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Miragrafias
Mira Schendel
Maria Eduarda Marques
Cosac & Naify (Tel. 0/xx/11/3218-1444).
128 págs., R$ 43,00
RICARDO FABBRINI
A obra de Mira Schendel tornou-se mais conhecida, na última década, dentro e fora do Brasil, pois foi exposta na 22ª
Bienal de São Paulo, no Guggenheim de Nova York e no Jeu
de Paume, de Paris. Contribuindo para essa divulgação, foi
publicado, recentemente, o volume "Mira Schendel", na
"Coleção Espaços da Arte Brasileira". Este livro, de belo projeto gráfico, em que o texto respira, como os traços e linhas
das obras da artista, possui, além do ensaio "Estética da Expressividade Mínima", de Maria Eduarda Marques, uma
centena de ilustrações, útil cronologia e breve bibliografia. É
um livro que reconstrói, em texto e imagens, a trajetória da
artista, de 1952 a 1988, inscrevendo-a na tradição da arte moderna.
Mira Schendel reteve da Suíça, em que nasceu, em 1919, a
"kleegrafia", os delicados desenhos a lápis de Klee e as formas puras da geometria de Max Bill; preservou da Itália, onde estudou, o espaço vazio embebido de enigmas das naturezas mortas de Morandi, uma reação ao espaço órfico de
máquinas e multidões dos futuristas; e no Brasil, para onde
emigrou em 49, aproximou-se do concretismo paulista e do
neoconcretismo carioca, em particular de certas obras de
Lygia Clark e Hélio Oiticica, sem nunca recair no mero epigonismo.
De 54 a 64, Mira Schendel pintou quadros geométricos, de
pequenas dimensões, fundados em horizontais e verticais.
São pinturas que remetem a Max Bill e Mondrian, mas desses artistas se afastam, pela matéria, traço e cor empregados.
A matéria de suas pinturas é rugosa, pois a artista mistura,
ao óleo e à têmpera, grãos de areia, cimento, látex e gesso,
para só então aplicá-los ao suporte, em juta, tela ou madeira.
Os traços, contornos das formas geométricas, incorporando
o acaso, trepidam; e as cores, sempre escuras, evocam a cor
supostamente genuína da matéria: um tom pardo, situado
entre o ocre e o chumbo. O resultado é um neoplasticismo
brutalista ou um concretismo "povero", em que o rigor geométrico não se realiza em lisa superfície, como nesses construtivismos históricos, mas na aspereza dos materiais amalgamados.
Entre 64 e 66, Mira Schendel produziu a série "Monotipias", dividida pela crítica em "desenhos lineares" e "arquitetura". Em "desenhos lineares", a artista entinta uma lâmina de vidro, salpica-lhe talco, impedindo a pronta absorção
da tinta, e então desenha com unha ou ponta-seca, no verso
da folha de papel arroz, comprimida ao vidro. Surgem, então, linhas finas da cor de ferro ou de cobre, que não parecem ter sido inscritas pela artista, mas secretadas pelos poros
do papel. Essa técnica foi utilizada também nas "arquiteturas", mas, aqui, não há uma ou duas linhas, e sim vários traços indiciando figuras, como quadrados ou círculos, ou ainda "escrituras", letras, palavras e até mesmo frases.
Mira Schendel criou, de 67 a 73, "Objetos Gráficos", utilizando não apenas signos manuscritos, mas também letras e
números, datilografados ou adesivos. São objetos de até 1,2
m, alguns em forma de tondo, sustentados por fios de nylon,
em que os signos, gráficos ou não, prensados entre placas de
acrílico, gravitam no espaço da exposição. Essas grafias no
ar, que à primeira vista enviam ao tachismo de um Kline ou
ao grafite de um Haering, desses artistas também se distinguem, pois os signos, em mira, são discretos, diminutos, um
"memento mori" de comedimento oriental. Há também um
ar-de-família entre essa escrita e as invenções tipográficas de
Mallarmé, os "caligramas" de Apollinaire e a "verbovocovisualidade" da poesia concreta. As "miragrafias", todavia,
não são "poemas", mas a figuração de um estado anterior ao
nascimento das línguas, um regresso ao "in nato" das letras,
dos algarismos e de suas primeiras conexões. Numa monotipia de 65 vê-se, por exemplo, em meio a traços, análogos às
inscrições parietais, as letras "a", "k" e "e", sugerindo, em
seu "devir-escritura", a articulação da palavra "arkhé".
E num "objeto gráfico", de 68, o que temos é um enxame
de letras, pura entropia, figurando o rumor da língua: a artista -situando-se aquém ou além da poesia- faz, aqui, a língua tartamudear, sair dos sulcos, delirar, produzir uma língua esotérica no interior de uma língua normativa, investir,
em suma, contra as línguas maternas.
Nos anos 80, Mira Schendel retomou a têmpera sobre tela
ou madeira, sem a textura de suas antigas pinturas. São, agora, superfícies lisas, monocromáticas, riscadas por linhas a
bastão oleoso, como em "I Ching", de 81. Nessa série de
obras mínimas, mas não minimalistas, destituídas de simetria ou monotonia, há algumas, sem título, em que a artista
aplicou sobre campos de cores chapadas pequenas figuras
geométricas em folhas de prata ou ouro. Associando essas
obras à arte oriental, Haroldo de Campos vê nesses signos de
ouro e prata símiles dos sinetes da pintura chinesa e atribui
aos campos uniformes de cor o sentido que o vazio -"sunyata" ou "vácuo vivo"- possui na estética budista.
O percurso de Mira Schendel, aqui sintetizado, é descrito
com mais detalhes no livro de Maria Marques, que supre
uma lacuna editorial, pois contávamos, até então, apenas
com artigos de jornais ou catálogos de exposições, como o
da "Galeria de Arte do Sesi", de 97. Espera-se, contudo, que
esse livro motive outras publicações, como um inventário
exaustivo de suas inúmeras obras e uma interpretação dessa
produção, a partir dos referenciais teóricos, da religião e da
filosofia, mobilizados pela artista, em notas, cartas e entrevistas. Pois nesses referenciais talvez resida a chave da singularidade dessa arte de raiz construtiva, que não se esgota na
pura ótica, concreta ou minimal, pois busca na origem das
línguas e no âmago da matéria -na rugosidade das texturas, na translucidez do acrílico e na monocromia das superfícies- formas de transcendência. Mira Schendel, em seu
"sacro lavoro", toma a matéria como algo originário, sacrossanto, de uma obscuridade plena de segredos, como um
fundamento, enfim.
Ricardo Nascimento Fabbrini é professor do departamento de filosofia da
Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de "O Espaço de Lygia Clark"
(Atlas).
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