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A paciência do logos
O que significa "realizar a democracia"
Memória e (Res)Sentimento:
Indagações sobre uma
Questão Sensível
Marcia Regina Naxara
e Stella Bresciani (orgs.)
Ed. da Unicamp (Tel. 0/ xx/19/3788-1094)
552 págs., R$ 58,00
OLGÁRIA MATOS
Este conjunto de ensaios de diferentes autores interroga o significado da comunidade política no
presente no momento em que os
valores herdados da tradição
-garantidos pela "razão" emancipadora, pela religião e suas experiências solidárias ou pela lei e
seus ideais de justiça e igualdade- revelam sua vulnerabilidade, o que significa indiferença
com respeito a projetos coletivos
e a instituições públicas.
O arquivamento dessas práticas
atesta a importância da memória
na busca do sentido dessa perda.
Revisitando a linhagem grega, este trabalho dirige-se para a existência virtuosa: viver de acordo
com a razão, permanecer coerente consigo mesmo nos instantes
em que o homem atravessa as
maiores provações e, como Ulisses, na "Odisséia", deve dizer a si
mesmo: "Paciência, meu "logos'".
O homem clássico não se deseja
diferente do que é, nenhum sonho de alteridade o habita. Manter o domínio de si, colocar na
acrópole da alma a razão, submeter as paixões vis -aquelas que,
como Platão as consagrou, dirigem-se ao desejo de ganho e aquisição de bens materiais- é alcançar a felicidade da contemplação
do Bem e a harmonia na cidade.
Ao aproximar a Antiguidade do
mundo moderno, a presente publicação mede a distância que separa as paixões explosivas, como
a cólera de Aquiles na "Ilíada", ou
as duradouras, como o rancor
que leva ao delírio, dos desejos de
posse como gratificação real ou
imaginária. Não mais valorizam-se esforços para a autarquia segundo o ideal de medida -seja
na manifestação da ordem cósmica ou em mandamentos estabelecidos pela vontade de Deus. Não
mais a procura de um fim último
ou um "soberano Bem".
Um descompasso
"Memória e (Res)Sentimento"
nos leva a considerar o descompasso entre desejos e paixões, indicando o que os diferencia, a fim
de refletir sobre o conflito entre a
satisfação de necessidades e desejos materiais e a promessa da
"realização de si" para as massas
nas democracias ocidentais. Se as
paixões caracterizam-se pela adesão a um objeto, os desejos são essencialmente inquietos, dissociados do controle vigilante da razão
e da vontade, distantes de decisões ponderadas e, assim, mais
expostos a decepções. Em outras
palavras, o guia platônico da parte
irracional da alma pela razão ruiu
na contemporaneidade e se estabeleceu o rompimento entre paixões e razão, desejos e razão, moral e razão, bem como a diluição
da política na "razão". Ser moderno supõe "abandonar o império
das paixões à política compreendida como exercício da razão".
Nesse sentido, prevaleceu sobre
todos os valores morais e éticos a
razão como administradora dos
homens e das coisas.
Desde o ideal antropocêntrico
do Renascimento -que substituiu o universo especulativo grego e o contemplativo da Idade
Média pela "vita activa"-, um
intenso desejo de emancipação
habita a subjetividade secularizada, cuja cosmovisão racionalista
corresponde a um poder laico na
política, traduzido, em seguida,
em júbilo pelo progresso industrial e pelo espírito popular revolucionário. Assim, Nietzsche não
concebeu o plano de "matar
Deus", mas já o "encontrou morto na alma de seu tempo".
Nesse horizonte, este livro discute os conceitos de república, democracia, progresso, memória e
identidade a partir de uma perspectiva tão fecunda quanto original: o desempenho das emoções e
dos afetos na vida política e sua
importância para a inteligibilidade do comportamento das massas na história, para compreender
o mal-estar na vida civil contemporânea. Propondo acompanhar
a natureza da democracia e do
igualitarismo, em particular em
suas relações com o ressentimento das massas e o desprezo com
respeito a elas dos que exercem o
poder, os temas em questão referem-se à satisfação ou frustração
de desejos que república e democracia implicam, propiciando refletir sobre a política "pré-moderna" da humilhação, da inveja e do
ressentimento, sentimentos que
deveriam ser suplantados no
ideário republicano e no democrático.
Se a república se funda por referência à virtude, à cidadania e ao
bem comum, a linguagem democrática, por sua vez, é hedonista e
promete satisfação de desejos e liberdade. Sendo assim, democracia e república devem responder
ao problema da "maior felicidade
possível para o maior número de
pessoas". Razão pela qual este livro volta-se para as diferentes figuras da exclusão: da doença
-como a hanseníase ou a Aids,
das identidades regionais, das minorias étnicas- e para a questão
de saber se "o regime democrático favorece ou desfavorece a formação dos ressentimentos".
