São Paulo, sábado, 13 de abril de 2002

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Música, escrita ou pintura?

O pensamento estético de Paul Klee

Sobre a Arte Moderna e Outros Ensaios
Paul Klee
Tradução: Pedro Süssekind
Jorge Zahar (Tel. 0/xx/21/2240-0226)
126 págs., R$ 19,00

SHEILA LEIRNER

Já era tempo de acrescentar o pensamento de Paul Klee à literatura sobre estética publicada no Brasil. As idéias deste mestre do século 20 não são apenas fundamentais para a compreensão da arte moderna, mas também para a percepção mais aguda de seu próprio processo artístico. Servem não só aos artistas, também ao espectador, aos críticos e aos historiadores. Pois, ao relacionar a técnica e o sentido -e ao fazer a teoria dos seus signos visuais-, Klee nos obriga a voltar à especificidade do "pensamento figurativo" e a respeitar a originalidade do campo pictórico. Campo que, apesar das relações com o domínio literário ou conceitual, não pode ser reduzido a ele.
O bem cuidado livro "Sobre a Arte Moderna e Outros Ensaios", embora bastante recopilado, representa um belo esforço para transmitir a função principal que sempre marcou a teoria dos artistas desde a sua origem até os dias de hoje: a prática do ensino. A esclarecedora introdução de Günther Regel, os pequenos e emotivos textos de Wassily Kandinsky, Rainer Maria Rilke e Robert Delaunay (traduzido por Klee), e alguns dados biográficos completam esta obra que reúne nove famosos ensaios e um currículo escritos pelo próprio artista.
Esta seleção, feita a partir de "Kunst-Lehre", publicado em 1987, muito bem traduzida por Pedro Süssekind (que sugeriu também alguns acréscimos ao original), revela o mesmo desvelo gráfico com a reprodução pontual de alguns sugestivos desenhos de anotação de Paul Klee. A única restrição está na ausência de dados sobre o autor do prefácio, pois o leitor infelizmente fica sem saber que Günther Regel é crítico e professor da Universidade de Leipzig, especialista em Joseph Beuys e conhecedor da cena artística contemporânea, sobretudo no que diz respeito à arte pedagógica (daí o seu interesse por Klee e por Beuys).
Música, escrita ou pintura? Para Klee, nascido em 1879 em Münchenbuchsee, perto de Berna, e morto em 1940, essa interrogação dominou os anos de aprendizado e determinou, até o final, o seu exercício criador. Se de um lado ele renunciou rapidamente à carreira de instrumentista, de outro continuou a se empenhar no pensamento e na prática musical. Seus escritos iam da introspecção à poesia, da teoria à didática da arte, e a pintura -a sua grande escolhida- conjugava continuamente as próprias modalidades com as das outras atividades.
Inclassificável, este "pintor-poeta" -como ele mesmo se definia- figura também entre os mais fecundos criadores. O seu catálogo conta com mais de 9.000 obras e a sua reflexão sobre a arte, pela amplidão, evoca sem dúvida nenhuma a de Leonardo da Vinci. Paul Klee se mantém como uma das personalidades determinantes do século 20 e uma referência irrecusável do pensamento estético atual.
Embora pouco extenso, esse compêndio revela da mesma forma ao público brasileiro que, nos limites da imagem de Klee, está a escrita. Fato que pode ser observado claramente também fora da teoria, na própria trajetória plástica do artista. Logo depois de sua participação no grupo "Blaue Reiter", por exemplo, os pictogramas (cruzes, estrelas, vegetais etc.) penetraram na superfície de sua pintura. A partir de 1930, um sistema de ideogramas pessoais tornou-se um modo frequente, expressivo e sedutor de significação.
De maneira inversa, a escrita alfabética tendia a "criar uma imagem". A letra isolada, transformada em símbolo, não raro cobria uma parte da figuração. E as palavras, enquanto atores ou índices, perseguiam livremente a iconografia. A ponto de excluírem qualquer universo significante e de transformarem as obras em "quadros-poemas". Enfim, os "alfabetos" de 1938 liberavam a escrita de suas convenções e lhe restituíam a imagem original. Assim, não ficou difícil Klee verificar que "escrever e desenhar" -os dois aspectos complementares de sua obra- "no fundo eram idênticos".
Mas, tanto nos ensaios do artista quanto no prefácio e nos anexos, este livro apresenta uma revolucionária filosofia da criação, na qual o ponto, a linha, o toque, os tons, a composição são os verdadeiros signos do artista. Klee propõe uma teoria da técnica como teoria dos signos pictóricos e vice-versa: "A arte não reproduz o visível, mas torna visível. (...) Os elementos formais da arte gráfica são: pontos, energias lineares, energias planas e energias espaciais. (...) O Gênesis como movimento formal constitui o essencial da obra".

