São Paulo, sábado, 13 de abril de 2002

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Veredas do poder

O historiador José Murilo de Carvalho escreve sobre a trajetória de um funcionário de nossa Monarquia

Um Funcionário da Monarquia - Ensaio sobre o Segundo Escalão
Antonio Candido
Ouro sobre Azul (Tel. 0/xx/21/2527-1230)
216 págs., R$ 120,00

JOSÉ MURILO DE CARVALHO

O funcionalismo público é uma chaga que devora as rendas públicas, escreveu o visconde do Uruguai em 1862. "O funcionalismo é um cancro que devora e aniquila as forças do país", ecoou Castro Carreira em 1889. Uma casta inútil de funcionários e doutores suga os cofres da nação, continuou Tobias Monteiro em 1916. O erário, a administração, a nação são um animal multimâmico "de cujos peitos se dependuram, aos milhares, as crias vorazes (...) para cuja gana insaciável não há desmame", esbravejou Rui Barbosa em 1920. A burocracia é um estamento que desde as origens do país se contrapõe aos interesses da nação, completou Raymundo Faoro em 1958.
Em chave oposta, mas não menos enfática, Joaquim Nabuco chamava os funcionários públicos de servos da gleba do governo, mal pagos e submissos ao poder. Isso, no entanto, não impedia, segundo ele, que a burocracia fosse a vocação de todos, que os pretendentes a emprego público equivalessem ao número de homens alfabetizados, sobretudo o dos ricos decadentes, expulsos da grande agricultura, e o dos pobres inteligentes, que nela não tinham ingresso. A essa lista de pretendentes, Sílvio Romero e Tobias Monteiro acrescentavam os bacharéis desempregados.
Tanta ênfase e tanta controvérsia indicam a importância social e sociológica do funcionalismo público. Examinando os números, a burocracia durante o Império não era nem tão grande nem tão danosa aos cofres públicos como parecem indicar as citações. Em 1877, o funcionalismo do governo central, incluindo padres e militares, não chegava a 55 mil pessoas, numa população de 10 milhões. Acrescentando-se os funcionários das Províncias e municípios, chegava-se a um total de cerca de 79 mil. Os gastos com pessoal também não eram escandalosos. Em 1889, giravam em torno de 60% da receita, número que subiu a 65% em 1907. Os gastos recentes com o funcionalismo, sobretudo em Estados e municípios, eram muito superiores a essa cifra, o que levou à aprovação de lei que os limita a 60% da receita orçamentária.
Mas a grande visibilidade do funcionalismo não era fruto de imaginação. Ela provinha da centralização política. Quase 70% dos funcionários públicos pertenciam ao governo central, apenas 25% às Províncias e 6% aos municípios. A introdução do federalismo pela Constituição de 1891 alterou esse padrão. Mesmo assim, em 1920, 56% dos funcionários ainda pertenciam ao governo federal. O contraste com os EUA era grande. Em 1930, os funcionários federais desse país constituíam apenas 18% do total. Outro fator de visibilidade era a concentração dos funcionários gerais na cidade do Rio de Janeiro. Cerca de 15% da população ocupada da corte eram funcionários públicos, um número substancial. A corte concentrava a elite política, mas era também foco de atração para todos os que queriam fazer carreira nas letras, nas artes, na burocracia ou nas três coisas ao mesmo tempo, de vez que as esferas de atividades não se separavam com nitidez. Ela era a arena por excelência da luta por status, poder e riqueza. Para ela corriam todos os que ambicionavam as três coisas. E podemos concordar com Nabuco que essa gente era formada sobretudo de pessoas socialmente móveis, para baixo ou para cima. Os descendentes queriam manter posições ameaçadas servindo-se das benesses do poder. Os ascendentes buscavam veredas para o poder, nem que fosse apenas nas antecâmaras burocráticas. Estes últimos eram os pobres inteligentes de que falava Nabuco.
Estudos de carreiras de pobres inteligentes na corte que flagrem suas motivações e valores, que examinem suas estratégias de ascensão funcional e social, que explorem a trama das relações sociais dentro dos círculos do poder podem trazer preciosa contribuição para o entendimento da sociedade da época, complementando visões de natureza macro-sociológica.
Esse intróito é para justificar a saudação ao novo livro de Antonio Candido sobre Antônio Nicolau Tolentino, funcionário da Monarquia. Obra completada em 1985 e originalmente não destinada à publicação, aparece agora em primorosa edição. O livro é excelente demonstração de quanto se pode dizer mesmo na ausência de riqueza de fontes e vasta bibliografia. Escrito com elegância e despojamento, ele nos fornece "flashes" da vida de um funcionário público que fez seu caminho desde a base até o topo da carreira servindo-se das armas do sistema para fazer valer a honestidade e a competência. Sem pretensão acadêmica, mas dotado de acuidade analítica e fina intuição, o livro contribui para o entendimento do século 19, sobretudo no que se refere a dois pontos: os caminhos da mobilidade social na sociedade imperial e o lugar do mérito em um mundo dominado pelo patronato e o empenho.
Antônio Nicolau Tolentino era um dos pobres inteligentes de que falava Nabuco. Filho de lavradores de São Gonçalo, conseguiu educar-se, não se sabe até que nível, e, como muitos outros jovens ambiciosos, sucumbiu à atração da corte. Aos 27 anos, já era segundo escriturário do Tesouro Nacional. Aos 35, foi nomeado inspetor interino da Alfândega, cargo muito cobiçado, e recebeu a Ordem da Rosa. Nessa mesma idade, deu o passo indispensável para os que pretendiam ascender na escala social e serem aceitos nos altos círculos da sociedade: casar-se com a pessoa certa. Abandonou a amante com quem tinha duas filhas e se casou com uma filha de fazendeiros, aparentada a famílias importantes da Província. O dote, e depois a legítima da esposa, aliados aos bons salários do Tesouro, lhe permitiram vida de burguesa tranquilidade. Aos 45 anos, aposentou-se pelo Tesouro e recebeu o título de conselheiro.

