São Paulo, Sábado, 13 de Novembro de 1999 |
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A fera pensante
ELIANE ROBERT MORAES
Para fundamentar seu argumento, o ensaísta parte da hipótese de que "o erotismo é o reino da singularidade irrepetível: escapa continuamente à razão e constitui um domínio oscilante, regido pela exceção e pelo capricho". Daí a constatação de que a obra de Sade traduz "a exceção levada ao extremo": nela, "não há espécies, família, gênero, nem, mesmo por acaso, indivíduos (pois o homem muda e seu desejo de hoje nega o de ontem)". Daí também a conclusão de que o propósito sadiano de conhecer o conjunto das paixões sexuais resulta necessariamente numa tarefa infinita. Ora, pondera Paz, se um projeto desse porte tende a se degenerar numa confusão ininteligível que impede o reconhecimento das particularidades, o grande mérito do Marquês foi o de ter resistido à vertigem. A tese de Paz nos permite deduzir que a opção de Sade pela literatura foi decorrência lógica de sua enorme paciência e de seu obstinado rigor na realização de tal tarefa. Ao deslocar a reflexão filosófica para a alcova libertina, o Marquês foi obrigado a levar em consideração as diferenças, por ínfimas que fossem, entre cada um dos "caprichos da natureza" que fazem parte de seu interminável catálogo. Com isso, ele se viu obrigado igualmente a exceder os limites da filosofia, na certeza de que só a literatura permitiria seu ingresso no domínio ilimitado da imaginação erótica. A idéia de "fantasia raciocinante" não se justifica, contudo, apenas pelo caráter singular da experiência erótica -é o que sugere Paz num depoimento de 1986, incluído no conjunto de textos que fecha o livro. Passado um quarto de século desde a publicação do primeiro ensaio, o escritor mexicano se distancia ainda mais de suas proposições iniciais, voltando um olhar bem menos benevolente a esse "incômodo interlocutor". Sua visada concentra-se então em outro princípio do sistema libertino, precisamente aquele que traduz "um mais além erótico": a negação universal. Ou, numa só palavra: o Mal. Ao investigar a exigência de negação que orienta a ficção do Marquês, o autor de "Os Filhos do Barro" mostra uma vez mais o grande pensador que foi. Sem lançar mão de teorias que, a exemplo da psicanálise, reduzem o saber literário a modelos genéricos, o ensaísta parte da obsessão de Sade pelo particular para compreender a convergência entre a fantasia sexual e a crueldade. Atento ao imperativo da diferença na obra sadiana, Paz conclui que o mal só é pensável a partir da mesma lógica da heterogeneidade que governa o domínio do erotismo: "O Mal não postula um princípio único, mas uma dispersão. O Mal não passa disso, miríades de exceções". Foi preciso aparecer um autor com a ousadia de Sade para reunir definitivamente esses dois continentes cujo único fundamento é a exceção. Ao aceitar o risco de associar a fantasia literária ao raciocínio filosófico, o marquês ficou livre para criar uma "fera pensante", comprometida com a infinita tarefa de dar palavra às particularidades inconfessáveis do homem. Mas foi preciso também que um autor do porte de Octavio Paz reconhecesse a aventura singular desse libertino para descobrir, no corpo da língua, a origem de sua paixão pelo mal: "Dissoluto: amante da morte". Eliane Robert Moraes é professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade Católica (SP) e autora, entre outros livros, de "Sade - A Felicidade Libertina" (Imago). Texto Anterior: João Paulo Monteiro: Um percurso virtual Próximo Texto: Tereza Barreto: Sor Juana sou eu Índice |
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