São Paulo, sábado, 13 de outubro de 2001

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A poética de Luciano

A riqueza do sofista de Samósata

A Poética do Hipocentauro. Literatura, Sociedade e Discurso Ficcional em Luciano de Samósata
Jacyntho Lins Brandão
Ed. UFMG
(Tel. 0/xx/31/3499-4656)
370 págs., R$ 36,00

PAULO BUTTI DE LIMA

A riqueza da obra de Luciano, autor de língua grega do século 2 d.C., é consequência de uma reapropriação contínua da literatura anterior, de tal modo que só se pode falar de sua originalidade no interior de um trabalho de releitura e transposição de temas já utilizados. Para muitos, isso representou um obstáculo intransponível, mas não certamente para os que se dedicaram nos últimos tempos à análise do conjunto dos escritos do retor e sofista de Samósata. Para as novas gerações de comentadores, essa retomada constante da literatura clássica e seu distanciamento irônico e mesmo sarcástico (que marcou Rabelais, Cervantes, Swift ou Voltaire) revelam sua "modernidade" e justificam o interesse por sua obra. Diferentemente de outras épocas, que podiam privilegiar a irreverência ou a irreligiosidade de Luciano, seu suposto cinismo ou crítica aos deuses pagãos, hoje é esta sua "consciência" da literatura que parece sobressair.
Com a intenção de explorar a riqueza dessa relação com a literatura, apresenta-se agora o livro de Jacyntho Lins Brandão, no qual o autor desenvolve uma série de contribuições que vinha dedicando ao argumento, incluindo sua tese de doutorado, e reúne vários artigos publicados em revistas especializadas. A unidade do trabalho consiste na tentativa de conduzir, por meio da análise de vários temas da obra de Luciano, ao discernimento de uma "poética luciânica".
A dificuldade em oferecer uma leitura unitária de uma obra tão ampla é evidente, ainda mais levando-se em consideração a escassez de elementos externos que permitam uma reconstrução precisa da biografia do autor e de seu percurso literário. Dada a exiguidade e o caráter hipotético dos dados biográficos, a crítica contemporânea se exercitou na análise de Luciano segundo um duplo caminho. Procurou aprofundar a biografia do autor a partir de cada dado interno à sua obra, referências, por vezes imprecisas, que podem ser vistas como autobiográficas ou que permitem dispor seus escritos segundo uma certa ordem cronológica.
Ou, tendo em vista a ligação estreita de Luciano com a tradição cultural grega clássica, tentou ler sua obra acentuando esse processo de reapropriação, para o qual contam menos as referências e críticas à sociedade contemporânea e se destaca o modo de relacionamento de toda essa cultura com quanto estava na sua base. Numa época em que a noção de originalidade do autor ocupava um lugar diverso do que pode ocupar hoje, a "imitação" dos antigos se apresenta como o conceito principal que permite reconsiderar toda a produção de Luciano.

O estrangeiro
A análise de Brandão move-se entre esses dois planos, tentando conciliar os procedimentos literários de Luciano com alguns elementos de fundo de seu percurso biográfico. De modo particular, sua experiência como estrangeiro -na língua, pois o grego talvez não fosse sua língua materna, e nas cidades onde viveu, pois ao máximo se supõe uma breve estada do sofista adulto em sua cidade natal- é transposta à sua experiência com a literatura e com os gêneros literários.
A familiaridade com os clássicos se traduz no constante "estranhamento" de Luciano diante dos autores contemporâneos e na paródia dos gêneros. Ele demonstra com frequência a sua "consciência" do próprio procedimento e é ele mesmo quem joga, em suas obras, com a metáfora do "estrangeiro". Talvez o exemplo mais significativo seja o do personagem de nome Sírio, que diz ter dado ao diálogo uma roupagem bárbara, em lugar de suas vestes gregas originais, sendo ele mesmo um bárbaro.
Mas a identificação desse elemento é só um dos aspectos da "poética" de Luciano analisada por Brandão. À imagem da fala "estrangeira", Brandão aproxima o tema da ficção, "liberdade" do autor diante da verdade de seu discurso, que Luciano torna explícito por meio de suas reflexões sobre a historiografia e mediante a paródia do romance.
Luciano não é, na realidade, o inventor do "romance" antigo, ou do que poderia ser chamada "narrativa de ficção". Não há mesmo um termo grego preciso que indique esse gênero, cujas raízes são, porém, bem anteriores ao século 2. Gênero prosaico, mas pouco definido, o romance antigo recebe clara influência das obras historiográficas (das quais, por vezes, toma emprestado os títulos), apresentando fatos fictícios como verídicos e, principalmente, utilizando a prosa para quanto era visto, segundo uma tópica difundida, como próprio à poesia.
Luciano exerce a paródia e toma por mira historiadores e autores de narrativas precedentes, sem distinção. Com a consciência das "peculiaridades" da prosa, inverte os cânones do gênero e evidencia o caráter fictício desta escrita prosaica, como nos parágrafos iniciais de "Histórias Verdadeiras".
Brandão constrói sua análise da poética de Luciano sobre esses dois princípios, procurando relacioná-los e mostrando a presença deles nas várias obras de Luciano. Se a noção de "imitação" tinha permitido a outros comentadores pôr em relevo a riqueza de Luciano na própria retomada da literatura clássica, a análise de Brandão permite reconsiderar esse procedimento na distância da paródia e na crítica à sociedade e à cultura contemporâneas ao autor.