Percurso típico
Daí até a morte, em 1888, aos 78 anos, longevidade excepcional para a época, o conselheiro Tolentino ocupou vários outros postos, como a presidência da Província do Rio de Janeiro, a presidência da Caixa Econômica e da Academia Imperial de Belas Artes, cujos vencimentos se somavam aos da aposentadoria. Um presidente de Província de primeira classe, como era a do Rio de Janeiro, ganhava 8 contos por ano, apenas quatro contos a menos que um ministro de Estado. Ao morrer, deixou espólio de 221 contos, muito superior ao do visconde do Uruguai, um dos políticos mais influentes da época. A viúva do visconde ganhou do Estado pensão de um conto e 400 mil-réis para se sustentar e educar três filhos menores.
O percurso de Tolentino não foi único. Outros funcionários da época seguiram trajetórias parecidas. Um deles foi João Batista Calógeras, nascido no mesmo ano que Tolentino, em 1810, grego da ilha de Corfu, que foi funcionário exemplar dos ministérios do Império e dos Negócios Estrangeiros. As cartas em forma de diário escritas por ele à família nos revelam outro percurso de êxito baseado na competência. Sem ligações familiares, o grande trunfo de Calógeras foi sua cultura. Ela lhe valeu a proteção de políticos esclarecidos, como o Marquês de Abrantes. Chegado ao Brasil em 1841, em 1859 foi contratado como primeiro oficial do ministério dos Negócios Estrangeiros. O fato de ser poliglota lhe valeu posição estratégica nesse ministério, sobretudo durante a Questão Christie e a Guerra contra o Paraguai. Despachava na casa do Ministro que, às vezes, jantava em sua casa. Aposentou-se em 1874 como chefe de seção do Ministério do Império, com ordenado de cinco contos. Ganhou a Ordem da Rosa e morreu em 1878 em boas condições financeiras. Seu neto, João Pandiá Calógeras, foi figura de destaque na política e nas letras da Primeira República.
Outros recursos podiam ser mobilizados por pobres inteligentes para furar as barreiras sociais. Um deles era o talento jornalístico. Um jornalista bom de briga era indispensável aos partidos numa época em que a imprensa era tão importante, se não mais, que a tribuna. A habilidade com a pena fez ascenderem os mulatos Justiniano José da Rocha e Sales Torres Homem, o último até o topo da elite, apesar de filho de mãe quitandeira e pai desconhecido. Mesmo a probabilidade do casamento salvador dependia muitas vezes da posse de algum talento. Como bem definiu Gilberto Freyre, o genrismo consistia na capacidade de pais ricos, mas pouco educados, de localizarem jovens de posses modestas, mas promissores pelo talento. O próprio visconde do Uruguai era filho de médico, nascido em Paris, sem conexões familiares importantes. Talento e amizades certas o levaram a casamento com a filha de um fazendeiro fluminense, dando-lhe a base social de que precisava.
Mas como combinar o mérito com o empenho, com o patronato que, segundo todas as evidências, dominavam a política da época? Rui Barbosa, quando ministro da Fazenda, teve que enfrentar o dilema frente a frente. Choveram pedidos sobre sua mesa, uns de candidatos a emprego, outros de empregados, reclamando promoções, transferências, aposentadorias. Dividido entre a convicção da necessidade de uma burocracia racional e as exigências do patronato, vindas de todo lado, inclusive do marechal presidente e dos colegas de ministério, ele se entregou à missão impossível de tentar combinar as duas coisas. O animal multimâmico o derrotou no Ministério e sem dúvida contribuiu para suas derrotas nas tentativas de chegar à Presidência.
No caso de Tolentino, é sintomático que os maiores conflitos lhe tenham vindo quando, já aposentado, ocupou cargo político, como o de presidente da Província do Rio de Janeiro, e semipolítico, como o de inspetor da Alfândega. Na presidência, quis profissionalizar o serviço público, obrigando os funcionários a residirem em Niterói. Esbarrou na resistência dos deputados provinciais, inclusive do republicano Saldanha Marinho e dos funcionários de nível superior. Foi derrotado. Na Alfândega, lugar dos mais cobiçados pelas possibilidades de ganhos extras (leiam-se propinas), trombou com poderosos políticos defensores de contrabandistas. Saiu de maneira inglória.

