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A poética de Luciano
A riqueza do sofista de Samósata
A Poética do Hipocentauro.
Literatura, Sociedade
e Discurso Ficcional
em Luciano de Samósata
Jacyntho Lins Brandão
Ed. UFMG
(Tel. 0/xx/31/3499-4656)
370 págs., R$ 36,00
PAULO BUTTI DE LIMA
A riqueza da obra de Luciano,
autor de língua grega do século 2
d.C., é consequência de uma reapropriação contínua da literatura
anterior, de tal modo que só se
pode falar de sua originalidade no
interior de um trabalho de releitura e transposição de temas já utilizados. Para muitos, isso representou um obstáculo intransponível,
mas não certamente para os que
se dedicaram nos últimos tempos
à análise do conjunto dos escritos
do retor e sofista de Samósata. Para as novas gerações de comentadores, essa retomada constante
da literatura clássica e seu distanciamento irônico e mesmo sarcástico (que marcou Rabelais,
Cervantes, Swift ou Voltaire) revelam sua "modernidade" e justificam o interesse por sua obra. Diferentemente de outras épocas,
que podiam privilegiar a irreverência ou a irreligiosidade de Luciano, seu suposto cinismo ou crítica aos deuses pagãos, hoje é esta
sua "consciência" da literatura
que parece sobressair.
Com a intenção de explorar a riqueza dessa relação com a literatura, apresenta-se agora o livro de
Jacyntho Lins Brandão, no qual o
autor desenvolve uma série de
contribuições que vinha dedicando ao argumento, incluindo sua
tese de doutorado, e reúne vários
artigos publicados em revistas especializadas. A unidade do trabalho consiste na tentativa de conduzir, por meio da análise de vários temas da obra de Luciano, ao
discernimento de uma "poética
luciânica".
A dificuldade em oferecer uma
leitura unitária de uma obra tão
ampla é evidente, ainda mais levando-se em consideração a escassez de elementos externos que
permitam uma reconstrução precisa da biografia do autor e de seu
percurso literário. Dada a exiguidade e o caráter hipotético dos dados biográficos, a crítica contemporânea se exercitou na análise de
Luciano segundo um duplo caminho. Procurou aprofundar a biografia do autor a partir de cada
dado interno à sua obra, referências, por vezes imprecisas, que
podem ser vistas como autobiográficas ou que permitem dispor
seus escritos segundo uma certa
ordem cronológica.
Ou, tendo em vista a ligação estreita de Luciano com a tradição
cultural grega clássica, tentou ler
sua obra acentuando esse processo de reapropriação, para o qual
contam menos as referências e
críticas à sociedade contemporânea e se destaca o modo de relacionamento de toda essa cultura
com quanto estava na sua base.
Numa época em que a noção de
originalidade do autor ocupava
um lugar diverso do que pode
ocupar hoje, a "imitação" dos antigos se apresenta como o conceito principal que permite reconsiderar toda a produção de Luciano.
O estrangeiro
A análise de Brandão move-se
entre esses dois planos, tentando
conciliar os procedimentos literários de Luciano com alguns elementos de fundo de seu percurso
biográfico. De modo particular,
sua experiência como estrangeiro
-na língua, pois o grego talvez
não fosse sua língua materna, e
nas cidades onde viveu, pois ao
máximo se supõe uma breve estada do sofista adulto em sua cidade
natal- é transposta à sua experiência com a literatura e com os
gêneros literários.
A familiaridade com os clássicos se traduz no constante "estranhamento" de Luciano diante dos
autores contemporâneos e na paródia dos gêneros. Ele demonstra
com frequência a sua "consciência" do próprio procedimento e é
ele mesmo quem joga, em suas
obras, com a metáfora do "estrangeiro". Talvez o exemplo mais significativo seja o do personagem
de nome Sírio, que diz ter dado ao
diálogo uma roupagem bárbara,
em lugar de suas vestes gregas originais, sendo ele mesmo um bárbaro.
Mas a identificação desse elemento é só um dos aspectos da
"poética" de Luciano analisada
por Brandão. À imagem da fala
"estrangeira", Brandão aproxima
o tema da ficção, "liberdade" do
autor diante da verdade de seu
discurso, que Luciano torna explícito por meio de suas reflexões
sobre a historiografia e mediante
a paródia do romance.
Luciano não é, na realidade, o
inventor do "romance" antigo, ou
do que poderia ser chamada "narrativa de ficção". Não há mesmo
um termo grego preciso que indique esse gênero, cujas raízes são,
porém, bem anteriores ao século
2. Gênero prosaico, mas pouco
definido, o romance antigo recebe
clara influência das obras historiográficas (das quais, por vezes,
toma emprestado os títulos),
apresentando fatos fictícios como
verídicos e, principalmente, utilizando a prosa para quanto era
visto, segundo uma tópica difundida, como próprio à poesia.
Luciano exerce a paródia e toma
por mira historiadores e autores
de narrativas precedentes, sem
distinção. Com a consciência das
"peculiaridades" da prosa, inverte
os cânones do gênero e evidencia
o caráter fictício desta escrita prosaica, como nos parágrafos iniciais de "Histórias Verdadeiras".
