São Paulo, sábado, 13 de julho de 2002

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Dramaturgia americana

Panorama do Rio Vermelho Ensaios sobre Teatro Norte-Americano Moderno
Iná Camargo Costa
Nankin Editorial
(Tel. 0/xx/11/3106-7567)
176 págs., R$ 24,90

MARIA SÍLVIA BETTI

"Panorama do Rio Vermelho" nasceu do interesse da autora pelo teatro brasileiro e pela observação dos destinos do drama no país.
Levada a investigar a forma como se dera a implantação da modernidade no teatro norte-americano, Iná Camargo Costa realizou um levantamento no qual um dado recorrente se apresentava: a sistemática supressão do componente político de experiências teatrais significativas do contexto norte-americano. Experiências de grande alcance (como as do Federal Theater Project, por exemplo) haviam sido sistematicamente omitidas dos capítulos da história oficial, alterando o teor da discussão acerca do teatro norte-americano em termos amplos; isso, por sua vez, trazia repercussões significativas para os estudos teatrais num país como o Brasil, em que a dramaturgia norte-americana moderna exerceu papel modelar.
Apoiando-se numa conjunção de elementos das áreas de estudos da cultura e da literatura comparada, o estudo de Iná respalda-se no trabalho de Roberto Schwarz e no recém-traduzido trabalho de Peter Szondi sobre as questões teóricas do drama moderno.
Aplicando o conceito de "idéias fora do lugar", de Schwarz, ela frisa o fato de, até a Segunda Guerra, os EUA terem sido um país culturalmente periférico em relação à Europa. Isso lhe permite explicar, por exemplo, a pouca repercussão do trabalho de um dramaturgo como Elmer Rice a despeito de seu caráter política e formalmente pioneiro.
Com o intuito de mapear as questões cruciais do teatro norte-americano moderno em seu nascedouro, Iná realiza um balanço das principais questões políticas e estéticas das três primeiras décadas do século 20. O papel exercido pelos chamados "teatrinhos" ("little theaters") é analisado, e o debate das tensões teóricas e conceituais entre dramaturgia e encenação é esboçado em suas linhas gerais. Paralelamente, o contato com o trabalho de inovadores da dramaturgia como Antoine, Hauptmann e Gorki é diretamente relacionado à atuação de grupos amadores ligados à enorme massa de imigrantes de procedência européia.
O mapeamento realizado completa-se com o exame da trajetória da esquerda norte-americana das três primeiras décadas do século 20. Com o intuito de discutir o papel exercido pelo Partido Comunista nesse período, Iná discute a tática utilizada de arregimentação através de iniciativas culturais, estratégia que lhe permite penetrar no âmbito do sindicalismo industrial dominado pela American Federation of Labor (AFL).
Numa etapa consecutiva da análise, sua atenção se volta para as dificuldades enfrentadas pelo PC a partir de meados dos anos 30, quando as concessões que faz levam-no ao abandono das críticas à AFL e à adesão ao governo Roosevelt e ao realismo.
A análise das questões políticas e ideológicas dentro da história cultural do país é encabeçada pela discussão do papel dos "pageants" e da International Workers of the World (a IWW), entidade anarco-sindicalista de luta pelos direitos dos trabalhadores.
Uma vez traçadas essas linhas gerais de contextualização e análise, Iná se volta sobre a discussão dos fatores que teriam legitimado, por parte da grande crítica, o hábito de passar ao largo de experiências de grande envergadura estética e política. Examina, assim, o conjunto de medidas governamentais denominado Red Scare, materializado através de iniciativas responsáveis por uma verdadeira paranóia nacional em relação à possível articulação de um movimento conspiratório comunista.
Outro segmento de importância em "Panorama do Rio Vermelho" é o de releitura crítica do trabalho de nomes expressivos do cânone dramatúrgico norte-americano, seja no que diz respeito à forma, seja no tocante à recepção crítica suscitada por seus trabalhos. Existem igualmente omissões constatadas a reportar, como é o caso do já mencionado Elmer Rice, autor de "The Adding Machine" ("A Máquina de Somar"), obra-prima do expressionismo teatral, recentemente encenada pelo grupo Ocamorana, de São Paulo.
Bem diversos são os casos dos dramaturgos componentes da célebre tríade da dramaturgia norte-americana do século 20, Eugene O'Neill, Arthur Miller e Tennessee Williams. Numa estratégia de abordagem sintomaticamente recorrente no período da Guerra Fria, a ênfase das abordagens recai, na análise de seus trabalhos, sobre a ressonância dos aspectos biográficos dentro do plano dramatúrgico.
Também a esse respeito o aspecto das supressões é o mais conclusivo: suprime-se a natureza política de peças das fases iniciais de O'Neill, dentre as quais "Emperor Jones", "All God's Chillun Got Wings" e "The Hairy Ape", analisado e discutido detalhadamente.
No caso de Tennessee Williams, como observa Iná, o próprio público da Broadway já se encontrava condicionado, com o aval da grande crítica, a fixar o olhar sobre as questões biográficas em detrimento das posições críticas apresentadas pelo autor. Já no tocante a Miller, em cujo trabalho a obsessão biográfica da crítica é menos preponderante, o resultado não se altera tanto no sentido do teor da análise: os elementos épicos são subestimados ou omitidos, e o argumento de que as peças políticas "pregam a convertidos" é evocado de modo a chancelar as prerrogativas do sistema empresarial norte-americano, que consagra a perspectiva realista e psicologizante como padrão de excelência e de profundidade insuperável.
O material tratado ilumina questões de indiscutível interesse não apenas para o processo de aclimatação da dramaturgia norte-americana no Brasil, mas para a abertura de novos parâmetros para se pensar a própria experiência brasileira. Empreendendo seu panorama sem receio dos preconceitos que o termo poderá suscitar no meio acadêmico, Iná não se furta a levantar bandeiras e a desafiar seu leitor, seja no sentido de olhar velhas questões com novos olhos, seja no de procurar, nas sendas históricas das lutas do teatro do século 20, remar contra a corrente e percorrer as águas caudalosas do rio vermelho do teatro norte-americano.


Maria Sílvia Betti é professora do departamento de letras modernas da USP e autora de "Oduvaldo Vianna Filho" (Edusp).



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