São Paulo, sábado, 13 de abril de 2002

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A paciência do logos

O que significa "realizar a democracia"

Memória e (Res)Sentimento: Indagações sobre uma Questão Sensível
Marcia Regina Naxara e Stella Bresciani (orgs.) Ed. da Unicamp (Tel. 0/ xx/19/3788-1094) 552 págs., R$ 58,00

OLGÁRIA MATOS

Este conjunto de ensaios de diferentes autores interroga o significado da comunidade política no presente no momento em que os valores herdados da tradição -garantidos pela "razão" emancipadora, pela religião e suas experiências solidárias ou pela lei e seus ideais de justiça e igualdade- revelam sua vulnerabilidade, o que significa indiferença com respeito a projetos coletivos e a instituições públicas.
O arquivamento dessas práticas atesta a importância da memória na busca do sentido dessa perda. Revisitando a linhagem grega, este trabalho dirige-se para a existência virtuosa: viver de acordo com a razão, permanecer coerente consigo mesmo nos instantes em que o homem atravessa as maiores provações e, como Ulisses, na "Odisséia", deve dizer a si mesmo: "Paciência, meu "logos'". O homem clássico não se deseja diferente do que é, nenhum sonho de alteridade o habita. Manter o domínio de si, colocar na acrópole da alma a razão, submeter as paixões vis -aquelas que, como Platão as consagrou, dirigem-se ao desejo de ganho e aquisição de bens materiais- é alcançar a felicidade da contemplação do Bem e a harmonia na cidade.
Ao aproximar a Antiguidade do mundo moderno, a presente publicação mede a distância que separa as paixões explosivas, como a cólera de Aquiles na "Ilíada", ou as duradouras, como o rancor que leva ao delírio, dos desejos de posse como gratificação real ou imaginária. Não mais valorizam-se esforços para a autarquia segundo o ideal de medida -seja na manifestação da ordem cósmica ou em mandamentos estabelecidos pela vontade de Deus. Não mais a procura de um fim último ou um "soberano Bem".

Um descompasso
"Memória e (Res)Sentimento" nos leva a considerar o descompasso entre desejos e paixões, indicando o que os diferencia, a fim de refletir sobre o conflito entre a satisfação de necessidades e desejos materiais e a promessa da "realização de si" para as massas nas democracias ocidentais. Se as paixões caracterizam-se pela adesão a um objeto, os desejos são essencialmente inquietos, dissociados do controle vigilante da razão e da vontade, distantes de decisões ponderadas e, assim, mais expostos a decepções. Em outras palavras, o guia platônico da parte irracional da alma pela razão ruiu na contemporaneidade e se estabeleceu o rompimento entre paixões e razão, desejos e razão, moral e razão, bem como a diluição da política na "razão". Ser moderno supõe "abandonar o império das paixões à política compreendida como exercício da razão". Nesse sentido, prevaleceu sobre todos os valores morais e éticos a razão como administradora dos homens e das coisas.
Desde o ideal antropocêntrico do Renascimento -que substituiu o universo especulativo grego e o contemplativo da Idade Média pela "vita activa"-, um intenso desejo de emancipação habita a subjetividade secularizada, cuja cosmovisão racionalista corresponde a um poder laico na política, traduzido, em seguida, em júbilo pelo progresso industrial e pelo espírito popular revolucionário. Assim, Nietzsche não concebeu o plano de "matar Deus", mas já o "encontrou morto na alma de seu tempo".
Nesse horizonte, este livro discute os conceitos de república, democracia, progresso, memória e identidade a partir de uma perspectiva tão fecunda quanto original: o desempenho das emoções e dos afetos na vida política e sua importância para a inteligibilidade do comportamento das massas na história, para compreender o mal-estar na vida civil contemporânea. Propondo acompanhar a natureza da democracia e do igualitarismo, em particular em suas relações com o ressentimento das massas e o desprezo com respeito a elas dos que exercem o poder, os temas em questão referem-se à satisfação ou frustração de desejos que república e democracia implicam, propiciando refletir sobre a política "pré-moderna" da humilhação, da inveja e do ressentimento, sentimentos que deveriam ser suplantados no ideário republicano e no democrático.
Se a república se funda por referência à virtude, à cidadania e ao bem comum, a linguagem democrática, por sua vez, é hedonista e promete satisfação de desejos e liberdade. Sendo assim, democracia e república devem responder ao problema da "maior felicidade possível para o maior número de pessoas". Razão pela qual este livro volta-se para as diferentes figuras da exclusão: da doença -como a hanseníase ou a Aids, das identidades regionais, das minorias étnicas- e para a questão de saber se "o regime democrático favorece ou desfavorece a formação dos ressentimentos".
O princípio da igualdade e a construção de conciliações nacionais para construí-las simbolicamente se autoconcebem como interesse coletivo, cujo a priori seria a inclusão de todos os indivíduos. Descumpridas suas promessas, manifesta-se o "ressentimento (que) assume o contorno de uma exclusão". Desse ponto de vista, o ressentimento se revela como resposta a um trauma que afasta o indivíduo da experiência de um mundo compartilhado.