Brandão constrói sua análise da
poética de Luciano sobre esses
dois princípios, procurando relacioná-los e mostrando a presença
deles nas várias obras de Luciano.
Se a noção de "imitação" tinha
permitido a outros comentadores
pôr em relevo a riqueza de Luciano na própria retomada da literatura clássica, a análise de Brandão
permite reconsiderar esse procedimento na distância da paródia e
na crítica à sociedade e à cultura
contemporâneas ao autor.
Discurso e sociedade
Desse modo, sucedem-se os capítulos nas duas partes que compõem o livro: ora indicando a posição de Luciano diante de outros
discursos e gêneros literários (a
historiografia, a filosofia, a retórica, a "crítica da arte", a medicina),
ora marcando sua posição ante a
sociedade. Mas o estudo de Brandão tem por tema condutor a
questão da poética, sem procurar
estabelecer uma sequência clara
entre as partes e os capítulos do livro.
Dominando com competência
a bibliografia sobre o assunto,
Brandão não esconde sua admiração pelo seu objeto de estudo,
que eleva a modelo de nossa própria poética. Assim, a partir da
perspectiva de fundo com a qual
enquadra a obra do sofista, rebate
com eficácia várias críticas que lhe
foram dirigidas. Não se trata de
ler o "filósofo" Luciano, que critica a filosofia, ou eventualmente o
historiador, que critica os escritores de história contemporâneos,
nem o retor, que critica os outros
mestres de retórica. Com a crítica
e a paródia, ele desloca o "lugar"
próprio à sua fala, situando-a do
ponto de vista da cultura, "paidéia". É colocando-se nessa posição, pertinente a todo discurso,
mas exterior a cada um em particular, que Luciano percorre criticamente os gêneros e seus representantes.
Mas em que consiste propriamente essa "cultura"? Ao contrário do que poderia fazer supor a
personagem de "O Sonho"
-uma mulher de nome Cultura,
que convence o narrador quando
jovem a seguir os seus passos-,
esta não é nenhuma figura idealizada. Antes, pode realmente apresentar-se na idealização de alguns
autores clássicos -como Tucídides e Xenofonte-, particularmente por ocasião da crítica aos
contemporâneos; mas também
aparece como crítica aos "clássicos", considerados na continuidade estabelecida pelos seus seguidores.
Brandão explica essa relação recorrendo à noção de "poética".
Luciano não necessariamente evita a idealização de seus personagens -seja este o historiador, seja
o filósofo-, mas situa o próprio
discurso num plano diferente. E,
de fato, resulta desse posicionamento crítico uma forte consciência da literatura.
"Paidéia" e literatura
Assim procedendo, Brandão levanta questões fundamentais para qualquer interpretação do texto de Luciano e oferece respostas
persuasivas. Indo, porém, além
da equação entre a "poética" de
Luciano e a "nossa", poderíamos
retomar quanto aí está pressuposto e perguntar: há realmente identificação entre "paidéia" e "literatura"? Ou não poderíamos ler a
relação entre esses termos de forma problemática?
Limitamos, naturalmente, nossa questão a Luciano e seu tempo.
No percurso itinerante do sofista,
que lugar ocupava a palavra escrita? E quanto era essa palavra função direta de suas apresentações
orais, elemento distante do que é,
para nós, "literatura"? Qual a diferença entre o Luciano que ganhava a vida com exercícios retóricos
e o escritor das "Histórias Verdadeiras"? É o exercício do "lógos"
-a propalada habilidade do retor no seu manejo- que indica
quanto, no plano da "cultura", é
particularidade da "poética" de
Luciano.
Pouco podemos saber a respeito
de quesitos que nos ensinariam
tanto sobre um autor que insinua,
para nós, constantemente, essa
relação entre cultura e formas específicas de discurso, por meio da
crítica e da paródia. Uma relação
paradoxal, pela qual o que é objeto de paródia torna-se, por vezes,
exclusivamente, o conteúdo do
discurso. Talvez uma resposta a
essas questões revelasse, enfim, a
verdadeira diferença entre a poética de Luciano e a dos herdeiros
do "Dom Quixote". Sem, com isso, diminuir o caráter instigante e
provocativo que reveste, ainda
hoje, a obra do retor de Samósata,
que o livro de Brandão nos leva a
reler de modo novo e original.
Cabe, enfim, observar a utilidade, numa monografia sobre Luciano, da tradicional lista de seus
escritos. Mais ainda, para quem
pretende utilizar o texto de Brandão no estudo direto das obras de
Luciano, seria de primeira importância um índice das fontes. Pois
não será mérito menor deste livro
se servir de ensejo para a leitura
do texto de Luciano, ao que não
contribui o número ainda exíguo
de traduções em língua portuguesa.
Paulo Butti de Lima é professor na Universidade de San Marino e autor de
"L'Inchiesta e la Prova - Immagine Storiografica, Pratica Giuridica e Retorica
nella Grecia Classica" (Einaudi).
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