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Celso Furtado escreve sobre o economista indiano Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel em 1998
O futuro da economia
CELSO FURTADO
Amartya Sen é um imaginativo inovador na problemática complexa da interdisciplinaridade no campo das ciências
sociais.
Fomos contemporâneos nos estudos
de pós-graduação na Universidade de
Cambridge, numa época em que a herança de Keynes se mantinha vigorosa. Frequentávamos juntos ocasionalmente os
seminários de Nicholas Kaldor e também
o curso introdutório de Joan Robinson,
este salpicado de provocações vindas da
direita e da esquerda.
Era também a época em que crescia o
prestígio da econometria e, com ele, a ilusão de uma ciência econômica escoimada de toda impureza metodológica. Sen
trabalhava no que seria sua tese sobre
"escolha de tecnologia", tema que se
prestava ao uso de sofisticados recursos
matemáticos.
Eu o admirava, mas supunha que seria
mais um desses talentos de país subdesenvolvido destinado a ser cooptado pelo
rico mundo universitário dos EUA.
Eu andava então mergulhado em reflexões sobre a especificidade do subdesenvolvimento, essas estruturas híbridas em
que o moderno e o arcaico cresciam paralelamente. Nas horas vagas, distraía-me escrevendo "Formação Econômica
do Brasil", tentativa de análise estrutural-histórica.
Passaram-se dez anos ricos em surpresas para mim. Houve a experiência de
criação da Sudene (Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste), caso singular de política de desenvolvimento regional que repercutiu amplamente, inclusive na Índia; houve a cassação de
meus direitos, que me devolveu às lides
universitárias. E reencontrei-me com Sen
na Índia. Ele convidou-me a sua casa, onde promoveu um encontro com outros
economistas interessados em problemas
de desenvolvimento.
Nos debates que se travaram -para
surpresa minha foram extremamente vivos-, percebi que Sen tivera uma evolução bem diversa daquela que eu lhe pressagiara. Os indianos haviam desenvolvido e aplicado técnicas sofisticadas de planejamento econômico que Sen considerava insuficientes. Não que ele pedisse
mais ampla ação do Estado, e sim uma
maior abrangência no plano social.
Desde então, segui de perto o que publicava Sen em revistas de economia e filosofia. De 1973 é seu ensaio sobre "Desigualdade Econômica" e, de 1981, o seminal sobre "Poverty and Famines", no qual
introduz o conceito de "entitlement"
("habilitação"). Sen demonstra com clareza que o problema da fome epidêmica e
da pobreza endêmica que ocorrem em
vastas áreas do mundo não encontra solução simples no aumento da oferta de
bens essenciais nos países afetados. Isso
porque, para participar da distribuição
da renda, é necessário estar habilitado
por título de propriedade ou por inserção
qualificada no sistema produtivo. Ora, há
sociedades em que esse processo de habilitação está bloqueado. É o que se passa
com populações rurais que não têm acesso à terra para trabalhar ou que devem
pagar rendas escorchantes para ter esse
acesso. Da mesma forma, há populações
urbanas crescentes sem habilitação para
ter acesso à moradia. Essa situação estrutural não encontra solução nos mecanismos dos mercados.
Sobre Ética e Economia
Amartya Sen
Tradução: Laura Teixeira Motta
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/866-0801)
144 págs., R$ 19,00
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Em seu livro mais recente, Sen pretende
voar muito mais alto, pois aborda o complexo problema da ruptura epistemológica entre a ciência econômica convencional, que evolui mais e mais para uma engenharia social, e o sistema de valores cujo substrato é a ética. Sen demonstra com
precisão que, em suas origens, de Aristóteles a Adam Smith, a economia tinha raízes na ética. Escreve: "Eu gostaria de afirmar que as questões profundas suscitadas pela concepção de motivação e realização social relacionada à ética precisam
encontrar um lugar de importância na
economia moderna, mas ao mesmo tempo é impossível negar que a abordagem
da engenharia também tem muito a oferecer à economia" (pág. 22). E acrescenta:
"É difícil não notar a aversão às análises
normativas profundas e o descaso pela
influência das considerações éticas sobre
a caracterização do comportamento humano real" (pág. 23).
Este pequeno livro de elegância britânica não é de leitura fácil para os não-iniciados. Contudo, a primeira das três partes
que o compõem -"Comportamento
Econômico e Sentimentos Morais"-
pode ser considerada como introdução
ao complexo tema. As outras duas partes
são aprofundamentos progressivos das
hipóteses essenciais. Particularmente interessante é o tratamento do tema "Otimalidade de Pareto e Eficiência Econômica", que aparece na segunda parte. Finalmente, merece referência, na terceira,
o subcapítulo "Bem-Estar, Objetivos e
Escolhas".
Este livro do grande economista indiano, dublê de filósofo, nos leva a antever o
caráter interdisciplinar, no enfoque dos
problemas sociais, que prevalecerá no século que desponta. A idéia de uma ciência econômica "pura" será vista como um
anacronismo. No caso da economia, essa
interdisciplinaridade se apresenta como
ampliação de seu marco epistemológico,
deixando de ser uma racionalização da
visão do mundo engendrada pelas estruturas tradicionais de poder.
Celso Furtado é economista, foi ministro do Planejamento do governo João Goulart (62 e 63) e da Cultura
do governo José Sarney (86 a 88). É autor do clássico
"Formação Econômica do Brasil" e de "O Longo Amanhecer: Reflexões sobre a Formação do Brasil".
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