Fonte de ressentimento
Exclusão deve ser compreendida, neste volume, nos planos político e econômico, ético e psicológico. Sucesso econômico e desejos de consumo assimilados a plenitude existencial, felicidade e igualdade, uma vez irrealizáveis, são fonte de ressentimento. Justiça na realização de desejos de consumo e de prazer significa: a democracia é a paixão da igualdade e do desejo de ter. Diferentemente, porém, do hedonismo antigo, que comportava como princípio a autolimitação, o contemporâneo é afetado pelo "sempre mais". Funciona por acumulação, o que resulta, paradoxalmente, em uma lógica puritana, em uma ascese invertida, onde ter mais é sempre ter menos.
De onde o desejo incessante de novas experiências e formas de emoção cada vez mais arriscadas à vida, acompanhadas tacitamente de insatisfação. A economia política que visa "à riqueza das nações" bem como a consumação de necessidades cada vez menos urgentes desloca permanentemente a fronteira da limitação ou autolimitação dos desejos, tendendo menos a satisfazê-los do que a multiplicá-los.
A moral e o costume -que durante séculos ensinaram a moderação dos desejos e condenaram a "pleonexia", o desejo insaciável de posse- podem ser reconduzidos à concisão da fórmula do estóico Cleanto que, interrogado sobre como tornar-se rico, respondeu: "Se formos pobres em desejos". Não conseguindo conciliar o impulso ao desenvolvimento material com as necessidades de crescimento ético, as sociedades contemporâneas reforçam o ressentimento que se presentifica no sentimento de impotência diante do bloqueio que ameaça os desejos, bloqueio considerado onipotente e inibidor da igualdade democrática.
Analisando o estatuto da racionalidade contemporânea, os presentes ensaios desenvolvem o tema da associação perversa entre razão e ressentimento, razão e exclusão. Se o racionalismo moderno considera todos os homens iguais porque igualmente racionais, a sociedade ocidental, ao mesmo tempo, revela a "natureza" de todas as outras sociedades: ele constitui o ponto máximo e único que faz do Ocidente o "escolhido". Donde a antinomia de duas proposições contraditórias: uma que diz serem todos os homens igualmente racionais e, em contrapartida, só o são aqueles que forem ocidentais, porque só o Ocidente é moderno.

Amor a si mesmo
Obra pioneira pelo conjunto de questões que aborda e suscita, esta publicação coloca a urgência de a ética e a política se fortalecerem na "phylautia" -o amor a si mesmo-, de maneira a associá-la à comunidade de um mundo compartilhado: "O diálogo democrático teria como consequência permitir a expressão das hostilidades e, portanto, sua transformação em reivindicações racionalizadas e seu abrandamento pela tomada de consciência das oposições de interesses. A eficácia da democracia permitiria romper os sentimentos de impotência, arrancando os indivíduos de sua ruminações rancorosas, fazendo deles seres responsáveis por si próprios e membros ativos de uma sociedade participativa".
Delineia-se, ao longo desta pesquisa, a crítica das paixões e um elogio da razão que não a exalta como um "em si", mas como a possibilidade da democracia em sentido forte. Eis por que a democracia é o modo de participar de um espaço e de um destino comum que oferecem a maior segurança coletiva possível. Quando a existência de cada um e de todos se faz menos precária, é a própria razão -lembremos Espinosa- que espontaneamente se reforça, com o que aumenta o respeito às leis e instituições. Pelo exercício da razão, pode realizar-se "o esquecimento dos ressentimentos que é também uma estratégia de apaziguamento".
Realizar a democracia, ensina este trabalho, significa reconciliar os direitos do "princípio de prazer" e do "princípio de realidade" para que a utopia iluminista da razão retome seus plenos direitos.


Olgária Matos é professora de filosofia na USP e autora, entre outros livros, de "A Polifonia da Razão" (Scipione).



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