Discurso e sociedade
Desse modo, sucedem-se os capítulos nas duas partes que compõem o livro: ora indicando a posição de Luciano diante de outros discursos e gêneros literários (a historiografia, a filosofia, a retórica, a "crítica da arte", a medicina), ora marcando sua posição ante a sociedade. Mas o estudo de Brandão tem por tema condutor a questão da poética, sem procurar estabelecer uma sequência clara entre as partes e os capítulos do livro.
Dominando com competência a bibliografia sobre o assunto, Brandão não esconde sua admiração pelo seu objeto de estudo, que eleva a modelo de nossa própria poética. Assim, a partir da perspectiva de fundo com a qual enquadra a obra do sofista, rebate com eficácia várias críticas que lhe foram dirigidas. Não se trata de ler o "filósofo" Luciano, que critica a filosofia, ou eventualmente o historiador, que critica os escritores de história contemporâneos, nem o retor, que critica os outros mestres de retórica. Com a crítica e a paródia, ele desloca o "lugar" próprio à sua fala, situando-a do ponto de vista da cultura, "paidéia". É colocando-se nessa posição, pertinente a todo discurso, mas exterior a cada um em particular, que Luciano percorre criticamente os gêneros e seus representantes.
Mas em que consiste propriamente essa "cultura"? Ao contrário do que poderia fazer supor a personagem de "O Sonho" -uma mulher de nome Cultura, que convence o narrador quando jovem a seguir os seus passos-, esta não é nenhuma figura idealizada. Antes, pode realmente apresentar-se na idealização de alguns autores clássicos -como Tucídides e Xenofonte-, particularmente por ocasião da crítica aos contemporâneos; mas também aparece como crítica aos "clássicos", considerados na continuidade estabelecida pelos seus seguidores.
Brandão explica essa relação recorrendo à noção de "poética". Luciano não necessariamente evita a idealização de seus personagens -seja este o historiador, seja o filósofo-, mas situa o próprio discurso num plano diferente. E, de fato, resulta desse posicionamento crítico uma forte consciência da literatura.

"Paidéia" e literatura
Assim procedendo, Brandão levanta questões fundamentais para qualquer interpretação do texto de Luciano e oferece respostas persuasivas. Indo, porém, além da equação entre a "poética" de Luciano e a "nossa", poderíamos retomar quanto aí está pressuposto e perguntar: há realmente identificação entre "paidéia" e "literatura"? Ou não poderíamos ler a relação entre esses termos de forma problemática?
Limitamos, naturalmente, nossa questão a Luciano e seu tempo. No percurso itinerante do sofista, que lugar ocupava a palavra escrita? E quanto era essa palavra função direta de suas apresentações orais, elemento distante do que é, para nós, "literatura"? Qual a diferença entre o Luciano que ganhava a vida com exercícios retóricos e o escritor das "Histórias Verdadeiras"? É o exercício do "lógos" -a propalada habilidade do retor no seu manejo- que indica quanto, no plano da "cultura", é particularidade da "poética" de Luciano.
Pouco podemos saber a respeito de quesitos que nos ensinariam tanto sobre um autor que insinua, para nós, constantemente, essa relação entre cultura e formas específicas de discurso, por meio da crítica e da paródia. Uma relação paradoxal, pela qual o que é objeto de paródia torna-se, por vezes, exclusivamente, o conteúdo do discurso. Talvez uma resposta a essas questões revelasse, enfim, a verdadeira diferença entre a poética de Luciano e a dos herdeiros do "Dom Quixote". Sem, com isso, diminuir o caráter instigante e provocativo que reveste, ainda hoje, a obra do retor de Samósata, que o livro de Brandão nos leva a reler de modo novo e original.
Cabe, enfim, observar a utilidade, numa monografia sobre Luciano, da tradicional lista de seus escritos. Mais ainda, para quem pretende utilizar o texto de Brandão no estudo direto das obras de Luciano, seria de primeira importância um índice das fontes. Pois não será mérito menor deste livro se servir de ensejo para a leitura do texto de Luciano, ao que não contribui o número ainda exíguo de traduções em língua portuguesa.


Paulo Butti de Lima é professor na Universidade de San Marino e autor de "L'Inchiesta e la Prova - Immagine Storiografica, Pratica Giuridica e Retorica nella Grecia Classica" (Einaudi).



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