São Paulo, sábado, 13 de julho de 2002

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A tourada como tragédia

Espellho da Tauromaquia
Michel Leiris
Tradução: Samuel Titan Jr.
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/3218-1444)
80 págs., R$ 20,00

ELIANE ROBERT MORAES

Dos 90 anos que viveu, Michel Leiris passou mais da metade escrevendo sua autobiografia. Iniciado em 1930 -quando começou a redigir "L'Âge d'Homme", incitado por um tratamento psicanalítico-, seu projeto autobiográfico prevaleceu até mesmo sobre a vocação de etnólogo: resultado de uma longa expedição pela África, o livro "L'Afrique Fantôme" é sobretudo um diário pessoal do viajante que, ao conhecer o outro, empreende a descoberta de si. Foi, porém, com a publicação dos quatro volumes de "La Règle du Jeu" que o escritor renovou definitivamente as convenções da autobiografia, dando ao gênero uma contribuição equivalente à que "Em Busca do Tempo Perdido", de Proust, representa para o romance.
Projeto arriscado, sem dúvida, à medida que colocava o autor no centro do texto, desfazendo as fronteiras entre vida e obra. Para realizá-lo, Leiris transformou-se em personagem de sua literatura, mas sem ceder à composição de uma narrativa linear cujo herói seria construído à sua imagem. Antes, ele preferiu dialogar com uma série de mitos, antigos ou modernos, que atuavam como pontos de identificação, oferecendo-lhe espelhos nos quais podia se contemplar. Entre as referências dessa mitologia pessoal, a tauromaquia ocupa um lugar especial.
Já na versão original de "L'Âge d'Homme", o autor atentava para o impacto que os espetáculos das touradas lhe produziam: "Quando assisto a uma corrida, tenho a tendência de me identificar ora com o touro, no instante em que a espada é enterrada no seu corpo, ora com o toureiro, que corre o risco de ser morto (talvez emasculado?) por um golpe de chifre, no momento em que ele afirma o mais categoricamente sua virilidade".
Foi justamente esse golpe de chifre, e os perigos a ele subjacentes, que Leiris analisou a fundo num ensaio notável, em que investiga a tauromaquia como "um esquema análogo ao da tragédia antiga". Escrito em 1938 e só agora editado no Brasil em excelente tradução, é um livro no qual o escritor assume o "parti pris" do toureiro desde a composição do texto, avançando engenhosamente sobre o tema, numa reflexão que se torna, a cada passe, mais e mais arrojada.
A idéia de sagrado percorre todo o ensaio. Leiris parte de um diagnóstico sombrio de sua época, ao aludir à incapacidade moderna de dar respostas às exigências de certos espetáculos violentos que, na qualidade de "lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo", colocam em jogo a totalidade da existência humana. Na ordem geral das coisas, tais espetáculos teriam a função de "nos pôr em contato com o que há em cada qual de mais profundamente íntimo, de mais cotidianamente turvo e mesmo de mais impenetravelmente oculto".
Percebem-se aí ecos de Nietszche, de quem Leiris foi leitor assíduo, já que o livro evoca o espírito da tragédia, em declínio num mundo marcado pela racionalização da crueldade. Tal evocação está na base das concepções de alguns dos mais lúcidos pensadores de sua geração, todos eles empenhados em interrogar a violência humana fora dos discursos humanistas que, desgastados na afirmação de um bem universal e abstrato, se revelavam mera retórica diante das evidências históricas de que o mal dizia respeito a toda a humanidade. Entre eles estava Artaud, que Leiris conheceu na década de 20 quando ambos se aproximaram do surrealismo, e o amigo Georges Bataille, com quem fundou o Colégio de Sociologia, dedicado aos estudos de "antropologia mística".
Contudo, embora compartilhasse dessa nostalgia do sagrado -que buscava conferir um sentido religioso à violência, vinculando o mal ao rito-, a visada de Leiris não era a mesma que a de seus contemporâneos. Menos apocalíptico que Artaud e menos enfático que Bataille, o discreto autor de "O Espelho da Tauromaquia" não se propôs a fundar um espaço próprio, como foi o teatro da crueldade para o primeiro e a sociedade secreta "Acéphale" para o segundo. Antes, preferiu valorizar as manifestações trágicas ainda vivas no mundo em que habitava.
Se, no plano individual, reconhecia as faíscas do sagrado em certos rituais da infância -como expôs num texto capital, "Le Sacré dans la Vie Quotidienne", em que recorda suas brincadeiras de criança-, no plano coletivo só a tauromaquia era capaz de lhe provocar tal revelação. Com efeito, a instituição da corrida representa para Leiris o único rito moderno a assumir o aspecto de um desses "fatos reveladores que esclarecem partes obscuras de nós mesmos", na condição de "espelhos" que guardam a imagem de nossa emoção.
À medida que contém um princípio trágico, diz o autor, a tauromaquia não é apenas um esporte, mas uma arte. Como tal, ela se estrutura sobre uma disciplina rígida em que as noções de ritmo, harmonia e equilíbrio são fundamentais. Porém, diversamente de outras manifestações estéticas, a corrida comporta um risco que macula a própria idéia de beleza da arte, introduzindo um elemento acidental que "arranca o belo de sua estagnação glacial". Por manter em contínua tensão esses dois pólos -regra e exceção-, a tourada abriga um jogo violento de contrastes, cujos equivalentes só se encontram nos atos humanos que desencadeiam experiências passionais.
Não é por outra razão que Leiris aproxima a tauromaquia do transe religioso e da vertigem erótica: o contato do matador com o perigo exterior condensado nos chifres do touro sugere, por um curto espaço de tempo, o mesmo desejo de fusão entre sujeito e objeto que caracteriza os estados de êxtase. O passe do toureiro é um movimento rumo à plenitude que, chegando a um paroxismo, tangencia o contato fatal, do qual o homem só consegue escapar por um triz. Diante dessa implacável ameaça de morte, a tauromaquia intervém com o elemento sagrado do sacrifício, oferecendo ao público extasiado um espelho no qual a imagem da finitude humana pode enfim ser contemplada.
Mais que um aficionado, Michel Leiris não só se projetou nesse espelho como fez dele o arquétipo sagrado de sua própria atividade literária. Em 1946, ele incluiu um prefácio em "L'Âge d'Homme", intitulado "De la Littérature Considerée comme une Tauromachie", no qual comparava seu texto a uma arena, em que o exercício da arte implicava um risco de vida. Estando então comprometido por inteiro com o projeto de escrever sobre si mesmo, aceitou o desafio de se colocar no centro da arena, expondo-se ao perigo de morte que repousa no horizonte de toda obra autobiográfica.


Eliane Robert Moraes é professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autora, entre outros livros, de "Sade - A Felicidade Libertina" (Imago).



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