A fabricação de sentidos
Ao lê-lo podemos claramente sentir aquilo a que ele se apega, o que se esforça em compreender e até onde vai a sua fabricação de sentidos. Muito além dos temas, a sua teoria permite alcançar o conteúdo da obra, pois o dinamismo pictórico do artista (segundo o qual a "formação" possui privilégio sobre a forma) liga-se à uma problemática interna da pintura, analisada anteriormente: a relação entre o esboço e a obra acabada.
Mas ele vai mais longe ainda. Explica que esse dinamismo existe como imagem do mundo: "A arte existe como imagem da criação. É um símbolo, assim como o mundo terrestre é um sinal do cosmos". A sua obra, "não representativa", permanece figurativa, imitativa mesmo: "Como quando uma criança nos imita em suas brincadeiras, nós também imitamos no jogo da arte as forças que criaram e criam o mundo", afirma.
As teorias de Paul Klee permitem decifrar a dimensão cósmica e ao mesmo tempo "terrena" da sua obra. Segundo o filósofo Daniel Arasse, "seus escritos colocam um ponto final na alternativa clássica entre o cosmos como essência imutável e eterna e o cosmos como futuro histórico e movimento permanente". Os conceitos que procuravam um "campo filosófico" no século 18, e que não possuíam nem Watteau nem Chardin, são formulados em particular por Klee, ironicamente um herdeiro, entre outros, das filosofias do século 19. "A paz sobre a terra é uma parada acidental do movimento da matéria. (...) O futuro está acima do ser", escreve Klee.
Esses textos teóricos não deixam dúvidas: depois da influência do instante impressionista, a arte de Klee "torna visível" o movimento, o dinamismo interno do mundo. Mas eles confirmam, ademais, que agora a função da pintura também é retratar pictoricamente a visão filosófica que o artista tem deste mundo.
É difícil, todavia, separar a filosofia de Klee de sua doutrina pedagógica. Aliás, a função didática esteve sempre presente na história da arte e sobretudo na do século 20. Basta lembrar que os cursos de Klee e Kandinsky desempenharam um papel inigualável na Bauhaus, uma verdadeira academia de arte contemporânea. Sem a qual é possível que certas teorias de ensino, como as de Joseph Beuys, nunca teriam existido.
No início do percurso de Klee, momento em que o impressionismo tinha se tornado praticamente oficial e o sereno discurso de ensinamento da Bauhaus não existia ainda, essa atividade teórica completava a ruptura entre o art nouveau e a arte consagrada. Mas havia também o aspecto político das teorias de certos artistas que, ao contrário dele, se distanciavam das questões propriamente estéticas.
Enquanto essas teorias revelavam a grave crise pela qual atravessava a consciência pictórica moderna, o pensamento de Paul Klee se afastava das questões do papel, do estatuto e da função representativa da pintura na sociedade. Ligando a política à arte, cuja posição tornava-se problemática, algumas teorias tentavam encontrar uma nova justificação para ela. As relações entre Gabo, Pevsner, Kandinsky e Malevitch no interior da revolução soviética mostram muito bem a urgência e a dificuldade dessa justificação.
Assim, da conjugação entre a obra e os princípios que a acompanhavam, nascia o sentido completo da atividade artística. Para nenhum daqueles artistas, e muito menos para Klee, a teoria constituiu uma réplica de sua obra. Contudo, ao colocar a pintura dentro do campo conceitual (e didático) da cultura contemporânea, Paul Klee foi o único a conseguir que dela emanasse seu conteúdo filosófico. Ligando-se sempre à técnica, ao "fazer", ele pôde ensinar e ao mesmo tempo preservar a significação original do seu mundo pictórico.


Sheila Leirner é crítica de arte e autora de "Arte como Medida" e "Arte e seu Tempo" (Perspectiva).



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