparação,
escrito muitas vezes de maneira mais
próxima à fala e requerendo menos informação para ser apreciado. A literatura
de tradição clássica exigia um mínimo de
conhecimentos, pois quem ignorasse a
mitologia e a história da Antiguidade não
poderia penetrar adequadamente no código literário básico; sem falar na necessidade de conhecer um pouco as regras estritas que comandavam cada gênero, visto como a apreciação dependia da possibilidade de aferir a fidelidade dos textos
em relação a elas.
Mas o Romantismo puxou a literatura
para temas e paisagens locais, usando linguagem mais natural, aproximada dos
usos linguísticos, embora o correr do
tempo a faça parecer afetada para nós. O
homem comum ficava à vontade quando
lia numa péssima ficção de Joaquim Norberto, ou num bom romance de Alencar,
que os figurantes passeavam na floresta
da Tijuca, andavam pela praia do Flamengo e trabalhavam na rua do Ouvidor.
Nos poemas, ouviam falar do conhecido
sabiá, compreendiam as alusões às "virgens morenas" e acomodavam bem o ouvido aos ritmos parecidos com o das letras de modinha. Não precisavam ter em
mente o que fora a Batalha de Salamina
nem conhecer o significado de Terpsícore; muito menos saber que Febo era o sol
e Cronos o tempo. Sob este aspecto, as diferentes formas de particularização foram importantes como fator de democratização da literatura, inclusive atenuando um pouco o abismo que antes separava a literatura erudita da literatura
popular. Foi como se cada um pudesse
encontrar mais facilmente nos textos,
que muitas vezes eram ouvidos, com ou
sem música, uma linguagem mais apta a
exprimir o mundo em que vivia e os sentimentos que os animavam.
Importante nesse sentido foi a passagem da oralidade de salão e academia, típica do arcadismo, para a oralidade de
teatro, comício, reunião política -coisas
novas no Brasil, culminadas pelo movimento abolicionista, que pôs os poetas,
oradores, jornalistas em contato intenso
com o povo. Sendo mais acessível, a literatura do tempo do romantismo pôde
popularizar-se mais e dar voz aos que não
tinham meios de exprimir-se em nível
erudito.
Por isso ela contribuiu para a idéia que
o brasileiro ia formando de si mesmo, ou
seja, para o sentimento de identidade,
por meio de mecanismos que ampliaram
e tornaram mais comunicativa a mensagem. Ao mesmo tempo, implantou a noção ideologicamente importante que a
nossa produção literária era própria, -e
isso faz pensar no problema, hoje sem interesse, mas importante no pensamento
crítico até bem pouco, de saber até que
ponto o que se fazia aqui era reflexo ou
criação. Pensando sobretudo na poesia,
para simplificar, é possível dizer que o relacionamento da literatura brasileira do
romantismo com as literaturas matrizes
da Europa pode ser sugerido por meio do
estudo de três processos, implícitos na fatura dos textos, que podem ser denominados, de maneira aproximativa, transposição, substituição e invenção.
A transposição consiste em passar para
o contexto brasileiro as expressões, concepções, lendas, imagens, situações ficcionais, estilos das literaturas européias,
numa apropriação (perfeitamente legítima) que se integra e dá ao leitor a impressão de alguma coisa que é muito nossa, e
ao mesmo tempo faz sentir a presença
das raízes culturais. No poemeto "Juvenília", de Fagundes Varela, a atmosfera encantada de magia é obtida por meio de
um arsenal que exprime outros contextos: "pérola de Ofir", "fada", "silfo". Mas
como isso é expresso numa tonalidade
sentimental que nos habituamos a considerar como própria, os elementos transpostos funcionam ao modo de ingredientes de um universo familiar, o que não
surpreende se considerarmos que, apesar
das alegações rituais do nacionalismo literário mais extremado, a nossa cultura
dominante é a mesma que gerou aquelas
imagens e entidades.
Por isso, em gerações anteriores, Silva
Alvarenga transpusera esquemas estróficos e rítmicos tomados a Paolo Rolli e
Metastasio para elaborar os seus melodiosos rondós, que sempre pareceram
corresponder ao que há de mais autêntico na sensibilidade brasileira. Mas há casos em que a transposição parece inassimilável, como quando Bernardo Guimarães coloca flocos de neve nas árvores de
certas paisagens de seus versos, sabendo-se que a sua experiência se refere à natureza tropical. No entanto, eles acabam
funcionando, porque evocam a paisagem
dos países de onde nos veio a civilização e
que, portanto, a imaginação dos brasileiros incorpora como parte de um patrimônio que afinal de contas está nas suas
raízes.
A substituição é um processo mais profundo do ponto de vista da linguagem e
da interpenetração cultural. Nele, o escritor brasileiro põe de lado a terminologia,
as entidades, as situações da literatura européia e as substitui por outras, claramente locais, a fim de que desempenhem
o mesmo papel. Por exemplo: substituem
o cavaleiro pelo índio, o fidalgo pelo fazendeiro, o torneio pela vaquejada, como
se pode ver em "O Sertanejo", de José de
Alencar.
Assim, na introdução ao poema "Os
Timbiras" o gosto pelas ruínas é substituído pela descrição da aljava rota que
pende dos ombros do índio vencido e vai
deixando cair as flechas inúteis, simbolizando o fim da sua sociedade.
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