São Paulo, sábado, 13 de abril de 2002

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Retrato da barbárie

Contracorrente -
O Melhor da New Left Review
Emir Sader (org.)
Record (Tel. 0/xx/21/2585-2000)
322 págs., R$ 35,00

CRISTINA DINIZ MENDONÇA

"Para você não há meio-termo. Não se iluda". Essa advertência, extraída do universo romanesco de Stendhal e reatualizada por F. Moretti num ensaio de teoria literária que integra "Contracorrente", é o fio que define a cor dos ensaios políticos do livro. Não se trata aqui de ilustrar textos políticos com referências literárias, mas de sugerir um bom ponto de partida na leitura desta coletânea: o nexo interno entre assuntos e gêneros diversos, como se as faces literária, política e econômica do livro convergissem para um ponto de fuga comum. Quando se olha para esse ponto, vê-se que o elemento integrador dos vários assuntos específicos é uma perspectiva mais ampla de resistência (termo com o qual Jameson designa a plataforma de uma oposição anti-sistêmica). Aí reside o núcleo duro da coletânea, que põe em relevo o que a "New Left Review" tem de melhor: a tentativa de recuperar, em tempos de tão pouca resistência, o sentido histórico de uma intelectualidade de oposição.
O que o livro diz sobre o presente político? Nesta prova dos nove está uma razão substantiva para lê-lo, pois os acontecimentos recentes o tornaram ainda mais atual. Escritos cerca de um ano antes dos atentados nos EUA e da guerra no Afeganistão, vários artigos da coletânea revelaram-se proféticos -porque forneceram elementos que permitem atinar com a lógica que permeia as relações de força política numa época regida pela lei do capital "one world".
Com efeito, os artigos de "Contracorrente" constituem um arsenal capaz de livrar o leitor da surpresa de quem viu os acontecimentos de 11 de setembro como raio numa manhã de céu azul. A contraprova seria o movimento inverso, isto é, tentar ver esses acontecimentos não com os olhos ainda turvados pela poeira do World Trade Center, mas sim voltados para um horizonte histórico mais amplo, no qual esse desfecho (ou limiar) trágico não é senão um momento, mais precisamente, um ponto crucial de interseção de várias linhas de força que cortam a cena contemporânea, e onde se expõe o nó da atualidade político-econômica.
A radiografia da parte mais intricada desse nó está estampada no artigo de Perry Anderson: "Consenso neoliberal, fórmula vencedora para selar a vitória do mercado". O que foi trocado em miúdos por Jameson, para quem a "nova versão do imperialismo" resume-se na "subordinação dos demais Estados-nação ao americano, seja pela colaboração ou pelo uso da força bruta e da ameaça econômica".
Vistas as coisas da perspectiva da lógica desse sistema mundial (forçadamente) unificado, os bombardeios ao Afeganistão são apenas mais uma das investidas do império para destroçar um de seus últimos estorvos: o fundamentalismo islâmico. Graças a uma mídia domesticada, essa política de terra arrasada é vendida com o rótulo de "liberdade", "democracia" e "modernidade". O que implica uma dupla operação: a construção do mito do islamismo militante e a desumanização dos "condenados da terra". Daí a oposição estereotipada entre sociedades "liberais" e povos alheios aos valores democráticos. Estamos, assim, diante da estrutura básica de toda ideologia: separar o que está reunido e transformar interesses particulares em universais. Bem antes do contra-ataque do império, Jameson já denunciava as "pretensões de universalismo dos EUA", que servem para justificar "intervenções militares de estilo policial". Por detrás do caráter naif da propalada "luta do Bem contra o Mal" move-se a astúcia da "razão instrumental".
Juntando os diversos materiais oferecidos por esta coletânea, o leitor vai dar com a cerrada rede de mediações entre os dois lados em conflito ou o vínculo estrutural entre todos os acontecimentos na sociedade globalizada. A irracionalidade dos atos do megaterror evidenciou a irracionalidade do próprio sistema -particularmente na nova figura do capital mundializado, cujo núcleo irracional só se mostra em momentos de crise aguda, mas cuja natureza destrutiva é sentida no dia-a-dia dos milhões que sofrem seus golpes. Portanto, fanatismo e irracionalidade de todos os lados, sintomas de grave patologia social, forma exasperada do "mal-estar na civilização". O surto de terror religioso é o outro aspecto do surto do terror econômico. Como que confirmando o "colapso da modernização", o elemento "externo" que nega a ordem dominante só pôde emergir do interior das contradições dessa mesma ordem.
Essas contradições já afloravam todavia onde menos se esperava: Hollywood, o "centro nervoso da ideologia americana", na definição de Slavoj Zizek. Tornou-se lugar-comum assinalar o parentesco entre o imaginário hollywoodiano e o "espetáculo" terrorista, mas, para chegar aos fundamentos da antecipação do novo tipo de megaterror nos velhos clichês do cinema-catástrofe, seria preciso atingir o coração do sistema. Essa antecipação só foi possível porque aspectos do próprio processo social em curso terminaram irrompendo por uma espécie de "rachadura" da forma cinematográfica, algo como uma "falha" correndo entre o mundo e a visão do mundo.
Incorporando sem querer acontecimentos sedimentados na memória coletiva do país, porém recalcados, Hollywood acabou, ironicamente, antecipando a visão aterradora dos atentados. É como se o cinema deixasse brotar pelas frestas da ficção seu "outro" recalcado. A condição da ostensiva exposição do lado eternamente belo e jovial do mundo cultivado nas fantasias de Hollywood é o horrendo retrato real escondido. O que se viu em 11 de setembro, ao vivo e sem retoques, foi o retrato secreto da "civilização do dinheiro" -a barbárie. No ato trágico dos terroristas condensou-se o resultado do processo de modernização: o sujeito soterrado pela avalanche do capital.
Dessa terrível lição das coisas fica, para a esquerda, a advertência feita no artigo de Zizek, e que ecoa de ponta a ponta na coletânea, sobre o alto preço a pagar quando se renuncia a um "projeto político radical" e se aceita "o capitalismo de mercado como o único jogo em andamento". A crítica do terror do fundamentalismo islâmico não pode prescindir da crítica do terror do fundamentalismo econômico. Essa a condição necessária para que o trabalho do luto cumpra a sua função, culminando numa liberação. O WTC só será uma "verdadeira ruína" (para falar na língua de Hegel) se for capaz de despertar a "consciência sonolenta", transformando-a em consciência crítica -crítica radical do capitalismo mundializado. Aqui também não há meio-termo.


Cristina Diniz Mendonça é doutora em filosofia pela USP.



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