São Paulo, sábado, 13 de julho de 2002

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Imitação e emulação

A "Ilíada" brasileira de Haroldo de Campos

A Ilíada - Volume 1
Homero
Tradução: Haroldo de Campos
Mandarim
(Tel. 0/xx/11/3649-4600)
488 págs., R$ 52,00

JACYNTHO LINS BRANDÃO

Borges dizia que, graças a seu "oportuno desconhecimento do grego", a "Odisséia" era, para ele, "uma biblioteca internacional de obras em prosa e verso". Foi porque se submeteram a apropriações em diversas línguas que os poemas homéricos se tornaram referenciais para um vasto leque de literaturas, processo que principia quando, no século 3 a.C., Lívio Andrônico inaugura a literatura latina com uma tradução da "Odisséia" em versos satúrnios.
O livro que agora se oferece ao público é mais um volume dessa tradição bimilenar. Atente-se na folha de rosto: o autor é Haroldo de Campos; o título de sua obra, a "Ilíada de Homero". Folheie-se o volume e constate-se que ele traz dois poemas: a própria e antiga "Ilíada", em grego, nas páginas da esquerda; a nova (e não menos própria) "Ilíada" brasileira, à direita.
Percorram-se os cantos e admire-se o notável equilíbrio dos textos postos lado a lado, a exata coincidência entre o número de seus versos (a aparente exceção, no fim do oitavo canto, deve-se apenas a erro banal de numeração). Confirme-se essa impressão visual com a leitura em voz alta dos alexandrinos, que fluem, sem pedantice, com solene majestade.
Não há dúvida de que Haroldo de Campos confirma um domínio invejável da arte de traduzir, ou melhor, do que ele mesmo chama de "transcriação". O que isso significa? Antes de tudo, que o tradutor deve imbuir-se ao máximo de disposição mimética em face do autor. Mas não basta: é mister disputar com o modelo, até que um se torne o outro, na tradução autoral.
Pode-se pois aplicar à (boa) tradução a fórmula dos antigos: não há "mimesis" sem "zélosis" (isto é: não há imitação sem emulação). Mais ainda, conforme o Pseudo-Longino: do mesmo modo que a pitonisa é inspirada pelo vapor divino, que sobe da fenda de Delfos, assim também do gênio dos antigos exalam certos eflúvios para as almas dos que os invejam -o que implica que os antigos escritores podem assumir o papel do deus. Dizendo de outro modo: se a musa do tradutor é sempre um texto alheio, o bom tradutor será aquele que o tome enquanto tal.
Nesse sentido, o presente trabalho é a prova de fogo para um poeta que, se já experimentara as armas noutros campos, nunca tinha afrontado este êmulo sem dúvida ímpar, pois, conforme as palavras do próprio Haroldo, registradas por Trajano Vieira: "Homero não decai; a "Ilíada" não tem recheio: oscila entre o Pico de Agulhas Negras e o Himalaia".

