São Paulo, Sábado, 13 de Novembro de 1999
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Celso Furtado escreve sobre o economista indiano Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel em 1998
O futuro da economia

CELSO FURTADO

Amartya Sen é um imaginativo inovador na problemática complexa da interdisciplinaridade no campo das ciências sociais.
Fomos contemporâneos nos estudos de pós-graduação na Universidade de Cambridge, numa época em que a herança de Keynes se mantinha vigorosa. Frequentávamos juntos ocasionalmente os seminários de Nicholas Kaldor e também o curso introdutório de Joan Robinson, este salpicado de provocações vindas da direita e da esquerda.
Era também a época em que crescia o prestígio da econometria e, com ele, a ilusão de uma ciência econômica escoimada de toda impureza metodológica. Sen trabalhava no que seria sua tese sobre "escolha de tecnologia", tema que se prestava ao uso de sofisticados recursos matemáticos.
Eu o admirava, mas supunha que seria mais um desses talentos de país subdesenvolvido destinado a ser cooptado pelo rico mundo universitário dos EUA.
Eu andava então mergulhado em reflexões sobre a especificidade do subdesenvolvimento, essas estruturas híbridas em que o moderno e o arcaico cresciam paralelamente. Nas horas vagas, distraía-me escrevendo "Formação Econômica do Brasil", tentativa de análise estrutural-histórica.
Passaram-se dez anos ricos em surpresas para mim. Houve a experiência de criação da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste), caso singular de política de desenvolvimento regional que repercutiu amplamente, inclusive na Índia; houve a cassação de meus direitos, que me devolveu às lides universitárias. E reencontrei-me com Sen na Índia. Ele convidou-me a sua casa, onde promoveu um encontro com outros economistas interessados em problemas de desenvolvimento.
Nos debates que se travaram -para surpresa minha foram extremamente vivos-, percebi que Sen tivera uma evolução bem diversa daquela que eu lhe pressagiara. Os indianos haviam desenvolvido e aplicado técnicas sofisticadas de planejamento econômico que Sen considerava insuficientes. Não que ele pedisse mais ampla ação do Estado, e sim uma maior abrangência no plano social.
Desde então, segui de perto o que publicava Sen em revistas de economia e filosofia. De 1973 é seu ensaio sobre "Desigualdade Econômica" e, de 1981, o seminal sobre "Poverty and Famines", no qual introduz o conceito de "entitlement" ("habilitação"). Sen demonstra com clareza que o problema da fome epidêmica e da pobreza endêmica que ocorrem em vastas áreas do mundo não encontra solução simples no aumento da oferta de bens essenciais nos países afetados. Isso porque, para participar da distribuição da renda, é necessário estar habilitado por título de propriedade ou por inserção qualificada no sistema produtivo. Ora, há sociedades em que esse processo de habilitação está bloqueado. É o que se passa com populações rurais que não têm acesso à terra para trabalhar ou que devem pagar rendas escorchantes para ter esse acesso. Da mesma forma, há populações urbanas crescentes sem habilitação para ter acesso à moradia. Essa situação estrutural não encontra solução nos mecanismos dos mercados.


Sobre Ética e Economia
Amartya Sen Tradução: Laura Teixeira Motta Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/866-0801) 144 págs., R$ 19,00



Em seu livro mais recente, Sen pretende voar muito mais alto, pois aborda o complexo problema da ruptura epistemológica entre a ciência econômica convencional, que evolui mais e mais para uma engenharia social, e o sistema de valores cujo substrato é a ética. Sen demonstra com precisão que, em suas origens, de Aristóteles a Adam Smith, a economia tinha raízes na ética. Escreve: "Eu gostaria de afirmar que as questões profundas suscitadas pela concepção de motivação e realização social relacionada à ética precisam encontrar um lugar de importância na economia moderna, mas ao mesmo tempo é impossível negar que a abordagem da engenharia também tem muito a oferecer à economia" (pág. 22). E acrescenta: "É difícil não notar a aversão às análises normativas profundas e o descaso pela influência das considerações éticas sobre a caracterização do comportamento humano real" (pág. 23).
Este pequeno livro de elegância britânica não é de leitura fácil para os não-iniciados. Contudo, a primeira das três partes que o compõem -"Comportamento Econômico e Sentimentos Morais"- pode ser considerada como introdução ao complexo tema. As outras duas partes são aprofundamentos progressivos das hipóteses essenciais. Particularmente interessante é o tratamento do tema "Otimalidade de Pareto e Eficiência Econômica", que aparece na segunda parte. Finalmente, merece referência, na terceira, o subcapítulo "Bem-Estar, Objetivos e Escolhas".
Este livro do grande economista indiano, dublê de filósofo, nos leva a antever o caráter interdisciplinar, no enfoque dos problemas sociais, que prevalecerá no século que desponta. A idéia de uma ciência econômica "pura" será vista como um anacronismo. No caso da economia, essa interdisciplinaridade se apresenta como ampliação de seu marco epistemológico, deixando de ser uma racionalização da visão do mundo engendrada pelas estruturas tradicionais de poder.


Celso Furtado é economista, foi ministro do Planejamento do governo João Goulart (62 e 63) e da Cultura do governo José Sarney (86 a 88). É autor do clássico "Formação Econômica do Brasil" e de "O Longo Amanhecer: Reflexões sobre a Formação do Brasil".

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