São Paulo, sábado, 13 de abril de 2002

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Velha revolucionária

A teoria quântica em sua vertente brasileira

Cem Anos de Física Quântica
Mahir S. Hussein e Silvio R.A. Salinas (orgs.)
Ed. Livraria da Física
(Tel. 0/xx/11/ 3816-7599)
220 págs., R$ 25,00

Unificando as Forças da Natureza
José Leite Lopes
Entrevistado por Jesus de Paula Assis
Ed. Unesp (Tel. 0/xx/11/3242-7171)
116 págs., R$ 12,00

MICHEL PATY

As revoluções têm vida longa, sobretudo nas ciências, em que a história jamais volta atrás, mesmo em aparência. A "revolução quântica" é centenária, como diz o título do livro organizado por Mahir Hussein e Silvio Salinas. Esta obra coletiva reúne os estudos apresentados em um simpósio realizado em São Paulo, no ano 2000, para comemorar o centenário da célebre palestra de Max Planck na Academia de Ciências de Berlim, em dezembro de 1900.
Comemorações desse gênero foram realizadas por todo o mundo, propiciando a ocasião para se fazer um balanço diversificado sobre os cem anos da "revolução quântica". Ao mesmo tempo, essas celebrações são um pouco a medida, para a comunidade científica e para o público culto, da vitalidade da física quântica nos diferentes lugares do mundo que dela se apropriaram e a desenvolveram (e o Brasil figura aí em uma posição muito boa).
Será digna de interesse uma comparação entre as diferentes obras que, sobre o mesmo motivo, aparecem em todos os cantos do mundo. Cada país, cada comunidade científica, sem dúvida se reconhece, nessa sinfonia universal, por pequenos detalhes, seja de referência, seja de interpretação, por "perfumes" particulares, que se associam às tradições que desenvolveram. Este livro testemunha a presença de uma tradição brasileira da física contemporânea, ou mesmo paulista, do Instituto de Física da USP.
A esse respeito, é significativo que a publicação do livro "Cem Anos de Física Quântica", que contém muitas informações sobre o estado da física, tenha sido concomitante com a de "Unificando as Forças da Natureza", um pequeno opúsculo de concepção totalmente diferente, pois trata-se de uma conversação livre com José Leite Lopes, um dos pioneiros da física teórica no Brasil.
José Leite Lopes doutorou-se em Princeton sob a orientação de Wolfgang Pauli, um dos grandes fundadores da mecânica quântica, e prestou importantes contribuições à física das partículas elementares e à teoria quântica dos campos, especialmente no domínio das simetrias e da unificação das interações fundamentais. Uma de suas idéias mais criativas foi propor, em 1958 (ou seja, dez anos antes da publicação da teoria de gauge eletrofraca, que valeu o prêmio Nobel a Glashow, Salam e Weinberg), a existência e as características de uma partícula neutra responsável pelas interações nucleares fracas. Sobre esse assunto, podemos ler as saborosas reflexões que tal episódio lhe inspirou.
Físico de projeção internacional, José Leite Lopes é também uma importante figura da ciência brasileira, por seu trabalho voltado ao ensino, por sua obra de fundador no plano institucional e por seu compromisso pessoal sem concessões com uma política de desenvolvimento científico e social. Esse engajamento ardente (pontuado por livros que têm marcado sua época) lhe valeu o ostracismo da ditadura militar: no exílio, ele deixou uma marca inesquecível na França, na Universidade de Orsay e sobretudo em Estrasburgo, em que foi acolhido de braços abertos pela Universidade Louis Pasteur e pelo Centro de Pesquisas Nucleares.
Alegra-nos ler suas observações fluentes, bem ao estilo da personalidade de seu autor, que tão fortemente marcou gerações de pesquisadores e professores de física no Brasil e em diversas partes do mundo (dos "três mundos"). Aguardamos com impaciência o testemunho de outros intelectuais de mesma verve, nos próximos volumes da coleção "Perfis Brasileiros".
Em suas lembranças, José Leite Lopes omitiu um aspecto de suas atividades que é pouco conhecido: seu interesse pela história e filosofia da ciência. Ele contribuiu para a obra preparada com nosso saudoso amigo comum Bruno Escoubès, "Sources et Évolution de la Physique Quantique" (Masson, 1994), e também estimulou encontros e seminários sobre os fundamentos da ciência, além de ter participado da revista "Fundamenta Scientiae", editada durante dez anos. Sem falar do memorável colóquio sobre "Meio Século de Mecânica Quântica" (Estrasburgo, 1974), que deu origem ao livro "Quantum Mechanics - A Half Century Later" (Reidel, 1977), organizado por José Leite Lopes e Michel Paty.