Biblioteca brasileira
Contudo, este novo livro não compete, na biblioteca internacional de Borges, apenas com congêneres estrangeiros, já que o Brasil tem sido pródigo em traduções de Homero (ao contrário do que acontece em Portugal). Bem pesadas, pelo menos duas merecem referência: no século 19, as de Odorico Mendes, em decassílabos de tal arrojo poético que tornam penosa a leitura; no século 20, as de Carlos Alberto Nunes, que seguem mais a disposição do enunciado homérico, mas perdem em densidade poética. No confronto, percebe-se como a mão madura de Haroldo de Campos achou o tom exato para a "Ilíada" brasileira do século 21.
Compare-se a famosa abertura do poema, que desafia os tradutores por principiar com "mênin" (ira), termo adjetivado apenas no começo do segundo verso por "ouloménen" (ruinosa). Odorico Mendes decidiu transferir o substantivo para junto do adjetivo e escreveu: "Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles/ A ira tenaz, que lutuosa aos Gregos/ Verdes no Orço, lançou mil fortes almas". Nunes preferiu deslocar o adjetivo, numa solução mais explicativa: "Canta-me a cólera -ó deusa!- funesta de Aquiles Pelida,/ causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta/ e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos/ e esclarecidos".
Já Campos principia assim: "A ira, Deusa, celebra, do Peleio Aquiles,/ o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas/ trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades/ de valentes, de heróis". Além de, como Homero, principiar com a "ira", encontrou uma opção que ultrapassa a de seus antecessores, pois, se é verdade que "o irado desvario" não se lê em grego, a ressonância com "a ira" inaugural obtém um efeito condizente com a dicção homérica, em que "mênin" ecoa em "ouloménen".
Nessa liberdade regulada pelo estético repousa a virtude da nova "Ilíada". O leitor curioso poderá seguir como os textos dialogam: assim, foi abandonado o verso 188 do canto 4, constituído por uma fórmula "dicendi" (vertida, numa outra ocorrência, por "o supremo Agamêmnon respondeu dizendo", 2º, 365), o que faz os discursos de Menelau e Agamêmnon sucederem-se sem maiores interrupções (assumindo um caráter mais dramático). Conquistado o espaço de um verso, o texto português (que é naturalmente mais prolixo) pôde antecipar-se ligeiramente ao grego, para mais à frente acertar com ele o passo e fechar com o mesmo número de versos. Como numa batalha, em que é preciso saber avançar e recuar.
Esses exemplos mostram que no livro de Haroldo não se encontrará o Homero dos filólogos, tampouco o dos antropólogos, pois uns e outros acabam por reduzi-lo a um enorme quebra-cabeça cujas peças só têm interesse quando desmontadas. Quem habita o volume é o Homero dos poetas (aquele das Agulhas Negras e do Himalaia), cuja obra, há mais de 2.300 anos, sempre se recria por manter essa espantosa capacidade de interessar, arrebatar e emocionar leitores de séculos, culturas e línguas diferentes. Então se entende o quanto ela deve às traduções, com todas as suas vicissitudes: nas mãos dos medíocres, faz-se medíocre; na dos apenas corretos, apenas correta. E só não perde em excelência quando topa com autênticos poetas.
É ainda Borges quem lembra como, na dicção homérica, é difícil separar "o que pertence ao poeta e o que pertence à linguagem". Os epítetos são um capítulo importante dessa coalescência entre fundo e forma. Tanto que os especialistas se dividem, considerando-os ora meros mecanismos destinados a preencher as unidades métricas, ora recursos aplicados com consciente precisão a personagens ou fatos.
Quem traduz deve então ter sensibilidade para ser poético sem perder a naturalidade dos fatos de linguagem. Campos faz, em geral, boas opções: "Aquiles pés-velozes" (que Nunes verteu por "de rápidos pés" e Mendes por "velocípede"), "Apolo flechicerteiro" (Mendes: "Longe-vibrador") etc. Decerto poderia encontrar alternativas melhores para o abuso de hífens em soluções como "o-que-a-Moira-espreita", "o-que-lança-raios", "urbe-de-amplas-ruas" -e outras com gosto dos anos 70, que destoam não só da índole do português, como da destreza de seu autor.
São breves quedas do Himalaia, que entretanto não tiram o mérito do trabalho. Afinal, conforme Horácio, até mesmo o antigo poeta, de vez em quando, "dormitat" -mas o que vale, garante o nosso Machado, é que "a vigília de Homero paga os seus cochilos". O mesmo se pode aplicar a este volume exemplar que a perícia de Haroldo de Campos acaba de acrescentar não só à vasta biblioteca de Borges, quanto à nossa, em especial.


Jacyntho Lins Brandão é professor de língua e literatura grega na Universidade Federal de Minas Gerais e autor, entre outros livros, de "A Poética do Hipocentauro" (Editora da UFMG).



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