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Imitação e emulação
A "Ilíada" brasileira de Haroldo de Campos
A Ilíada - Volume 1
Homero
Tradução: Haroldo de Campos
Mandarim
(Tel. 0/xx/11/3649-4600)
488 págs., R$ 52,00
JACYNTHO LINS BRANDÃO
Borges dizia que, graças a seu "oportuno desconhecimento do grego", a "Odisséia" era, para ele, "uma biblioteca internacional de obras em prosa e verso". Foi
porque se submeteram a apropriações
em diversas línguas que os poemas homéricos se tornaram referenciais para
um vasto leque de literaturas, processo
que principia quando, no século 3 a.C.,
Lívio Andrônico inaugura a literatura latina com uma tradução da "Odisséia" em
versos satúrnios.
O livro que agora se oferece ao público é
mais um volume dessa tradição bimilenar. Atente-se na folha de rosto: o autor é
Haroldo de Campos; o título de sua obra,
a "Ilíada de Homero". Folheie-se o volume e constate-se que ele traz dois poemas: a própria e antiga "Ilíada", em grego, nas páginas da esquerda; a nova (e
não menos própria) "Ilíada" brasileira, à
direita.
Percorram-se os cantos e admire-se o
notável equilíbrio dos textos postos lado
a lado, a exata coincidência entre o número de seus versos (a aparente exceção,
no fim do oitavo canto, deve-se apenas a
erro banal de numeração). Confirme-se
essa impressão visual com a leitura em
voz alta dos alexandrinos, que fluem, sem
pedantice, com solene majestade.
Não há dúvida de que Haroldo de Campos confirma um domínio invejável da
arte de traduzir, ou melhor, do que ele
mesmo chama de "transcriação". O que
isso significa? Antes de tudo, que o tradutor deve imbuir-se ao máximo de disposição mimética em face do autor. Mas
não basta: é mister disputar com o modelo, até que um se torne o outro, na tradução autoral.
Pode-se pois aplicar à (boa) tradução a
fórmula dos antigos: não há "mimesis"
sem "zélosis" (isto é: não há imitação sem
emulação). Mais ainda, conforme o Pseudo-Longino: do mesmo modo que a pitonisa é inspirada pelo vapor divino, que
sobe da fenda de Delfos, assim também
do gênio dos antigos exalam certos eflúvios para as almas dos que os invejam
-o que implica que os antigos escritores
podem assumir o papel do deus. Dizendo
de outro modo: se a musa do tradutor é
sempre um texto alheio, o bom tradutor
será aquele que o tome enquanto tal.
Nesse sentido, o presente trabalho é a
prova de fogo para um poeta que, se já experimentara as armas noutros campos,
nunca tinha afrontado este êmulo sem
dúvida ímpar, pois, conforme as palavras
do próprio Haroldo, registradas por Trajano Vieira: "Homero não decai; a "Ilíada"
não tem recheio: oscila entre o Pico de
Agulhas Negras e o Himalaia".
Biblioteca brasileira
Contudo, este novo livro não compete,
na biblioteca internacional de Borges,
apenas com congêneres estrangeiros, já
que o Brasil tem sido pródigo em traduções de Homero (ao contrário do que
acontece em Portugal). Bem pesadas, pelo menos duas merecem referência: no
século 19, as de Odorico Mendes, em decassílabos de tal arrojo poético que tornam penosa a leitura; no século 20, as de
Carlos Alberto Nunes, que seguem mais a
disposição do enunciado homérico, mas
perdem em densidade poética. No confronto, percebe-se como a mão madura
de Haroldo de Campos achou o tom exato para a "Ilíada" brasileira do século 21.
Compare-se a famosa abertura do poema, que desafia os tradutores por principiar com "mênin" (ira), termo adjetivado
apenas no começo do segundo verso por
"ouloménen" (ruinosa). Odorico Mendes decidiu transferir o substantivo para
junto do adjetivo e escreveu: "Canta-me,
ó deusa, do Peleio Aquiles/ A ira tenaz,
que lutuosa aos Gregos/ Verdes no Orço,
lançou mil fortes almas". Nunes preferiu
deslocar o adjetivo, numa solução mais
explicativa: "Canta-me a cólera -ó deusa!- funesta de Aquiles Pelida,/ causa
que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos
sem conta/ e de baixarem para o Hades as
almas de heróis numerosos/ e esclarecidos".