Moeda de troca
O exame do caso de Tolentino e de outros semelhantes revela a natureza ambígua do sistema. A tradição patrimonialista e a sociedade com escassas oportunidades de mobilidade social ascendente valorizavam o emprego público, sobretudo na corte, como fonte de renda, de status e de poder. O emprego público tornava-se moeda indispensável de troca política. Por outro lado, o sistema político estável e excessivamente centralizado permitia estreita supervisão do chefe de Estado sobre a formação e a ação da elite política. Parte dessa elite tinha os pés em dois mundos, o mundo do ideal europeu de civilização e o mundo da sociedade escravista e patrimonial. O liberalismo tinha que ser compatibilizado com o escravismo, o interesse público com o privado, a racionalidade da administração com o clientelismo, o mérito com o empenho. Uma das saídas era criar ilhas de mérito no serviço público, utilizando, ironicamente, os mecanismos do patronato. Tolentino sempre teve a proteção de Rio Branco, Calógeras, a do marquês de Abrantes, Justiniano, a de Uruguai. A estabilidade do sistema e a complexidade das redes de proteção, abrangendo os dois partidos, permitiam que essas ilhas sobrevivessem às constantes mudanças de governo permitindo que se desenvolvesse, nas palavras de Antonio Candido, "um serviço público provavelmente singular na América Latina".
O texto de Antonio Candido é extraordinariamente valorizado pela iconografia pesquisada por Fernanda Carvalho e editada por Ana Luísa Escorel, também responsável pelo projeto gráfico. A excelente apresentação gráfica tem sido a marca dos livros com que a Editora Ouro sobre Azul vem estreando no mercado editorial.


José Murilo de Carvalho é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro.



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