São Paulo, Sábado, 13 de Novembro de 1999
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Coletânea critica ciência cognitiva
Um percurso virtual

JOÃO PAULO MONTEIRO

Como elemento descritivo da obra publicada, o título parece indicar um percurso teórico entre a nova ciência do conhecimento, que nas três últimas décadas procurou constituir-se a partir dos estudos de inteligência artificial, e o método usado por algumas teorias marxistas no estudo da sociedade humana. Nada mais ilusório: por um lado, o título não descreve a obra, mas o autor; e, por outro lado, nem sequer descreve um percurso real do autor, mas apenas o que ele tenciona seguir a partir de agora. Trata-se apenas de um percurso virtual.
Explicando: Marcos Barbosa de Oliveira, que entre nós é dos mais competentes conhecedores da ciência cognitiva, converteu-se ao "ponto de vista dialético" e decidiu reunir neste volume seus ensaios dos últimos 15 anos, acompanhados de uma declaração de repúdio a quase todos eles.
A maior parte dos 13 artigos é sobre as ciências da cognição e alguns poucos são sobre lógica, ou sobre autores como Wittgenstein e Popper, e o último, embora se intitule "A Epistemologia Engajada de Hugh Lacey", é uma resenha do livro de um excelente autor católico, "Valores e Atividade Científica" (Discurso Editorial), que nada mostra da dialética, a não ser que se tome por tal a frase "na tradição marxista existem elementos que podem ser associados às propostas de Lacey". E acrescenta, como exemplo, que "a conexão entre a predominância da prática de controle nas sociedades modernas e o capitalismo é afirmada no livro, porém relativamente pouco explorada". Convenhamos que é muito pouco para justificar qualquer ligação à dialética.

Contra o naturalismo
Essas citações são do último parágrafo do livro, e no último parágrafo da "Apresentação" o autor anunciara que "a última seção do último capítulo dá uma idéia sobre os rumos de minhas investigações daqui por diante". O que confirma estarmos no território da virtualidade, pois nos informa apenas acerca das intenções de publicação futura de nosso convertido autor.
Mas os estudos que constituem este livro real (o que temos, enquanto esperamos os virtuais) nada devem a qualquer forma de dialética. São interessantes discussões acerca da ciência cognitiva e assuntos correlatos, alguns dos quais adotando uma perspectiva crítica em relação às pretensões dessa disciplina, notadamente contra o "naturalismo", tomado no sentido da adoção dos procedimentos das ciências da natureza no estudo do homem.
O antinaturalismo, que ele passa a defender a partir da pág. 133, acentua as diferenças entre as ciências naturais e as humanas, inspira a proposta de que passe a haver uma ciência cognitiva cultural ao lado da ciência cognitiva natural e leva à condenação da ciência cognitiva (incluindo a de Eleanor Rosch, altamente elogiada até então) por ser naturalista, isto é, por ter "em sua parte cultural uma tendência naturalizante, a considerar equivocadamente como naturais aspectos da humanidade que são na verdade culturais".
Só tenho espaço para um exemplo da argumentação antinaturalista do autor, centrada na insistência na "dimensão normativa" própria das ciências humanas e ausente das ciências naturais. Normas como "os preceitos morais, as leis, as regras de boas maneiras e de correção para a linguagem falada e escrita" são "aspectos culturais da humanidade" que estão ausentes das ciências naturais. É trazido o exemplo da análise antinaturalista da ciência política por Charles Taylor. Mas fica difícil ver a relevância de tudo isso para os problemas da ciência cognitiva. Não seria melhor começar pelo esforço de construir uma "ciência cognitiva cultural real", efetivamente presente em teorias concretas? Não consta que exista um único exemplo de tal ciência. Sem dúvida que seria interessante construí-la, como ciência da normatividade ou de outra perspectiva qualquer, e o final do livro parece prometer esforços nesse sentido. Só nos resta aguardar -mas até lá certamente me será perdoado que considere meramente virtuais as críticas deste livro à ciência cognitiva "realmente existente".


Da Ciência Cognitiva à Dialética
Marcos Barbosa de Oliveira Discurso Editorial/Fapesp (Tel. 0/ xx/11/814-5383) 236 págs., R$ 20,00



O tema do doutoramento de nosso autor foi a teoria da ciência de Karl Popper, um filósofo mais "racionalista crítico" do que naturalista e objeto de um dos mais interessantes estudos deste livro. Naquela teoria, a racionalidade da ciência depende fundamentalmente do debate crítico na "comparação" entre teorias científicas opostas. Para tal, obviamente, é preciso que haja teorias científicas em competição, o que não é o caso quanto à oposição, apenas virtual, entre uma ciência cognitiva cultural e uma ciência cognitiva natural. Não creio que a conversão de nosso autor o tenha levado a renegar também as vantagens dessa competição -que espero ninguém pretenda confundir com a competição capitalista.
No ensaio "A Ciência Cognitiva e a Robotização do Homem", o autor critica uma entrevista de Daniel Dennett intitulada "Somos Todos Robôs", com a finalidade expressa de criticar o naturalismo em geral, mas nem mesmo aqui propõe qualquer modelo de "ciência cognitiva cultural". Tece considerações gerais, dizendo, por exemplo, que "o naturalista é levado a conceber como objeto de seu estudo a natureza do homem, sendo esta natureza pensada como algo fixo, imutável", além de tomar "aspectos do homem que são culturais, e portanto modificáveis, como parte de uma natureza humana imutável", o que "equivale a pô-los além da possibilidade de contestação" e "imunes à crítica". Mas continuamos sem receber qualquer sugestão sequer da maneira como poderia ser constituída uma ciência cultural da cognição humana.
Quando autores como Dennett e tantos outros procuram entender melhor a cognição, a consciência e outros aspectos da vida humana tomando o homem como parte da natureza, enquanto produto da evolução das espécies por seleção natural e, portanto, como ser biológico, não pretendem negar que ele seja capaz de cultura ou recusar a distinção entre cultura e natureza, nem, por outro lado, defender posições conservadoras de qualquer tipo. Leia-se, desse filósofo, "A Perigosa Idéia de Darwin" (Rocco), ou outro qualquer de seus numerosos livros, e ver-se-á que o naturalismo no estudo do homem não é um preconceito obscurantista, mas apenas um esforço para abordar velhos problemas de uma maneira nova. O preconceito, receio bem, encontra-se do outro lado.
Num tempo em que cada vez mais se descobre que a comunicação, a sociedade e a própria cultura não são exclusivos de nossa espécie, mas parte de um patrimônio que partilhamos com muitas outras espécies, talvez possa ser considerado natural que muitos cultores das chamadas ciências humanas se sintam "territorialmente" ameaçados em seus domínios teóricos e reajam contra as tentativas de renovação do saber que levam um ou outro aspecto, antes considerado puramente "cultural", a ser considerado, afinal, como parte da natureza. Mas uma verdadeira atitude crítica deve consistir (Marcos Barbosa perdoará que também eu pretenda ser "normativo" em relação aos filósofos) em examinar com cuidado o que de novo vem surgindo no saber atual, seja na filosofia, nas ciências naturais ou humanas ou na ciência cognitiva, sem pretender saber "a priori" que certos aspectos da vida humana são pura e exclusivamente culturais e, portanto, não podem ser discutidos em termos naturalistas. É mais um domínio onde a tolerância tende a coincidir com a prudência.


João Paulo Monteiro é professor do departamento de filosofia da USP e da Universidade de Lisboa.


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