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Música, escrita ou pintura?
O pensamento estético de Paul Klee
Sobre a Arte Moderna
e Outros Ensaios
Paul Klee
Tradução: Pedro Süssekind
Jorge Zahar (Tel. 0/xx/21/2240-0226)
126 págs., R$ 19,00
SHEILA LEIRNER
Já era tempo de acrescentar o pensamento de Paul Klee à literatura sobre estética publicada no Brasil. As idéias deste
mestre do século 20 não são apenas fundamentais para a compreensão da arte
moderna, mas também para a percepção
mais aguda de seu próprio processo artístico. Servem não só aos artistas, também
ao espectador, aos críticos e aos historiadores. Pois, ao relacionar a técnica e o
sentido -e ao fazer a teoria dos seus signos visuais-, Klee nos obriga a voltar à
especificidade do "pensamento figurativo" e a respeitar a originalidade do campo pictórico. Campo que, apesar das relações com o domínio literário ou conceitual, não pode ser reduzido a ele.
O bem cuidado livro "Sobre a Arte Moderna e Outros Ensaios", embora bastante recopilado, representa um belo esforço
para transmitir a função principal que
sempre marcou a teoria dos artistas desde a sua origem até os dias de hoje: a prática do ensino. A esclarecedora introdução de Günther Regel, os pequenos e
emotivos textos de Wassily Kandinsky,
Rainer Maria Rilke e Robert Delaunay
(traduzido por Klee), e alguns dados biográficos completam esta obra que reúne
nove famosos ensaios e um currículo escritos pelo próprio artista.
Esta seleção, feita a partir de "Kunst-Lehre", publicado em 1987, muito bem
traduzida por Pedro Süssekind (que sugeriu também alguns acréscimos ao original), revela o mesmo desvelo gráfico
com a reprodução pontual de alguns sugestivos desenhos de anotação de Paul
Klee. A única restrição está na ausência
de dados sobre o autor do prefácio, pois o
leitor infelizmente fica sem saber que
Günther Regel é crítico e professor da
Universidade de Leipzig, especialista em
Joseph Beuys e conhecedor da cena artística contemporânea, sobretudo no que
diz respeito à arte pedagógica (daí o seu
interesse por Klee e por Beuys).
Música, escrita ou pintura? Para Klee,
nascido em 1879 em Münchenbuchsee,
perto de Berna, e morto em 1940, essa interrogação dominou os anos de aprendizado e determinou, até o final, o seu exercício criador. Se de um lado ele renunciou
rapidamente à carreira de instrumentista, de outro continuou a se empenhar no
pensamento e na prática musical. Seus
escritos iam da introspecção à poesia, da
teoria à didática da arte, e a pintura -a
sua grande escolhida- conjugava continuamente as próprias modalidades com
as das outras atividades.
Inclassificável, este "pintor-poeta"
-como ele mesmo se definia- figura
também entre os mais fecundos criadores. O seu catálogo conta com mais de
9.000 obras e a sua reflexão sobre a arte,
pela amplidão, evoca sem dúvida nenhuma a de Leonardo da Vinci. Paul Klee se
mantém como uma das personalidades
determinantes do século 20 e uma referência irrecusável do pensamento estético atual.
Embora pouco extenso, esse compêndio revela da mesma forma ao público
brasileiro que, nos limites da imagem de
Klee, está a escrita. Fato que pode ser observado claramente também fora da teoria, na própria trajetória plástica do artista. Logo depois de sua participação no
grupo "Blaue Reiter", por exemplo, os
pictogramas (cruzes, estrelas, vegetais
etc.) penetraram na superfície de sua pintura. A partir de 1930, um sistema de
ideogramas pessoais tornou-se um modo
frequente, expressivo e sedutor de significação.
De maneira inversa, a escrita alfabética
tendia a "criar uma imagem". A letra isolada, transformada em símbolo, não raro
cobria uma parte da figuração. E as palavras, enquanto atores ou índices, perseguiam livremente a iconografia. A ponto
de excluírem qualquer universo significante e de transformarem as obras em
"quadros-poemas". Enfim, os "alfabetos" de 1938 liberavam a escrita de suas
convenções e lhe restituíam a imagem
original. Assim, não ficou difícil Klee verificar que "escrever e desenhar" -os
dois aspectos complementares de sua
obra- "no fundo eram idênticos".
