São Paulo, Sábado, 13 de Novembro de 1999
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Chinesices do Brasil

JANICE THEODORO

A publicação deste livro se dá em momento significativo da história do império português. Em dezembro de 1999, Macau, cidade portuguesa estabelecida no século 16 em território chinês, retorna à China e põe fim a uma longa história marcada pelo domínio português no Ocidente e Oriente. História em que territórios de um e de outro lado do mundo (Brasil e Macau, por exemplo) foram, durante séculos, considerados partes de um mesmo e vasto império ultramarino. O que teríamos em comum? O que aproximou o extremo Ocidente do extremo Oriente?
Embora o comércio entre as colônias portuguesas não fosse permitido na época colonial, uma série de vestígios encontrados no Brasil sugeriu a presença de chineses em nossas terras. Seguindo as rotas do comércio colonial, os estudos históricos não privilegiaram esse campo de pesquisa, embora vários historiadores acusassem a presença de "chinesices", especialmente na Bahia e nas cidades mineiras.
Ao analisar a presença da China no Brasil entre os séculos 16 e 19, Teixeira Leite observa as mudanças no imaginário brasileiro. No século 19, passamos a incorporar modelos franceses e ingleses, fazendo um grande esforço para nos distanciar do passado índio, negro e amarelo. O esforço é tão grande que ainda hoje temos dificuldade em estudar as relações entre as antigas colônias. Talvez porque estejamos ainda seduzidos pelo brilho das grandes metrópoles envolvidas com os projetos coloniais e tenhamos dificuldade em constituir um olhar perspicaz sobre os nossos vizinhos mais pobres em termos de renda nacional. Teixeira Leite rema contra essa maré, aprofundando os vínculos possíveis de serem encontrados entre antigas colônias.
A obra está dividida em quatro partes e um apêndice, no qual consta um levantamento detalhado dos chineses que entraram no Brasil entre 1814-1842. Na primeira parte, o autor recolhe uma série de informações sobre usos e costumes, fazendo perceber proximidades com a cultura chinesa. Casamentos arranjados, segregação de mulheres, relacionamento cerimonioso entre marido e mulher, ou mesmo o hábito existente em Salvador "de deixar crescer a um comprimento repulsivo a unha do polegar ou do indicador" ("na China este hábito era próprio de pessoas de elevada condição social, que podiam se dar ao luxo de não fazer absolutamente nada com as mãos").

Fogos de artifício
Quanto ao "riquixá", carrinho movido pela força humana, Teixeira Leite compara com o "palanquim" utilizado no Brasil como meio de transporte. Os fogos de artifício surgiram na China com a descoberta da pólvora no período Tang (1004-1006), foram levados para a Europa no século 16 e se tornaram no Brasil de uso frequente, apesar das proibições. Os leques, de uso comum na China, são utilizados tanto por homens como por mulheres.
Na segunda parte, o autor centra a atenção no comércio, agricultura e imigração.
O monjolo, utilizado para descascar arroz, milho ou café, foi trazido para o Brasil pelos portugueses da China, assim como o arroz, a seda e o chá, este último cultivado por chineses que, de acordo com Oliveira Lima, teriam sido recrutados entre moradores de Cantão. Imagens de chineses no Brasil foram pintadas por Thomas Ender (1817) e Rugendas que, ao pintar uma plantação de chá no Jardim Botânico, desenha alguns escravos negros trabalhando sob a orientação de um chinês. Embora com a abolição se tenha pensado em introduzir no Brasil um número grande de chineses, o autor nos informa que desembarcaram de fato, incluindo os plantadores de chá de D. João, não mais de 3.000 pessoas, concentradas especialmente no Rio.


A China no Brasil
- Influências, Marcas, Ecos e Sobrevivências Chinesas na Sociedade e na Arte Brasileiras José Roberto Teixeira Leite Ed. da Unicamp (Tel. 0/xx/19/788-1097) 288 págs., R$ 41,60



A terceira parte trata de arquitetura e paisagística. Teixeira Leite nos mostra o que significa uma arquitetura voltada para "adjetivar a beleza do sítio ao qual se subordina". Os materiais utilizados são em geral leves e perecíveis, embora a pedra fosse abundante. O resultado é que poucos edifícios sobreviveram, sendo necessário, para conhecer a arquitetura chinesa, buscar seus elementos básicos no Japão, onde o cuidado com a memória foi de outra natureza. Se a mudança é um elemento constitutivo da nossa cultura, o mesmo não ocorre na China, onde a repetição, a imitação, a paródia e o pastiche são elementos básicos, assim como a idéia do efêmero para a arquitetura.
Em seguida, o livro reflete sobre escultura, pintura e artes decorativas. Teixeira Leite analisa as afinidades entre Guanyin e Maria a partir de um grande número de estatuetas em porcelana e marfim. Essas imagens foram muito disseminadas na Europa católica, especialmente na Espanha, Filipinas e México. Nas coleções brasileiras, algumas imagens da Virgem com o menino provavelmente são cópias, pois não disfarçam os traços extremo-orientais. Altares com formas chinesas em Pernambuco indicam, por via indireta, a influência de entalhadores portugueses de Braga, marcados pela arte do extremo Oriente.
Quanto à pintura colonial brasileira, Teixeira Leite informa que, no século 17, observamos a influência chinesa na Bahia, Minas Gerais e São Paulo. No caso de Minas trata-se de arte achinesada. As "chinoiseries" podem ser encontradas também em mobiliários e oratórios. No teto da sacristia da igrejinha de Nossa Senhora do Rosário, no Embu, também foram pintadas "chinoiseries". Quanto aos azulejos com motivos chineses, datam do século 17-18, e os primeiros são holandeses, não portugueses. No que diz respeito à porcelana, trata-se de produto que marcou presença em todo o período colonial no século 19.
Móveis chineses lacados também chegaram ao Brasil, sendo possível encontrar menções nos inventários setecentistas e posteriores. Quanto aos tecidos asiáticos, o gosto veio a partir de Portugal e difundiu-se pelo Brasil na forma de mantilhas, xales de seda, lenços bordados, colchas e esteiras que podiam funcionar como cortinas para as janelas.
O livro assinala o início de um caminho pioneiro, plenamente justificável em tempos de globalização e capaz de aproximar dois extremos: Oriente e Ocidente.


Janice Theodoro é professora de história na USP.

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