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Veredas do poder
O historiador José Murilo de Carvalho escreve sobre
a trajetória de um funcionário de nossa Monarquia
Um Funcionário da
Monarquia - Ensaio sobre
o Segundo Escalão
Antonio Candido
Ouro sobre Azul (Tel. 0/xx/21/2527-1230)
216 págs., R$ 120,00
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
O funcionalismo público é uma chaga
que devora as rendas públicas, escreveu o
visconde do Uruguai em 1862. "O funcionalismo é um cancro que devora e aniquila as forças do país", ecoou Castro
Carreira em 1889. Uma casta inútil de
funcionários e doutores suga os cofres da
nação, continuou Tobias Monteiro em
1916. O erário, a administração, a nação
são um animal multimâmico "de cujos
peitos se dependuram, aos milhares, as
crias vorazes (...) para cuja gana insaciável não há desmame", esbravejou Rui
Barbosa em 1920. A burocracia é um estamento que desde as origens do país se
contrapõe aos interesses da nação, completou Raymundo Faoro em 1958.
Em chave oposta, mas não menos enfática, Joaquim Nabuco chamava os funcionários públicos de servos da gleba do
governo, mal pagos e submissos ao poder. Isso, no entanto, não impedia, segundo ele, que a burocracia fosse a vocação de todos, que os pretendentes a emprego público equivalessem ao número
de homens alfabetizados, sobretudo o
dos ricos decadentes, expulsos da grande
agricultura, e o dos pobres inteligentes,
que nela não tinham ingresso. A essa lista
de pretendentes, Sílvio Romero e Tobias
Monteiro acrescentavam os bacharéis
desempregados.
Tanta ênfase e tanta controvérsia indicam a importância social e sociológica do
funcionalismo público. Examinando os
números, a burocracia durante o Império
não era nem tão grande nem tão danosa
aos cofres públicos como parecem indicar as citações. Em 1877, o funcionalismo
do governo central, incluindo padres e
militares, não chegava a 55 mil pessoas,
numa população de 10 milhões. Acrescentando-se os funcionários das Províncias e municípios, chegava-se a um total
de cerca de 79 mil. Os gastos com pessoal
também não eram escandalosos. Em
1889, giravam em torno de 60% da receita, número que subiu a 65% em 1907. Os
gastos recentes com o funcionalismo, sobretudo em Estados e municípios, eram
muito superiores a essa cifra, o que levou
à aprovação de lei que os limita a 60% da
receita orçamentária.
Mas a grande visibilidade do funcionalismo não era fruto de imaginação. Ela
provinha da centralização política. Quase
70% dos funcionários públicos pertenciam ao governo central, apenas 25% às
Províncias e 6% aos municípios. A introdução do federalismo pela Constituição
de 1891 alterou esse padrão. Mesmo assim, em 1920, 56% dos funcionários ainda pertenciam ao governo federal. O contraste com os EUA era grande. Em 1930,
os funcionários federais desse país constituíam apenas 18% do total. Outro fator
de visibilidade era a concentração dos
funcionários gerais na cidade do Rio de
Janeiro. Cerca de 15% da população ocupada da corte eram funcionários públicos, um número substancial. A corte concentrava a elite política, mas era também
foco de atração para todos os que queriam fazer carreira nas letras, nas artes, na
burocracia ou nas três coisas ao mesmo
tempo, de vez que as esferas de atividades
não se separavam com nitidez. Ela era a
arena por excelência da luta por status,
poder e riqueza. Para ela corriam todos
os que ambicionavam as três coisas. E podemos concordar com Nabuco que essa
gente era formada sobretudo de pessoas
socialmente móveis, para baixo ou para
cima. Os descendentes queriam manter
posições ameaçadas servindo-se das benesses do poder. Os ascendentes buscavam veredas para o poder, nem que fosse
apenas nas antecâmaras burocráticas. Estes últimos eram os pobres inteligentes
de que falava Nabuco.
Estudos de carreiras de pobres inteligentes na corte que flagrem suas motivações e valores, que examinem suas estratégias de ascensão funcional e social, que
explorem a trama das relações sociais
dentro dos círculos do poder podem trazer preciosa contribuição para o entendimento da sociedade da época, complementando visões de natureza macro-sociológica.
