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Identidade
No mesmo sentido, o poeta declara que não quer mais se inspirar na fonte Castália nem subir ao
Parnaso, mas, encostado num
tronco de palmeira, tenciona traduzir a melodia selvagem dos ventos, que são a voz de uma outra
realidade.
Ao fazer isso, não deseja como
prêmio a coroa clássica de louros,
mas outra, feita de flores brasileiras, que já mencionamos antes
neste escrito. Em tal caso, a situação épica e os moldes de composição permanecem ajustados à prática das literaturas matrizes, mas
os temas e as imagens foram substituídos, de maneira a produzir
uma espécie de duplicação, que
corresponde ao novo mundo natural e cultural.
Podemos falar em invenção
quando o escritor parte do patrimônio europeu para criar variantes originais, como ocorre num
poema de Álvares de Azevedo,
"Meu Sonho", no qual ele fecunda
o modelo da balada macabra de tipo alemão (como a "Lenora", de
Bürger), deformando-o a fim de
obter algo diferente. A balada se
caracteriza, pelas suas próprias
origens populares, por ser uma
narrativa sobre personagens exteriores ao poeta; mas a de Álvares
de Azevedo descreve o drama interior, elaborando imagens que
projetam as tensões do ser, de modo a resultar um tipo novo de
composição poética. Essa transformação de um gênero narrativo
em gênero intimista pode ser considerada invenção, que todavia
não apaga o laço orgânico em relação às literaturas da Europa, das
quais (nunca é demais repetir
quando se fala do romantismo
com a sua forte componente nativista) a brasileira é um ramo.
Estas indicações permitem
compreender certas ilusões do nacionalismo romântico, cujo programa era demonstrar a autonomia e originalidade da literatura
brasileira, menores na verdade do
que alegavam as formulações.
Mas naquele momento de independência recente era estrategicamente oportuno minimizar o vínculo com as literaturas matrizes,
mesmo sendo preciso usar para
isso uma espécie de farisaísmo patriótico, pois os escritores continuavam normalmente imitando e
citando os modelos europeus, assim como as modas passavam de
lá para cá.
É preciso distinguir, portanto, as
afirmações programáticas e a realidade estética, para perceber que
o nacionalismo romântico foi historicamente importante, mas tinha muito de ilusório.
Neste sentido, convém levar em
conta o fenômeno da auto-sugestão, segundo a qual os brasileiros
consideram frequentemente específico o que era genérico, ou,
por outras palavras, consideravam "tipicamente nosso" o que
vinha de empréstimo, mas se incrustava tão normalmente em
nossa sensibilidade, em nossos
automatismos e ilusões, que parecia ter nascido aqui. Não é raro os
críticos do século 19, e mesmo do
20, apontarem como "autenticamente brasileiros" ritmos oriundos da poesia italiana, imagens da
poesia portuguesa, concepções
francesas de narrativa. Todos esses são fatos normais e legítimos
de difusão cultural que nada têm a
ver com a melhor ou pior qualidade, ou com o significado dos textos, pois, repito, somos parte da
mesma civilização, trazida inteira
pela conquista e modificada segundo as vicissitudes do nosso
destino histórico. No que concerne aos níveis eruditos da literatura, essa modificação nunca alterou os núcleos essenciais, e as contribuições importantíssimas do
índio e do negro se revelaram decisivas sobretudo no domínio da
cultura popular, que escapa ao objetivo deste escrito.
Foi, portanto, por meio de empréstimos ininterruptos que nos
formamos, definimos a nossa diferença relativa e conquistamos
consciência própria. Os mecanismos de adaptação, as maneiras
pelas quais as influências foram
definidas e incorporadas é que
constituem a "originalidade", que
no caso é a maneira de incluir em
contexto novo os elementos que
vêm de outro.
Para terminar, vejamos um
exemplo pitoresco, que talvez ajude a esclarecer o assunto. A bandeira brasileira foi, desde a Independência, um retângulo verde
com um losango amarelo inscrito,
que a princípio tocava as bordas;
no centro havia as armas imperiais, que depois da República foram substituídas pela esfera azul
estrelada com a inscrição positivista "Ordem e Progresso" na faixa branca.
Aprende-se na escola e ouve-se
depois pela vida afora nos discursos patrióticos que ela simboliza a
nossa realidade natural: o verde
representaria as riquezas vegetais,
encarnando a "verdura sem par
dessas matas" (diz Olavo Bilac no
"Hino à Bandeira"); o amarelo representaria as riquezas minerais,
encarnadas no ouro. Não se explicava o desenho, único entre os das
bandeiras do mundo, mas talvez
se pensasse que fosse invenção local, realçando o cunho inventivo
do conjunto, ao engastar a riqueza
na natureza.
Mas a verdade é diferente. Depois da Independência, dom Pedro 1º encomendou o risco da
bandeira da jovem nação ao pintor Debret, membro da Missão
Francesa de artistas, vinda em
1816, recomendando que usasse a
cor heráldica da Casa de Bragança, verde, e o amarelo, cor heráldica dos Habsburgos, família da imperatriz. Nada, portanto, de galas
e opulência do Brasil. E o desenho? Acho certo que Debret o tenha copiado do que aparece em
certas bandeiras militares do seu
país no tempo da Revolução Francesa e de Napoleão. Ele consistia
em transformar a faixa branca
central da bandeira tricolor num
grande losango, onde se podiam
inscrever a designação da unidade
e outros dizeres. É o que se vê em
quadros da era napoleônica, como o de David, existente no Museu de Versalhes, que representa o
recém-coroado imperador arrivista recebendo o juramento de fidelidade das suas tropas.
Este exemplo mostra um caso
de redefinição, típica do nosso
processo cultural: elementos tradicionais da heráldica européia
alusivos aos jovens soberanos e
manipulados segundo um esquema francês, foram reinterpretados
pela imaginação coletiva e passaram a representar a nossa realidade. Segundo os termos usados há
pouco, seria possível dizer que a
fisionomia e o significado da bandeira nacional se formaram a partir de transposições, substituições
e invenções, que deram ao brasileiro a idéia de que simbolizavam
o que temos de mais próprio.
Pensemos um pouco nesse contraponto das duas leituras do nosso "auri-verde pendão" para avaliarmos o nacionalismo romântico, que orientou a marcha de uma
literatura ao mesmo tempo própria e comum, porque correspondeu à essência de uma cultura nutrida de transposições, que soube
acompanhar a diferenciação da
sensibilidade local.
Nota
"O Romantismo no Brasil", a ser lançado
em breve pela ed. Humanitas, foi escrito
como capítulo de uma obra em quatro
volumes, organizada por Luciana
Stegagno Picchio, com o título de "Storia
della Civiltà Letteraria Portoghese", que
será publicada pela Passagli Editora, de
Florença.
Antonio Candido é crítico literário, autor, entre outros livros, do clássico "Formação da Literatura Brasileira" (Itatiaia)
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