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O frade erudito e rebelde
A obra e as lutas políticas de Frei Caneca
O Brasil de Frei Caneca
Evaldo Cabral de Mello (org.)
Editora 34
(Tel. 0/xx/11/3816-1777)
648 págs., R$ 44,00
MIRIAM DOLHNIKOFF
As primeiras décadas do século 19 foram de intensa agitação na América lusitana. Entre as personagens que assumiram papel relevante nos acontecimentos daqueles anos estava um erudito frade pernambucano que se tornou uma espécie de porta-voz
dos interesses de setores da elite de sua Província.
Frei Caneca teve uma atuação política breve, que se
iniciou com o seu envolvimento na revolta de 1817,
contra o domínio português e em defesa da autonomia de Pernambuco. Anos depois, em 1824, teria papel de liderança intelectual na rebelião que conflagrou a Província contra o regime monárquico centralizador de d. Pedro 1º, a chamada Confederação
do Equador. Reprimida a revolta, foi preso e executado.
Caneca deixou vários textos em que suas posições
aparecem com clareza e que permitem compreender
parte das questões em jogo no interior do processo
que, iniciado antes da Independência, resultaria no
Brasil que hoje conhecemos. Diferentes projetos de
Estado e nação estavam em pauta, e a historiografia
recente tem apontado a existência de diversas perspectivas políticas e sociais, cujo confronto seria decisivo na construção do novo país. Era preciso resolver
problemas centrais, como o modo de inserção dos
trabalhadores livres pobres no interior da nova nação (ou sua exclusão política), a continuidade ou não
da escravidão, o perfil institucional que deveria prevalecer. Este último ponto encerrava uma questão
fundamental: o lugar das elites regionais no interior
desse Estado. As diversas partes que compunham a
América lusitana não estavam fadadas necessariamente a integrar-se. Para os grupos dominantes nas
diferentes regiões, a unidade só seria aceitável se garantida sua autonomia para gerir as Províncias sem
excessiva intervenção do governo central.
Frei Caneca conhecia as doutrinas e problemas de
seu tempo. Em seus textos aparecem os debates que
marcaram a época, como a definição de pátria e de
cidadão, o regime constitucional etc. Esgrimindo
conceitos e teoria, Caneca participava da discussão
que envolvia parte da elite brasileira do período.
Mas suas posições eram pautadas pelos interesses
dos grupos que integrava. Em seu horizonte estavam
as demandas de parte da elite pernambucana, em
confronto com projetos implementados a partir do
Rio de Janeiro e com aqueles defendidos por outros
grupos da Província. Se não havia unidade no âmbito nacional, também não havia no provincial. Como
diz Evaldo Cabral de Mello em sua introdução, em
Pernambuco facções dominantes com interesses divergentes acalentavam projetos distintos. Sem falar
nos demais setores sociais, que não encontravam lugar no Brasil político imaginado pelo frade. Os escravos e os trabalhadores livres pobres deveriam ficar
de fora no novo Estado.
República e democracia
Nesse sentido, a república, pela qual Caneca lutou
na Confederação do Equador, não era, no seu entender, sinônimo de democracia. O regime republicano
não era nem sequer, como nota Cabral de Mello, sua
prioridade. A monarquia poderia ser o caminho, se
garantida a autonomia político-administrativa das
elites regionais e sua influência nas decisões do governo central. A monarquia, desde que constitucional e descentralizada, poderia ser a solução para adequar as demandas autonomistas ao desejo de controle sobre os demais setores sociais. O império
constitucional, nas palavras do frade, "colocado entre a monarquia e o governo democrático, reúne em
si as vantagens de uma e de outra forma, e repulsa
para longe os males de ambas. Agrilhoa o despotismo e estanca os furores do povo indiscreto e volúvel".
Em confronto com o desenho institucional arquitetado no Rio de Janeiro, Caneca e seus pares articulavam-se em torno de outro, que estava longe de ser
a mera expansão de interesses localistas. Tratava-se
de um projeto nacional apresentado por grupos regionais empenhados na construção do Estado e que
assumiram nesse processo o perfil de elite política,
para quem as demandas localistas tinham que ser
enquadradas nos novos padrões políticos vigentes.
A defesa da ordem escravista, o que incluía não apenas a continuidade da escravidão, mas também a garantia de controle social sobre as demais camadas,
impunha a organização de um Estado forte, nacional.
Mas isso não significava necessariamente um regime centralizado. Para os grupos dominantes nas diversas regiões importava combinar unidade e autonomia. E, desse ponto de vista, a centralização não
seria a garantia da unidade, mas sim o fator que a colocaria em risco, conforme afirmava o próprio Caneca, ao acusar o regime centralizador estabelecido pela Constituição de 1824 "de estabelecer a desligação
das províncias entre si, e fazê-las todas dependentes
do governo executivo, e reduzir a mesma nação a diversas bordas de povos desligados e indiferentes entre si, para melhor poder em última análise estabelecer-se o despotismo asiático". A unidade só seria viável se garantida a autonomia regional. Um projeto
que, do ponto de vista institucional, encaixava-se no
modelo federalista.
A leitura dos textos de Caneca é orientada por Cabral de Mello, um dos principais historiadores brasileiros e que tem se dedicado à análise da história de
Pernambuco. Seu objeto é a história regional. Em
sua introdução, ele sintetiza sua visão sobre o contexto no qual estava inserido o frade: as disputas políticas em Pernambuco, as difíceis relações com o
Rio de Janeiro, o sentido do projeto autonomista. O
ponto central de seu ensaio é demonstrar a existência de um projeto alternativo de Estado e de nação,
que teria sucumbido às imposições do regime centralizado. Cabral de Mello busca na peculiaridade da
história pernambucana as origens do projeto autonomista de sua elite.
É importante ressaltar que esse projeto não era exclusivo de Pernambuco. Nas demais Províncias, os
interesses regionais impunham também a defesa de
um arranjo institucional que acomodasse no seu interior a diversidade de interesses e demandas. O lugar das elites regionais no interior do Estado brasileiro era um problema central do jogo político. Pode-se
supor, inclusive, que tenha sido justamente a presença de um ponto comum entre as demandas pernambucanas e as das demais regiões, a reivindicação autonomista, que conferiu a Caneca, na posteridade,
uma estatura maior do que a de apenas uma liderança regional. Seu projeto de Estado encontrava eco
em outras partes da América lusitana. A disposição
comum para lutar pelo modelo federativo conferiu
força aos grupos de dominação regional, de tal modo que, se a centralização prevaleceu em um primeiro momento, a reação desses grupos foi capaz de forçar a abdicação de d. Pedro 1º em 1831 -e a partir
daí um novo modelo de Estado foi adotado. Nele a
autonomia regional foi consagrada e os grupos dominantes nas Províncias passaram a ter interferência
decisiva na condução do país. Desde então a história
política brasileira tem sido a história de arranjos e
rearranjos que prevêem maior ou menor autonomia
para as regiões, oscilando entre modelos mais ou
menos descentralizados. Mas as elites regionais conquistaram, a partir da década de 1830, seu lugar no
interior desse Estado e, nesse sentido, o projeto de
Frei Caneca foi afinal vencedor.
Miriam Dolhnikoff é doutora em história e pesquisadora do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
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