Esse intróito é para justificar a saudação ao novo livro de Antonio Candido sobre Antônio Nicolau Tolentino, funcionário da Monarquia. Obra completada
em 1985 e originalmente não destinada à
publicação, aparece agora em primorosa
edição. O livro é excelente demonstração
de quanto se pode dizer mesmo na ausência de riqueza de fontes e vasta bibliografia. Escrito com elegância e despojamento, ele nos fornece "flashes" da vida
de um funcionário público que fez seu caminho desde a base até o topo da carreira
servindo-se das armas do sistema para
fazer valer a honestidade e a competência. Sem pretensão acadêmica, mas dotado de acuidade analítica e fina intuição, o
livro contribui para o entendimento do
século 19, sobretudo no que se refere a
dois pontos: os caminhos da mobilidade
social na sociedade imperial e o lugar do
mérito em um mundo dominado pelo
patronato e o empenho.
Antônio Nicolau Tolentino era um dos
pobres inteligentes de que falava Nabuco.
Filho de lavradores de São Gonçalo, conseguiu educar-se, não se sabe até que nível, e, como muitos outros jovens ambiciosos, sucumbiu à atração da corte. Aos
27 anos, já era segundo escriturário do
Tesouro Nacional. Aos 35, foi nomeado
inspetor interino da Alfândega, cargo
muito cobiçado, e recebeu a Ordem da
Rosa. Nessa mesma idade, deu o passo
indispensável para os que pretendiam ascender na escala social e serem aceitos
nos altos círculos da sociedade: casar-se
com a pessoa certa. Abandonou a amante
com quem tinha duas filhas e se casou
com uma filha de fazendeiros, aparentada a famílias importantes da Província. O
dote, e depois a legítima da esposa, aliados aos bons salários do Tesouro, lhe permitiram vida de burguesa tranquilidade.
Aos 45 anos, aposentou-se pelo Tesouro
e recebeu o título de conselheiro.
Percurso típico
Daí até a morte, em 1888, aos 78 anos,
longevidade excepcional para a época, o
conselheiro Tolentino ocupou vários outros postos, como a presidência da Província do Rio de Janeiro, a presidência da
Caixa Econômica e da Academia Imperial de Belas Artes, cujos vencimentos se
somavam aos da aposentadoria. Um presidente de Província de primeira classe,
como era a do Rio de Janeiro, ganhava 8
contos por ano, apenas quatro contos a
menos que um ministro de Estado. Ao
morrer, deixou espólio de 221 contos,
muito superior ao do visconde do Uruguai, um dos políticos mais influentes da
época. A viúva do visconde ganhou do
Estado pensão de um conto e 400 mil-réis
para se sustentar e educar três filhos menores.
O percurso de Tolentino não foi único.
Outros funcionários da época seguiram
trajetórias parecidas. Um deles foi João
Batista Calógeras, nascido no mesmo ano
que Tolentino, em 1810, grego da ilha de
Corfu, que foi funcionário exemplar dos
ministérios do Império e dos Negócios
Estrangeiros. As cartas em forma de diário escritas por ele à família nos revelam
outro percurso de êxito baseado na competência. Sem ligações familiares, o grande trunfo de Calógeras foi sua cultura. Ela
lhe valeu a proteção de políticos esclarecidos, como o Marquês de Abrantes. Chegado ao Brasil em 1841, em 1859 foi contratado como primeiro oficial do ministério dos Negócios Estrangeiros. O fato
de ser poliglota lhe valeu posição estratégica nesse ministério, sobretudo durante
a Questão Christie e a Guerra contra o Paraguai. Despachava na casa do Ministro
que, às vezes, jantava em sua casa. Aposentou-se em 1874 como chefe de seção
do Ministério do Império, com ordenado
de cinco contos. Ganhou a Ordem da Rosa e morreu em 1878 em boas condições
financeiras. Seu neto, João Pandiá Calógeras, foi figura de destaque na política e
nas letras da Primeira República.