O princípio da igualdade e a
construção de conciliações nacionais para construí-las simbolicamente se autoconcebem como interesse coletivo, cujo a priori seria
a inclusão de todos os indivíduos.
Descumpridas suas promessas,
manifesta-se o "ressentimento
(que) assume o contorno de uma
exclusão". Desse ponto de vista, o
ressentimento se revela como resposta a um trauma que afasta o
indivíduo da experiência de um
mundo compartilhado.
Fonte de ressentimento
Exclusão deve ser compreendida, neste volume, nos planos político e econômico, ético e psicológico. Sucesso econômico e desejos de consumo assimilados a plenitude existencial, felicidade e
igualdade, uma vez irrealizáveis,
são fonte de ressentimento. Justiça na realização de desejos de
consumo e de prazer significa: a
democracia é a paixão da igualdade e do desejo de ter. Diferentemente, porém, do hedonismo antigo, que comportava como princípio a autolimitação, o contemporâneo é afetado pelo "sempre
mais". Funciona por acumulação,
o que resulta, paradoxalmente,
em uma lógica puritana, em uma
ascese invertida, onde ter mais é
sempre ter menos.
De onde o desejo incessante de
novas experiências e formas de
emoção cada vez mais arriscadas
à vida, acompanhadas tacitamente de insatisfação. A economia política que visa "à riqueza das nações" bem como a consumação
de necessidades cada vez menos
urgentes desloca permanentemente a fronteira da limitação ou
autolimitação dos desejos, tendendo menos a satisfazê-los do
que a multiplicá-los.
A moral e o costume -que durante séculos ensinaram a moderação dos desejos e condenaram a
"pleonexia", o desejo insaciável
de posse- podem ser reconduzidos à concisão da fórmula do estóico Cleanto que, interrogado
sobre como tornar-se rico, respondeu: "Se formos pobres em
desejos". Não conseguindo conciliar o impulso ao desenvolvimento material com as necessidades
de crescimento ético, as sociedades contemporâneas reforçam o
ressentimento que se presentifica
no sentimento de impotência
diante do bloqueio que ameaça os
desejos, bloqueio considerado
onipotente e inibidor da igualdade democrática.
Analisando o estatuto da racionalidade contemporânea, os presentes ensaios desenvolvem o tema da associação perversa entre
razão e ressentimento, razão e exclusão. Se o racionalismo moderno considera todos os homens
iguais porque igualmente racionais, a sociedade ocidental, ao
mesmo tempo, revela a "natureza" de todas as outras sociedades:
ele constitui o ponto máximo e
único que faz do Ocidente o "escolhido". Donde a antinomia de
duas proposições contraditórias:
uma que diz serem todos os homens igualmente racionais e, em
contrapartida, só o são aqueles
que forem ocidentais, porque só o
Ocidente é moderno.
Amor a si mesmo
Obra pioneira pelo conjunto de
questões que aborda e suscita, esta publicação coloca a urgência de
a ética e a política se fortalecerem
na "phylautia" -o amor a si mesmo-, de maneira a associá-la à
comunidade de um mundo compartilhado: "O diálogo democrático teria como consequência permitir a expressão das hostilidades
e, portanto, sua transformação
em reivindicações racionalizadas
e seu abrandamento pela tomada
de consciência das oposições de
interesses. A eficácia da democracia permitiria romper os sentimentos de impotência, arrancando os indivíduos de sua ruminações rancorosas, fazendo deles seres responsáveis por si próprios e
membros ativos de uma sociedade participativa".
Delineia-se, ao longo desta pesquisa, a crítica das paixões e um
elogio da razão que não a exalta
como um "em si", mas como a
possibilidade da democracia em
sentido forte. Eis por que a democracia é o modo de participar de
um espaço e de um destino comum que oferecem a maior segurança coletiva possível. Quando a
existência de cada um e de todos
se faz menos precária, é a própria
razão -lembremos Espinosa-
que espontaneamente se reforça,
com o que aumenta o respeito às
leis e instituições. Pelo exercício
da razão, pode realizar-se "o esquecimento dos ressentimentos
que é também uma estratégia de
apaziguamento".
Realizar a democracia, ensina
este trabalho, significa reconciliar
os direitos do "princípio de prazer" e do "princípio de realidade"
para que a utopia iluminista da
razão retome seus plenos direitos.
Olgária Matos é professora de filosofia
na USP e autora, entre outros livros, de
"A Polifonia da Razão" (Scipione).
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