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A tradição celebrada
Sobre um clássico de Antonio Candido
A Tradição Esquecida-
"Os Parceiros do Rio Bonito" e
a Sociologia de Antonio Candido
Luis Carlos Jackson
Ed. UFMG (Tel.0/xx/31/3499-4650)
240 págs., R$ 29,00
FRANCISCO DE OLIVEIRA
Em livro bem cuidado, Luis Carlos
Jackson dispõe-se a revalorizar um dos livros clássicos de Antonio Candido. Do
ponto de vista de Jackson, "Os Parceiros
do Rio Bonito" ficou -a concordância
no singular é com a obra, e não com o título, esclarecimento necessário em se tratando de Antonio Candido...- secundarizado mesmo na hierarquia das obras do
autor e num lugar menor em relação às
obras-mestras da interpretação da formação da sociedade brasileira, o formidável esquadrão apelidado por Candido
de "demiurgos do Brasil", a saber: Gilberto Freyre, Caio Prado Junior, Sérgio
Buarque de Holanda e, acrescentaria eu,
Celso Furtado e Florestan Fernandes, para ficar numa lista que poderia estender-se. O engraçado é que o mestre da teoria
da literatura brasileira ele mesmo não
considera o livro esquecido, pois já teve
12 edições, desde a primeira em 1964, que
Candido reconhece ter demorado a aparecer, em razão de sua renitência em publicar imediatamente os textos de sua lavra pois, segundo ele, "Os Parceiros" demandava uma revisão que nunca fez.
Jackson refaz cuidadosamente o percurso de Antonio Candido, desde os idos
de 30, da escolha da novíssima Faculdade
de Filosofia e da mais que incerta ciência
social, da desistência da Faculdade de Direito que frequentou concomitantemente com a de Filosofia, seguida por alguns
de seus melhores amigos, e da nem tentada Faculdade de Medicina, preferência de
seu pai. Aqui, o material de que se serve,
além da bibliografia, são duas entrevistas
do próprio Antonio Candido, que Jackson nos oferece na íntegra em seu livro,
ao lado das de Edgar Carone, Décio de
Almeida Prado e José de Souza Martins, o
que transforma "A Tradição Esquecida"
numa preciosidade bibliográfica e testemunhal. Estamos no terreno de uma pesquisa rigorosamente conduzida. Gol de
letra, Luis Carlos!
O livro de Jackson desenvolve-se em
uma introdução e três capítulos, aos
quais se juntam as notas e as preciosas
entrevistas já citadas. O autor trata de trabalhar três questões sobre Candido e "Os
Parceiros". A primeira diz respeito à discussão se Antonio Candido é sociólogo,
se "Formação da Literatura Brasileira" é
sociologia da literatura ou tem verdadeiramente o estatuto de teoria e crítica literária e, por último, qual o lugar de "Os
Parceiros" na estante básica das obras da
formação da sociedade brasileira.
Parece, pela ordem, que inquieta Luis
Carlos que o próprio autor estudado se
veja menos como sociólogo e mais autenticamente como crítico literário, mais como empírico -a "paixão pelo concreto"
referida por Candido na primeira entrevista- e menos como teórico e que sua
principal obra sociológica não tenha aparentemente criado "escola" e sua repercussão tenha sido menor que seu valor
intrínseco, ofuscada talvez pelas grandes
interpretações sobre o campesinato e o
latifúndio brasileiros, esses irmãos xifópagos da retrógrada estrutura agrária
brasileira.Os títulos dos capítulos dizem
abertamente da intenção e das perguntas
do autor: "O Sociólogo em Antonio Candido ou Antonio Candido Sociólogo", "A
Tradição Esquecida" e "O Sertanejo, O
Caipira e o Camponês Brasileiro".
Interdisciplinaridade
"Formação da Literatura Brasileira",
considerada a obra seminal de uma tradição de teoria crítica inaugurada por Candido -inaugurada na verdade nos rodapés da então "Folha da Manhã" e estruturada a partir do exercício da docência em
letras em Assis-, dificilmente poderia
deixar de sofrer a influência que eu não
diria sociologizante, mas interdisciplinar,
da prática e do ambiente intelectual em
que Candido se formou. Mas não é sociologia, e tanto a primeira quanto a segunda afirmação não são incompatíveis nem
excludentes.
Há em "Formação" e em "Os Parceiros" o mesmo compromisso, declarado
por Candido nas entrevistas: na primeira,
o compromisso com o texto; no segundo,
o compromisso com a realidade social.
Têm a mesma estatura, que eu diria teórica, embora Candido não se considere um
teórico.