Outros recursos podiam ser mobilizados por pobres inteligentes para furar as
barreiras sociais. Um deles era o talento
jornalístico. Um jornalista bom de briga
era indispensável aos partidos numa época em que a imprensa era tão importante,
se não mais, que a tribuna. A habilidade
com a pena fez ascenderem os mulatos
Justiniano José da Rocha e Sales Torres
Homem, o último até o topo da elite, apesar de filho de mãe quitandeira e pai desconhecido. Mesmo a probabilidade do
casamento salvador dependia muitas vezes da posse de algum talento. Como bem
definiu Gilberto Freyre, o genrismo consistia na capacidade de pais ricos, mas
pouco educados, de localizarem jovens
de posses modestas, mas promissores pelo talento. O próprio visconde do Uruguai era filho de médico, nascido em Paris, sem conexões familiares importantes.
Talento e amizades certas o levaram a casamento com a filha de um fazendeiro
fluminense, dando-lhe a base social de
que precisava.
Mas como combinar o mérito com o
empenho, com o patronato que, segundo
todas as evidências, dominavam a política da época? Rui Barbosa, quando ministro da Fazenda, teve que enfrentar o dilema frente a frente. Choveram pedidos sobre sua mesa, uns de candidatos a emprego, outros de empregados, reclamando
promoções, transferências, aposentadorias. Dividido entre a convicção da necessidade de uma burocracia racional e as
exigências do patronato, vindas de todo
lado, inclusive do marechal presidente e
dos colegas de ministério, ele se entregou
à missão impossível de tentar combinar
as duas coisas. O animal multimâmico o
derrotou no Ministério e sem dúvida
contribuiu para suas derrotas nas tentativas de chegar à Presidência.
No caso de Tolentino, é sintomático
que os maiores conflitos lhe tenham vindo quando, já aposentado, ocupou cargo
político, como o de presidente da Província do Rio de Janeiro, e semipolítico, como o de inspetor da Alfândega. Na presidência, quis profissionalizar o serviço público, obrigando os funcionários a residirem em Niterói. Esbarrou na resistência
dos deputados provinciais, inclusive do
republicano Saldanha Marinho e dos
funcionários de nível superior. Foi derrotado. Na Alfândega, lugar dos mais cobiçados pelas possibilidades de ganhos extras (leiam-se propinas), trombou com
poderosos políticos defensores de contrabandistas. Saiu de maneira inglória.
Moeda de troca
O exame do caso de Tolentino e de outros semelhantes revela a natureza ambígua do sistema. A tradição patrimonialista e a sociedade com escassas oportunidades de mobilidade social ascendente
valorizavam o emprego público, sobretudo na corte, como fonte de renda, de status e de poder. O emprego público tornava-se moeda indispensável de troca política. Por outro lado, o sistema político estável e excessivamente centralizado permitia estreita supervisão do chefe de Estado sobre a formação e a ação da elite
política. Parte dessa elite tinha os pés em
dois mundos, o mundo do ideal europeu
de civilização e o mundo da sociedade escravista e patrimonial. O liberalismo tinha que ser compatibilizado com o escravismo, o interesse público com o privado,
a racionalidade da administração com o
clientelismo, o mérito com o empenho.
Uma das saídas era criar ilhas de mérito
no serviço público, utilizando, ironicamente, os mecanismos do patronato. Tolentino sempre teve a proteção de Rio
Branco, Calógeras, a do marquês de
Abrantes, Justiniano, a de Uruguai. A estabilidade do sistema e a complexidade
das redes de proteção, abrangendo os
dois partidos, permitiam que essas ilhas
sobrevivessem às constantes mudanças
de governo permitindo que se desenvolvesse, nas palavras de Antonio Candido,
"um serviço público provavelmente singular na América Latina".
O texto de Antonio Candido é extraordinariamente valorizado pela iconografia
pesquisada por Fernanda Carvalho e editada por Ana Luísa Escorel, também responsável pelo projeto gráfico. A excelente
apresentação gráfica tem sido a marca
dos livros com que a Editora Ouro sobre
Azul vem estreando no mercado editorial.
José Murilo de Carvalho é professor de história
na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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