|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Dramaturgia americana
Panorama do Rio Vermelho
Ensaios sobre Teatro
Norte-Americano Moderno
Iná Camargo Costa
Nankin Editorial
(Tel. 0/xx/11/3106-7567)
176 págs., R$ 24,90
MARIA SÍLVIA BETTI
"Panorama do Rio Vermelho"
nasceu do interesse da autora pelo
teatro brasileiro e pela observação
dos destinos do drama no país.
Levada a investigar a forma como se dera a implantação da modernidade no teatro norte-americano, Iná Camargo Costa realizou
um levantamento no qual um dado recorrente se apresentava: a
sistemática supressão do componente político de experiências teatrais significativas do contexto
norte-americano. Experiências de
grande alcance (como as do Federal Theater Project, por exemplo)
haviam sido sistematicamente
omitidas dos capítulos da história
oficial, alterando o teor da discussão acerca do teatro norte-americano em termos amplos; isso, por
sua vez, trazia repercussões significativas para os estudos teatrais
num país como o Brasil, em que a
dramaturgia norte-americana
moderna exerceu papel modelar.
Apoiando-se numa conjunção
de elementos das áreas de estudos
da cultura e da literatura comparada, o estudo de Iná respalda-se
no trabalho de Roberto Schwarz e
no recém-traduzido trabalho de
Peter Szondi sobre as questões
teóricas do drama moderno.
Aplicando o conceito de "idéias
fora do lugar", de Schwarz, ela frisa o fato de, até a Segunda Guerra,
os EUA terem sido um país culturalmente periférico em relação à
Europa. Isso lhe permite explicar,
por exemplo, a pouca repercussão do trabalho de um dramaturgo como Elmer Rice a despeito de
seu caráter política e formalmente
pioneiro.
Com o intuito de mapear as
questões cruciais do teatro norte-americano moderno em seu nascedouro, Iná realiza um balanço
das principais questões políticas e
estéticas das três primeiras décadas do século 20. O papel exercido
pelos chamados "teatrinhos"
("little theaters") é analisado, e o
debate das tensões teóricas e conceituais entre dramaturgia e encenação é esboçado em suas linhas
gerais. Paralelamente, o contato
com o trabalho de inovadores da
dramaturgia como Antoine,
Hauptmann e Gorki é diretamente relacionado à atuação de grupos amadores ligados à enorme
massa de imigrantes de procedência européia.
O mapeamento realizado completa-se com o exame da trajetória da esquerda norte-americana
das três primeiras décadas do século 20. Com o intuito de discutir
o papel exercido pelo Partido Comunista nesse período, Iná discute a tática utilizada de arregimentação através de iniciativas culturais, estratégia que lhe permite penetrar no âmbito do sindicalismo
industrial dominado pela American Federation of Labor (AFL).
Numa etapa consecutiva da
análise, sua atenção se volta para
as dificuldades enfrentadas pelo
PC a partir de meados dos anos
30, quando as concessões que faz
levam-no ao abandono das críticas à AFL e à adesão ao governo
Roosevelt e ao realismo.
A análise das questões políticas
e ideológicas dentro da história
cultural do país é encabeçada pela
discussão do papel dos "pageants" e da International Workers of the World (a IWW), entidade anarco-sindicalista de luta
pelos direitos dos trabalhadores.
Uma vez traçadas essas linhas
gerais de contextualização e análise, Iná se volta sobre a discussão
dos fatores que teriam legitimado,
por parte da grande crítica, o hábito de passar ao largo de experiências de grande envergadura
estética e política. Examina, assim, o conjunto de medidas governamentais denominado Red
Scare, materializado através de
iniciativas responsáveis por uma
verdadeira paranóia nacional em
relação à possível articulação de
um movimento conspiratório comunista.
Outro segmento de importância
em "Panorama do Rio Vermelho"
é o de releitura crítica do trabalho
de nomes expressivos do cânone
dramatúrgico norte-americano,
seja no que diz respeito à forma,
seja no tocante à recepção crítica
suscitada por seus trabalhos.
Existem igualmente omissões
constatadas a reportar, como é o
caso do já mencionado Elmer Rice, autor de "The Adding Machine" ("A Máquina de Somar"),
obra-prima do expressionismo
teatral, recentemente encenada
pelo grupo Ocamorana, de São
Paulo.
Bem diversos são os casos dos
dramaturgos componentes da célebre tríade da dramaturgia norte-americana do século 20, Eugene O'Neill, Arthur Miller e Tennessee Williams. Numa estratégia
de abordagem sintomaticamente
recorrente no período da Guerra
Fria, a ênfase das abordagens recai, na análise de seus trabalhos,
sobre a ressonância dos aspectos
biográficos dentro do plano dramatúrgico.
Também a esse respeito o aspecto das supressões é o mais
conclusivo: suprime-se a natureza
política de peças das fases iniciais
de O'Neill, dentre as quais "Emperor Jones", "All God's Chillun
Got Wings" e "The Hairy Ape",
analisado e discutido detalhadamente.
No caso de Tennessee Williams,
como observa Iná, o próprio público da Broadway já se encontrava condicionado, com o aval da
grande crítica, a fixar o olhar sobre as questões biográficas em detrimento das posições críticas
apresentadas pelo autor. Já no tocante a Miller, em cujo trabalho a
obsessão biográfica da crítica é
menos preponderante, o resultado não se altera tanto no sentido
do teor da análise: os elementos
épicos são subestimados ou omitidos, e o argumento de que as peças políticas "pregam a convertidos" é evocado de modo a chancelar as prerrogativas do sistema
empresarial norte-americano,
que consagra a perspectiva realista e psicologizante como padrão
de excelência e de profundidade
insuperável.
O material tratado ilumina
questões de indiscutível interesse
não apenas para o processo de
aclimatação da dramaturgia norte-americana no Brasil, mas para
a abertura de novos parâmetros
para se pensar a própria experiência brasileira. Empreendendo seu
panorama sem receio dos preconceitos que o termo poderá suscitar no meio acadêmico, Iná não se
furta a levantar bandeiras e a desafiar seu leitor, seja no sentido de
olhar velhas questões com novos
olhos, seja no de procurar, nas
sendas históricas das lutas do teatro do século 20, remar contra a
corrente e percorrer as águas caudalosas do rio vermelho do teatro
norte-americano.
Maria Sílvia Betti é professora do departamento de letras modernas da USP e
autora de "Oduvaldo Vianna Filho"
(Edusp).
Texto Anterior: Sobre o Modernismo Próximo Texto: Entre os mares Índice
|