Já Campos principia assim: "A ira, Deusa, celebra, do Peleio Aquiles,/ o irado
desvario, que aos Aqueus tantas penas/
trouxe, e incontáveis almas arrojou no
Hades/ de valentes, de heróis". Além de,
como Homero, principiar com a "ira",
encontrou uma opção que ultrapassa a de
seus antecessores, pois, se é verdade que
"o irado desvario" não se lê em grego, a
ressonância com "a ira" inaugural obtém
um efeito condizente com a dicção homérica, em que "mênin" ecoa em "ouloménen".
Nessa liberdade regulada pelo estético
repousa a virtude da nova "Ilíada". O leitor curioso poderá seguir como os textos
dialogam: assim, foi abandonado o verso
188 do canto 4, constituído por uma fórmula "dicendi" (vertida, numa outra
ocorrência, por "o supremo Agamêmnon respondeu dizendo", 2º, 365), o que
faz os discursos de Menelau e Agamêmnon sucederem-se sem maiores interrupções (assumindo um caráter mais dramático). Conquistado o espaço de um
verso, o texto português (que é naturalmente mais prolixo) pôde antecipar-se ligeiramente ao grego, para mais à frente
acertar com ele o passo e fechar com o
mesmo número de versos. Como numa
batalha, em que é preciso saber avançar e
recuar.
Esses exemplos mostram que no livro
de Haroldo não se encontrará o Homero
dos filólogos, tampouco o dos antropólogos, pois uns e outros acabam por reduzi-lo a um enorme quebra-cabeça cujas peças só têm interesse quando desmontadas. Quem habita o volume é o Homero
dos poetas (aquele das Agulhas Negras e
do Himalaia), cuja obra, há mais de 2.300
anos, sempre se recria por manter essa
espantosa capacidade de interessar, arrebatar e emocionar leitores de séculos, culturas e línguas diferentes. Então se entende o quanto ela deve às traduções, com
todas as suas vicissitudes: nas mãos dos
medíocres, faz-se medíocre; na dos apenas corretos, apenas correta. E só não
perde em excelência quando topa com
autênticos poetas.
É ainda Borges quem lembra como, na
dicção homérica, é difícil separar "o que
pertence ao poeta e o que pertence à linguagem". Os epítetos são um capítulo
importante dessa coalescência entre fundo e forma. Tanto que os especialistas se
dividem, considerando-os ora meros
mecanismos destinados a preencher as
unidades métricas, ora recursos aplicados com consciente precisão a personagens ou fatos.
Quem traduz deve então ter sensibilidade para ser poético sem perder a naturalidade dos fatos de linguagem. Campos
faz, em geral, boas opções: "Aquiles pés-velozes" (que Nunes verteu por "de rápidos pés" e Mendes por "velocípede"),
"Apolo flechicerteiro" (Mendes: "Longe-vibrador") etc. Decerto poderia encontrar alternativas melhores para o abuso
de hífens em soluções como "o-que-a-Moira-espreita", "o-que-lança-raios",
"urbe-de-amplas-ruas" -e outras com
gosto dos anos 70, que destoam não só da
índole do português, como da destreza de
seu autor.
São breves quedas do Himalaia, que entretanto não tiram o mérito do trabalho.
Afinal, conforme Horácio, até mesmo o
antigo poeta, de vez em quando, "dormitat" -mas o que vale, garante o nosso
Machado, é que "a vigília de Homero paga os seus cochilos". O mesmo se pode
aplicar a este volume exemplar que a perícia de Haroldo de Campos acaba de
acrescentar não só à vasta biblioteca de
Borges, quanto à nossa, em especial.
Jacyntho Lins Brandão é professor de língua e literatura grega na Universidade Federal de Minas
Gerais e autor, entre outros livros, de "A Poética
do Hipocentauro" (Editora da UFMG).
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