Na primeira, o compromisso revela-se
como resultado do abandono da postura
da primeira fase como crítico, o de tentar
ver ideologicamente o que o autor criticado queria dizer, para ver o que o texto
quer dizer, o que o texto é. Na segunda, o
compromisso se revela na plasticidade e
no ecletismo da bibliografia, escolhida
pelo critério da melhor aproximação
com a realidade, escoimada o quanto se
pode das próprias preferências ideológicas do autor. Ecletismo que foi motivo de
crítica. Para a crítica literária, a realidade
social deve converter-se em texto, em estética; na sociologia, o modo de vida dos
investigados, no caso parceiros de uma
fazenda decadente, deve ser investigada
com as melhores ferramentas e aproximações teóricas e uma observação cuidadosa que evite o pré-conceito.
Creio que trazendo ao primeiro plano
essa fecundação presente na obra crítica e
sociológica de Antonio Candido, Jackson
responde satisfatoriamente à sua primeira preocupação.
Além disso, conquanto Candido não se
veja como teórico, não há como negar
que a "escola" de teoria e crítica literária
que lhe deve sua melhor e maior inspiração -que custa muito, custa transpiração- desenvolve-se a partir de uma teoria da crítica formulada por Candido,
quando ele se descola de Silvio Romero,
por exemplo, para ele um grande historiador da literatura e um péssimo crítico
literário. Nos termos com que Leopoldo
Waizbort analisa a nova edição de "Machado de Assis - A Pirâmide e o Trapézio", de Raymundo Faoro, "o social tornado forma" ("Jornal de Resenhas", 9/3/
2002). É isso o que está presente em Roberto Schwarz, por exemplo, assumidamente um discípulo de Candido, com seu
já clássico "Um Mestre na Periferia do
Capitalismo", em que a volubilidade da
classe dominante brasileira torna-se forma em Machado. Esclareça-se, desde já,
que não estou transformando Faoro em
discípulo de Candido. Para mim, se isso
não é teoria da literatura, então eu já não
sei mais o que é teoria.
Nos estudos de sociologia, tem razão
Jackson. A tradição de Candido fundada
em "Os Parceiros" ficou esquecida, embora também seja verdade que ela fecundou toda uma "filière" de estudos sobre a
realidade rural, na linha de uma Maria
Isaura Pereira de Queiroz e de um José
César Gnacarini, como fica ressaltado nas
entrevistas de Candido, que se incorpora
à reflexão de Jackson. Aqui Jackson talvez
devesse ter ousado mais na investigação
desse "esquecimento".
Candido mesmo ajuda muito a esclarecer a relativa secundarização da proposta
interpretativa dos "Parceiros", por reconhecer em primeiro lugar que, quando o
livro finalmente saiu, o debate brasileiro
estava tão radicalizado entre a oposição
latifúndio versus minifúndio e a consequente proposta da reforma agrária radical que talvez a maior sutileza de sua análise não correspondesse às expectativas
políticas da época da primeira edição, em
1964, ano da catástrofe golpista. Embora
José César Gnacarini, com seu "Latifúndio e Proletariado", na verdade tenha
realizado uma admirável síntese da proposta de Candido com a temática mais
macrossocial e macropolítica da reforma
agrária.
Ainda assim, é forçoso reconhecer que
o conflito que pautou a agenda política
nos anos do aparecimento dos "Parceiros", e que continua atual, isto é, a estrutura fundiária extremamente concentrada que dá lugar às formas mais violentas
da velha violência coronelística e agora
empresarial, é secundarizado na obra sociológica de Antonio Candido.
Dizendo de outro modo, o conflito, que
está lá, se esconde sob as formas de uma
investigação etnográfica da cultura caipira; reforçando ainda mais, o latifundiário
quase não aparece. O que retirou centralidade às oposições mais esquemáticas e
força à interpretação. Talvez a literatura
brasileira do conflito agrário não tenha
sabido aproveitar o que era essencial na
proposta metodológica de Candido, lograda exatamente porque sua abordagem começa pela cultura: a da formação
do largo e fundo consenso entre as classes
sociais no campo brasileiro, entre o minifundista e o latifundiário, base da arraigada permanência da forma de dominação,
reatualizada agora pelo "agrobusiness".
Não é estranha à sutileza de Antonio
Candido que o dono da fazenda fosse seu
amigo, Edgar Carone. É difícil ver num
amigo o latifundiário empedernido, figura central da saga do atraso agrário brasileiro. Mas, com olhos de ver, certamente
está lá a pista para investigar-se a estranha parceria, se quisermos chamá-la assim, entre dominantes e dominados no
campo, que financiou as bases da industrialização brasileira.
"Os Parceiros" como título talvez tenha
sido inconscientemente a escolha de um
simulacro para descrever a funda contradição. Se essa obra sociológica, que seu
próprio autor considera menor, não tem
a dimensão épica das obras dos que Candido chamou os "demiurgos" do Brasil,
visto que esse lugar na estante dos grandes clássicos brasileiros é ocupada por
"Formação da Literatura Brasileira", vale
a pena, como o fez Jackson, celebrá-la e
mais, segui-la.
Francisco de Oliveira é professor de sociologia
na USP e coordenador do Centro de Estudos dos
Direitos da Cidadania (USP).
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