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Coletânea critica ciência cognitiva
Um percurso virtual
JOÃO PAULO MONTEIRO
Como elemento descritivo da
obra publicada, o título parece indicar um percurso teórico entre a
nova ciência do conhecimento,
que nas três últimas décadas procurou constituir-se a partir dos
estudos de inteligência artificial, e
o método usado por algumas teorias marxistas no estudo da sociedade humana. Nada mais ilusório: por um lado, o título não descreve a obra, mas o autor; e, por
outro lado, nem sequer descreve
um percurso real do autor, mas
apenas o que ele tenciona seguir a
partir de agora. Trata-se apenas
de um percurso virtual.
Explicando: Marcos Barbosa de
Oliveira, que entre nós é dos mais
competentes conhecedores da
ciência cognitiva, converteu-se ao
"ponto de vista dialético" e decidiu reunir neste volume seus ensaios dos últimos 15 anos, acompanhados de uma declaração de
repúdio a quase todos eles.
A maior parte dos 13 artigos é
sobre as ciências da cognição e alguns poucos são sobre lógica, ou
sobre autores como Wittgenstein
e Popper, e o último, embora se
intitule "A Epistemologia Engajada de Hugh Lacey", é uma resenha do livro de um excelente autor católico, "Valores e Atividade
Científica" (Discurso Editorial),
que nada mostra da dialética, a
não ser que se tome por tal a frase
"na tradição marxista existem elementos que podem ser associados
às propostas de Lacey". E acrescenta, como exemplo, que "a conexão entre a predominância da
prática de controle nas sociedades
modernas e o capitalismo é afirmada no livro, porém relativamente pouco explorada". Convenhamos que é muito pouco para
justificar qualquer ligação à dialética.
Contra o naturalismo
Essas citações são do último parágrafo do livro, e no último parágrafo da "Apresentação" o autor
anunciara que "a última seção do
último capítulo dá uma idéia sobre os rumos de minhas investigações daqui por diante". O que
confirma estarmos no território
da virtualidade, pois nos informa
apenas acerca das intenções de
publicação futura de nosso convertido autor.
Mas os estudos que constituem
este livro real (o que temos, enquanto esperamos os virtuais) nada devem a qualquer forma de
dialética. São interessantes discussões acerca da ciência cognitiva e assuntos correlatos, alguns
dos quais adotando uma perspectiva crítica em relação às pretensões dessa disciplina, notadamente contra o "naturalismo", tomado no sentido da adoção dos procedimentos das ciências da natureza no estudo do homem.
O antinaturalismo, que ele passa a defender a partir da pág. 133,
acentua as diferenças entre as
ciências naturais e as humanas,
inspira a proposta de que passe a
haver uma ciência cognitiva cultural ao lado da ciência cognitiva
natural e leva à condenação da
ciência cognitiva (incluindo a de
Eleanor Rosch, altamente elogiada até então) por ser naturalista,
isto é, por ter "em sua parte cultural uma tendência naturalizante, a
considerar equivocadamente como naturais aspectos da humanidade que são na verdade culturais".
Só tenho espaço para um exemplo da argumentação antinaturalista do autor, centrada na insistência na "dimensão normativa"
própria das ciências humanas e
ausente das ciências naturais.
Normas como "os preceitos morais, as leis, as regras de boas maneiras e de correção para a linguagem falada e escrita" são "aspectos culturais da humanidade" que
estão ausentes das ciências naturais. É trazido o exemplo da análise antinaturalista da ciência política por Charles Taylor. Mas fica
difícil ver a relevância de tudo isso
para os problemas da ciência cognitiva. Não seria melhor começar
pelo esforço de construir uma
"ciência cognitiva cultural real",
efetivamente presente em teorias
concretas? Não consta que exista
um único exemplo de tal ciência.
