São Paulo, sábado, 13 de abril de 2002

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Identidade

No mesmo sentido, o poeta declara que não quer mais se inspirar na fonte Castália nem subir ao Parnaso, mas, encostado num tronco de palmeira, tenciona traduzir a melodia selvagem dos ventos, que são a voz de uma outra realidade.
Ao fazer isso, não deseja como prêmio a coroa clássica de louros, mas outra, feita de flores brasileiras, que já mencionamos antes neste escrito. Em tal caso, a situação épica e os moldes de composição permanecem ajustados à prática das literaturas matrizes, mas os temas e as imagens foram substituídos, de maneira a produzir uma espécie de duplicação, que corresponde ao novo mundo natural e cultural.
Podemos falar em invenção quando o escritor parte do patrimônio europeu para criar variantes originais, como ocorre num poema de Álvares de Azevedo, "Meu Sonho", no qual ele fecunda o modelo da balada macabra de tipo alemão (como a "Lenora", de Bürger), deformando-o a fim de obter algo diferente. A balada se caracteriza, pelas suas próprias origens populares, por ser uma narrativa sobre personagens exteriores ao poeta; mas a de Álvares de Azevedo descreve o drama interior, elaborando imagens que projetam as tensões do ser, de modo a resultar um tipo novo de composição poética. Essa transformação de um gênero narrativo em gênero intimista pode ser considerada invenção, que todavia não apaga o laço orgânico em relação às literaturas da Europa, das quais (nunca é demais repetir quando se fala do romantismo com a sua forte componente nativista) a brasileira é um ramo.
Estas indicações permitem compreender certas ilusões do nacionalismo romântico, cujo programa era demonstrar a autonomia e originalidade da literatura brasileira, menores na verdade do que alegavam as formulações. Mas naquele momento de independência recente era estrategicamente oportuno minimizar o vínculo com as literaturas matrizes, mesmo sendo preciso usar para isso uma espécie de farisaísmo patriótico, pois os escritores continuavam normalmente imitando e citando os modelos europeus, assim como as modas passavam de lá para cá.
É preciso distinguir, portanto, as afirmações programáticas e a realidade estética, para perceber que o nacionalismo romântico foi historicamente importante, mas tinha muito de ilusório.
Neste sentido, convém levar em conta o fenômeno da auto-sugestão, segundo a qual os brasileiros consideram frequentemente específico o que era genérico, ou, por outras palavras, consideravam "tipicamente nosso" o que vinha de empréstimo, mas se incrustava tão normalmente em nossa sensibilidade, em nossos automatismos e ilusões, que parecia ter nascido aqui. Não é raro os críticos do século 19, e mesmo do 20, apontarem como "autenticamente brasileiros" ritmos oriundos da poesia italiana, imagens da poesia portuguesa, concepções francesas de narrativa. Todos esses são fatos normais e legítimos de difusão cultural que nada têm a ver com a melhor ou pior qualidade, ou com o significado dos textos, pois, repito, somos parte da mesma civilização, trazida inteira pela conquista e modificada segundo as vicissitudes do nosso destino histórico. No que concerne aos níveis eruditos da literatura, essa modificação nunca alterou os núcleos essenciais, e as contribuições importantíssimas do índio e do negro se revelaram decisivas sobretudo no domínio da cultura popular, que escapa ao objetivo deste escrito.
Foi, portanto, por meio de empréstimos ininterruptos que nos formamos, definimos a nossa diferença relativa e conquistamos consciência própria. Os mecanismos de adaptação, as maneiras pelas quais as influências foram definidas e incorporadas é que constituem a "originalidade", que no caso é a maneira de incluir em contexto novo os elementos que vêm de outro.
Para terminar, vejamos um exemplo pitoresco, que talvez ajude a esclarecer o assunto. A bandeira brasileira foi, desde a Independência, um retângulo verde com um losango amarelo inscrito, que a princípio tocava as bordas; no centro havia as armas imperiais, que depois da República foram substituídas pela esfera azul estrelada com a inscrição positivista "Ordem e Progresso" na faixa branca.
Aprende-se na escola e ouve-se depois pela vida afora nos discursos patrióticos que ela simboliza a nossa realidade natural: o verde representaria as riquezas vegetais, encarnando a "verdura sem par dessas matas" (diz Olavo Bilac no "Hino à Bandeira"); o amarelo representaria as riquezas minerais, encarnadas no ouro. Não se explicava o desenho, único entre os das bandeiras do mundo, mas talvez se pensasse que fosse invenção local, realçando o cunho inventivo do conjunto, ao engastar a riqueza na natureza.
Mas a verdade é diferente. Depois da Independência, dom Pedro 1º encomendou o risco da bandeira da jovem nação ao pintor Debret, membro da Missão Francesa de artistas, vinda em 1816, recomendando que usasse a cor heráldica da Casa de Bragança, verde, e o amarelo, cor heráldica dos Habsburgos, família da imperatriz. Nada, portanto, de galas e opulência do Brasil. E o desenho? Acho certo que Debret o tenha copiado do que aparece em certas bandeiras militares do seu país no tempo da Revolução Francesa e de Napoleão. Ele consistia em transformar a faixa branca central da bandeira tricolor num grande losango, onde se podiam inscrever a designação da unidade e outros dizeres. É o que se vê em quadros da era napoleônica, como o de David, existente no Museu de Versalhes, que representa o recém-coroado imperador arrivista recebendo o juramento de fidelidade das suas tropas.
Este exemplo mostra um caso de redefinição, típica do nosso processo cultural: elementos tradicionais da heráldica européia alusivos aos jovens soberanos e manipulados segundo um esquema francês, foram reinterpretados pela imaginação coletiva e passaram a representar a nossa realidade. Segundo os termos usados há pouco, seria possível dizer que a fisionomia e o significado da bandeira nacional se formaram a partir de transposições, substituições e invenções, que deram ao brasileiro a idéia de que simbolizavam o que temos de mais próprio.
Pensemos um pouco nesse contraponto das duas leituras do nosso "auri-verde pendão" para avaliarmos o nacionalismo romântico, que orientou a marcha de uma literatura ao mesmo tempo própria e comum, porque correspondeu à essência de uma cultura nutrida de transposições, que soube acompanhar a diferenciação da sensibilidade local.

Nota
"O Romantismo no Brasil", a ser lançado em breve pela ed. Humanitas, foi escrito como capítulo de uma obra em quatro volumes, organizada por Luciana Stegagno Picchio, com o título de "Storia della Civiltà Letteraria Portoghese", que será publicada pela Passagli Editora, de Florença.


Antonio Candido é crítico literário, autor, entre outros livros, do clássico "Formação da Literatura Brasileira" (Itatiaia)



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