São Paulo, sábado, 13 de abril de 2002

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Darcy educador

Darcy Ribeiro - Sociologia de um Indisciplinado
Helena Bomeny Ed. UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4650)
284 págs., R$ 31,00

FERNANDA PEIXOTO

Darcy Ribeiro (1922-1997) era personagem à procura de um autor. Antropólogo, literato, educador e político, construiu obra e trajetória marcadas pelo engajamento. Helena Bomeny, por sua vez, é conhecida no campo das humanidades por seus trabalhos sobre os intelectuais nas décadas de 20 e 30, no qual se destacam os obrigatórios "Tempos de Capanema", organizado com Vanda Ribeiro Costa e Simon Schwartzman (1984), e "Guardiães da Razão, Modernistas Mineiros" (1994). Do encontro entre a figura controversa e a intérprete experiente nasce esta "Sociologia de um Indisciplinado", tentativa inédita de esboçar o perfil de uma figura que parece escapar a todo e qualquer esforço classificatório. Trata-se, nos termos da autora, de perseguir a "indisciplina" de Darcy, seja como mineiro ("exemplar nada típico da mineiridade burilada por aqueles homens públicos que chegaram ao cenário político nacional"), seja como cientista social e/ou educador. A tarefa é árdua: definir um trajeto pessoal, atenta aos cruzamentos com outros e ao contexto social mais amplo; além disso, acompanhar a gênese das idéias e de projetos intelectuais e políticos. A esses desafios soma-se a dificuldade "de tratar essa figura intelectual e política sem controlar, passo a passo, as muitas impressões apaixonadas, nada imparciais, que sempre provocou quer de seus fiéis admiradores, quer dos que sobre ele mantiveram as maiores restrições". O estabelecimento de um recorte preciso aparece como o único caminho capaz de orientar a análise, e esse recaiu sobre o Darcy educador, que a intérprete persegue amparada por uma tese explícita: ele teria sido o último representante da Escola Nova entre nós.
Tal escolha leva ao esboço de um amplo painel da educação no Brasil, de modo a desenhar uma tradição fortemente infletida pela experiência francesa. As propostas dos pioneiros da Escola Nova -que inspiraram as reformas educativas no país a partir da década de 20- permitem a visualização de um momento preciso em que matrizes distintas são acionadas para a formulação de programas educacionais. O pragmatismo de John Dewey, que tem em Anísio Teixeira um seguidor, combina-se no interior da agenda escolanovista com a sociopedagogia de Emile Durkheim, orientadora das reflexões e teses de Fernando de Azevedo.
É nesse sentido que no movimento da Escola Nova articulam-se "uma matriz individualista, como a que informou Anísio Teixeira", e uma outra, "coletivista", relacionada à tradição francesa, "pela qual o indivíduo é expressão de crenças, processos, representações e determinações que lhe escapam", e que encontra em Fernando de Azevedo um forte adepto. A identificação de dois eixos orientadores no interior do projeto dos reformadores não impede o reconhecimento de convergências entre os modelos. Uma delas é a convicção da importância da sociologia como parceira do grande projeto de renovação da educação nacional.
Uma vez traçadas as linhas históricas e teóricas conformadoras dos principais eixos da educação no país, a análise retoma Darcy Ribeiro, procurando localizá-lo no interior da tradição esboçada. O percurso e a formação do autor fornecem os elementos-chave para o compreensão do seu lugar como educador militante. Antes de mais nada, a vinculação a uma linhagem mineira "antiacadêmica" e "pragmática", que remontaria a João Pinheiro e que seria "resistente aos procedimentos políticos que implicam formalização e negociação". Em seguida, a direção empírica e intervencionista recebida na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, em que Darcy fez o bacharelado e o mestrado, na década de 40. A entrada no Partido Comunista Brasileiro contribuiu para a definição de um estilo de ação política. Nos "tempos de escola", desenha-se o perfil do "indisciplinado", não por acaso envolvido, desde então, em querelas permanentes com o mundo da academia.
Mas é na área da educação que o intelectual público consolida a sua atuação, desde a década de 50. No campo educacional, combinam-se a preocupação com a sociedade brasileira e a atuação política, iniciada nas fileiras do PCB. No campo da educação, o encontro com Anísio Teixeira é decisivo. A mútua descoberta, indica Bomeny, foi possível pela paixão reformadora e pela afinidade com certas matrizes norte-americanas de pensamento. "Percorrendo as biografias, é possível dizer que Darcy cumpriu uma agenda de atuação pública que lhe foi desenhada com régua e compasso por Anísio Teixeira."
Essas linhas gerais não dão conta dos múltiplos caminhos sugeridos pela análise, sobre a qual haveria muito a conversar. Um dos méritos do trabalho reside justamente na sua capacidade de abrir frentes de reflexão, levantar questões e esboçar possibilidades comparativas. Darcy é pensado por meio de múltiplas aproximações que se apresentam ao longo do volume, algumas evidentemente mais bem trabalhadas que outras. No encadeamento das comparações, o movimento da interpretação se revela: ele privilegia o traçado de linhas de descendência construídas com o auxílio do próprio Darcy e de seus relatos autobiográficos. Se a opção joga luz sobre traços decisivos do perfil do personagem, a estratégia analítica termina, paradoxalmente, deslocando-o muitas vezes para o segundo plano da cena, nublado pela profusão de nomes que afloram das genealogias e por enredos paralelos que teimam em ocupar o centro do palco.
Suspeito que se, ao lado dos artigos, entrevistas e textos de cunho autobiográfico -que constituem o grosso da bibliografia trabalhada-, a análise tivesse contemplado pelo menos alguns exemplares da obra sociológica de Darcy, teria sido possível qualificar melhor sua teoria do Brasil e o teor da missão salvacionista que tomam corpo nos projetos para a educação.


Fernanda Peixoto é professora de antropologia na USP e autora de "Diálogos Brasileiros - Uma Análise da Obra de Roger Bastide" (Edusp).



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