Sem dúvida que seria interessante
construí-la, como ciência da normatividade ou de outra perspectiva qualquer, e o final do livro parece prometer esforços nesse sentido. Só nos resta aguardar -mas
até lá certamente me será perdoado que considere meramente virtuais as críticas deste livro à ciência cognitiva "realmente existente".
Da Ciência Cognitiva à Dialética
Marcos Barbosa de Oliveira
Discurso Editorial/Fapesp
(Tel. 0/ xx/11/814-5383)
236 págs., R$ 20,00
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O tema do doutoramento de
nosso autor foi a teoria da ciência
de Karl Popper, um filósofo mais
"racionalista crítico" do que naturalista e objeto de um dos mais interessantes estudos deste livro.
Naquela teoria, a racionalidade da
ciência depende fundamentalmente do debate crítico na "comparação" entre teorias científicas
opostas. Para tal, obviamente, é
preciso que haja teorias científicas
em competição, o que não é o caso quanto à oposição, apenas virtual, entre uma ciência cognitiva
cultural e uma ciência cognitiva
natural. Não creio que a conversão de nosso autor o tenha levado
a renegar também as vantagens
dessa competição -que espero
ninguém pretenda confundir
com a competição capitalista.
No ensaio "A Ciência Cognitiva
e a Robotização do Homem", o
autor critica uma entrevista de
Daniel Dennett intitulada "Somos
Todos Robôs", com a finalidade
expressa de criticar o naturalismo
em geral, mas nem mesmo aqui
propõe qualquer modelo de
"ciência cognitiva cultural". Tece
considerações gerais, dizendo,
por exemplo, que "o naturalista é
levado a conceber como objeto de
seu estudo a natureza do homem,
sendo esta natureza pensada como algo fixo, imutável", além de
tomar "aspectos do homem que
são culturais, e portanto modificáveis, como parte de uma natureza humana imutável", o que
"equivale a pô-los além da possibilidade de contestação" e "imunes à crítica". Mas continuamos
sem receber qualquer sugestão sequer da maneira como poderia
ser constituída uma ciência cultural da cognição humana.
Quando autores como Dennett
e tantos outros procuram entender melhor a cognição, a consciência e outros aspectos da vida
humana tomando o homem como parte da natureza, enquanto
produto da evolução das espécies
por seleção natural e, portanto,
como ser biológico, não pretendem negar que ele seja capaz de
cultura ou recusar a distinção entre cultura e natureza, nem, por
outro lado, defender posições
conservadoras de qualquer tipo.
Leia-se, desse filósofo, "A Perigosa Idéia de Darwin" (Rocco), ou
outro qualquer de seus numerosos livros, e ver-se-á que o naturalismo no estudo do homem não é
um preconceito obscurantista,
mas apenas um esforço para
abordar velhos problemas de
uma maneira nova. O preconceito, receio bem, encontra-se do outro lado.
Num tempo em que cada vez
mais se descobre que a comunicação, a sociedade e a própria cultura não são exclusivos de nossa espécie, mas parte de um patrimônio que partilhamos com muitas
outras espécies, talvez possa ser
considerado natural que muitos
cultores das chamadas ciências
humanas se sintam "territorialmente" ameaçados em seus domínios teóricos e reajam contra as
tentativas de renovação do saber
que levam um ou outro aspecto,
antes considerado puramente
"cultural", a ser considerado, afinal, como parte da natureza. Mas
uma verdadeira atitude crítica deve consistir (Marcos Barbosa perdoará que também eu pretenda
ser "normativo" em relação aos filósofos) em examinar com cuidado o que de novo vem surgindo
no saber atual, seja na filosofia,
nas ciências naturais ou humanas
ou na ciência cognitiva, sem pretender saber "a priori" que certos
aspectos da vida humana são pura e exclusivamente culturais e,
portanto, não podem ser discutidos em termos naturalistas. É
mais um domínio onde a tolerância tende a coincidir com a prudência.
João Paulo Monteiro é professor do departamento de filosofia da USP e da Universidade de Lisboa.
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