Mas, tanto nos ensaios do artista quanto no prefácio e nos anexos, este livro
apresenta uma revolucionária filosofia da
criação, na qual o ponto, a linha, o toque,
os tons, a composição são os verdadeiros
signos do artista. Klee propõe uma teoria
da técnica como teoria dos signos pictóricos e vice-versa: "A arte não reproduz o
visível, mas torna visível. (...) Os elementos formais da arte gráfica são: pontos,
energias lineares, energias planas e energias espaciais. (...) O Gênesis como movimento formal constitui o essencial da
obra".
A fabricação de sentidos
Ao lê-lo podemos claramente sentir
aquilo a que ele se apega, o que se esforça
em compreender e até onde vai a sua fabricação de sentidos. Muito além dos temas, a sua teoria permite alcançar o conteúdo da obra, pois o dinamismo pictórico do artista (segundo o qual a "formação" possui privilégio sobre a forma) liga-se à uma problemática interna da pintura, analisada anteriormente: a relação
entre o esboço e a obra acabada.
Mas ele vai mais longe ainda. Explica
que esse dinamismo existe como imagem
do mundo: "A arte existe como imagem
da criação. É um símbolo, assim como o
mundo terrestre é um sinal do cosmos".
A sua obra, "não representativa", permanece figurativa, imitativa mesmo: "Como
quando uma criança nos imita em suas
brincadeiras, nós também imitamos no
jogo da arte as forças que criaram e criam
o mundo", afirma.
As teorias de Paul Klee permitem decifrar a dimensão cósmica e ao mesmo
tempo "terrena" da sua obra. Segundo o
filósofo Daniel Arasse, "seus escritos colocam um ponto final na alternativa clássica entre o cosmos como essência imutável e eterna e o cosmos como futuro histórico e movimento permanente". Os
conceitos que procuravam um "campo
filosófico" no século 18, e que não possuíam nem Watteau nem Chardin, são
formulados em particular por Klee, ironicamente um herdeiro, entre outros, das
filosofias do século 19. "A paz sobre a terra é uma parada acidental do movimento da matéria. (...) O futuro está acima do
ser", escreve Klee.
Esses textos teóricos não deixam dúvidas: depois da influência do instante impressionista, a arte de Klee "torna visível"
o movimento, o dinamismo interno do
mundo. Mas eles confirmam, ademais,
que agora a função da pintura também é
retratar pictoricamente a visão filosófica
que o artista tem deste mundo.
É difícil, todavia, separar a filosofia de
Klee de sua doutrina pedagógica. Aliás, a
função didática esteve sempre presente
na história da arte e sobretudo na do século 20. Basta lembrar que os cursos de
Klee e Kandinsky desempenharam um
papel inigualável na Bauhaus, uma verdadeira academia de arte contemporânea. Sem a qual é possível que certas teorias de ensino, como as de Joseph Beuys,
nunca teriam existido.
No início do percurso de Klee, momento em que o impressionismo tinha se tornado praticamente oficial e o sereno discurso de ensinamento da Bauhaus não
existia ainda, essa atividade teórica completava a ruptura entre o art nouveau e a
arte consagrada. Mas havia também o aspecto político das teorias de certos artistas que, ao contrário dele, se distanciavam das questões propriamente estéticas.
Enquanto essas teorias revelavam a
grave crise pela qual atravessava a consciência pictórica moderna, o pensamento de Paul Klee se afastava das questões
do papel, do estatuto e da função representativa da pintura na sociedade. Ligando a política à arte, cuja posição tornava-se problemática, algumas teorias tentavam encontrar uma nova justificação para ela. As relações entre Gabo, Pevsner,
Kandinsky e Malevitch no interior da revolução soviética mostram muito bem a
urgência e a dificuldade dessa justificação.
Assim, da conjugação entre a obra e os
princípios que a acompanhavam, nascia
o sentido completo da atividade artística.
Para nenhum daqueles artistas, e muito
menos para Klee, a teoria constituiu uma
réplica de sua obra. Contudo, ao colocar
a pintura dentro do campo conceitual (e
didático) da cultura contemporânea,
Paul Klee foi o único a conseguir que dela
emanasse seu conteúdo filosófico. Ligando-se sempre à técnica, ao "fazer", ele
pôde ensinar e ao mesmo tempo preservar a significação original do seu mundo
pictórico.
Sheila Leirner é crítica de arte e autora de "Arte
como Medida" e "Arte e seu Tempo" (Perspectiva).
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