A mecânica quântica
O que é fascinante na física quântica é que ela sempre conservou seu quadro teórico fundamental, a "mecânica quântica", formulada por volta de 1926, a partir do qual se desenvolveram teorias dinâmicas extremamente poderosas que asseguraram a penetração em diferentes domínios de organização da matéria -da física atômica e subatômica até a astrofísica e a cosmologia.
Ao lermos as diversas contribuições de "Cem Anos de Física Quântica" é possível constatar que a física quântica, teórica e experimental, não constitui apenas uma poderosa ferramenta de descrição: é um meio de pensar, de conceber, tanto os fenômenos quanto os "sistemas físicos" que são a sua causa.
O aspecto histórico do período inicial nos é apresentado por Henrique Fleming, que mostra a que ponto o primeiro inventor, Max Planck, estava longe de suspeitar da natureza da revolução que desencadeou, contra a sua vontade.
Uma revolução fecunda, como revelam alguns exemplos de suas implicações mais recentes: "Estrutura de Átomos, Moléculas e Biomoléculas", de Sylvio Canuto; "As Estrelas e a Mecânica Quântica", de Mahir S. Hussein; "O Universo e a Mecânica Quântica", de Elcio Abdalla; "Caos Quântico e Hamiltonianas Aleatórias", de M.P. Pato; e "Do Átomo de Thomas-Fermi à Dinâmica Molecular Quântica", de Adalberto Fazzio. Tais assuntos ilustram como a física quântica se tornou o meio intelectual e material para investigar a matéria em suas várias dimensões.
Os outros temas abordados neste livro dizem respeito a aspectos também recentes da física quântica, mas ligados de maneira mais direta (mais elementar, no sentido de simples) a questões de compreensão fundamental. Aliás, seus desenvolvimentos prendem-se aos problemas de interpretação calorosamente discutidos por Bohr, Einstein, Schrödinger e outros, pois foram essas discussões que tornaram possível e efetivo que eles levassem em consideração um ponto de vista físico e mesmo experimental.
A não-separabilidade de sistemas quânticos que estiveram em interação, esta propriedade de "emaranhamento", responsável também pelo paradoxo do gato de Schrödinger, levou ao teorema das desigualdades de Bell e à "descoerência" de experiências atuais, que ilustram os fundamentos básicos. Esses são tópicos detalhadamente examinados nos capítulos "Schrödinger, Emaranhamento e Decoerência", de A.F.R. de Toledo Piza; "Desigualdades de Bell", de João C.A. Barata; e "Mecânica Quântica em Ação", de Paulo A. Nussenzveig.
Cem anos após os primeiros passos, parece-me que a mais clara lição é que a física quântica nos obrigou a pensar quanticamente -isto é, segundo conceitos propriamente quânticos, que não se reduzem aos clássicos- o mundo de fenômenos e de sistemas físicos reais. A "física quântica em ação" passa então a assumir o papel de uma "epistemologia prática", que torna real o conhecimento da natureza, instruindo-nos sobre o que estes dois não são (embora pouco antes tivéssemos desejado que fossem), mas também o que são, a saber, conhecimento e natureza.


Michel Paty é diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (França) e da Universidade Paris 7 e autor de "A Matéria Roubada" (Edusp).
Tradução de Caetano Ernesto Plastino.




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