São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 2004

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O HUMOR DE BILLY WILDER

A biografia de um dos maiores diretores de cinema de todos os tempos

TEXTO YANET AGUILERA

"Uma Biografia Pessoal": o uso desse adjetivo nos leva a supor que Charlotte Chandler é apenas um ouvido atento, enquanto o depoimento de Billy Wilder (1906-2002), secundado por amigos e colaboradores, parece compor o próprio quadro biográfico do diretor. Entretanto, ao segmentar cronologicamente o livro, a autora roteiriza os dados desordenados das entrevistas e destaca o grande momento da vida de Wilder: sua consagração de público e de crítica, glória que divide com Alfred Hitchcock e uma minoria de cineastas, numa Hollywood que valorizava principalmente o sucesso. Mesmo que alguns desavisados ainda o confundam com William Wyler, Billy foi um dos mais importantes e conhecidos diretores da Meca do cinema. Chandler situa a bem-sucedida carreira do cineasta entre uma infância sofrida e uma velhice nostálgica, marcada por um olhar crítico sobre o presente insosso. Sua "narrativa" contrapõe ideologicamente o triunfo americano de Wilder e sua obscura pré-história na Europa do início do nazismo. Uma anedota com o herdeiro do Império Austro-Húngaro é bastante ilustrativa. O futuro Billy Wilder, criança judia nascida numa das regiões mais desprestigiadas do império, toma consciência de sua própria insignificância ao assistir à entrada cinematográfica do pequeno príncipe Otto von Habsburg, cujo uniforme branco se sobressai na multidão de luto que acompanha o cortejo fúnebre do imperador Franz Joseph. Anos mais tarde, já em Hollywood, ao reencontrar a personagem, Wilder deixa de ser o espectador fascinado e se torna o interlocutor que pode inverter os papéis do passado. É assim que o príncipe, que aliás é careca e banal, tem de ouvir as incômodas lembranças de um diretor de cinema famoso -a fome e o frio que sentira na Áustria, durante a Primeira Guerra. Não deixa de ser meio constrangedor surpreender Wilder encarnando a personagem que vence pelos próprios méritos na terra da liberdade e das oportunidades, considerando que ele jamais usou esse clichê em seus filmes. Ingenuidade dele ou resultado do roteiro de Chandler? Outro aspecto meio duvidoso da biografia é o tipo de oposição que estabelece entre a Hollywood de outrora e a atual. Wilder afirma que, em seu tempo, "o filme era mais importante que o marketing ou o trailer"; ou ainda que, para os atuais executivos do cinema, tanto faz "vender gravatas, filmes ou camisinhas". Mas sabemos muito bem que o cinema (principalmente o americano), indústria cultural relativamente incipiente na época do diretor, sempre foi uma mercadoria, com a diferença que, agora, pelo desdobramento do capitalismo, delega, sem subterfúgio, todo o poder à publicidade. O próprio Wilder o admite quando conta que, para vender e promover seus filmes, teve que se transformar num produto -um piadista-, porque era o que esperava dele a indústria.

HUMOR IRREVERENTE
É justamente quando persegue o humor do diretor que o trabalho de Chandler se torna mais interessante. Curioso notar como quase todos os colaboradores de Wilder que tomam a palavra no livro parecem se deixar contaminar por esse humor e têm uma anedota engraçada para contar. Por exemplo, Ray Milland, o protagonista de "Farrapo Humano" (1945), diz que recebeu de um admirador o seguinte bilhete: "Caro sr. Milland, sou fã devotado de cinema e alcoólatra crônico. Nunca fui tão tocado por qualquer filme como fui por "Farrapo Humano". Depois de ver seu retrato magistral de um bêbado nesse filme, resolvi abandonar... o cinema". Em geral, as piadas são todas irreverentes. Não há como deixar de lembrar o parentesco entre Wilder e Federico Fellini, outro mestre do riso moderno, também entrevistado por Chandler, em "Eu, Fellini". Tanto um quanto o outro investem num humor cético, que escarnece até mesmo de suas próprias pessoas ou das figuras que representam. Chandler sabe como incorporar ao livro a força da verve irônica de Wilder e assim nos permite enxergar o autor de "Crepúsculo dos Deuses" (1950), "A Montanha dos Sete Abutres" (1951) -umas das sátiras mais amargas do cinema, da mídia e dos espectadores-, "O Pecado Mora ao Lado" (1955), "Quanto Mais Quente Melhor" (1959), "Se Meu Apartamento Falasse" (1960) etc. Vários desses filmes fazem parte de uma das fases áureas da comédia clássica, uma das melhores da cinematografia americana. Gilles Deleuze, que inspirou boa parte das novas críticas e teorias do cinema, considera que a comédia, nesse período, trouxe importantes inovações ao repertório cinematográfico, porque nela a palavra consegue se sobrepor à imagem e ir além da trama por meio de uma verve que mistura à sátira ferina um pouco de "non sense". Em "História do Riso e do Escárnio" (ed. Unesp), o historiador francês Georges Minois sustenta que os melhores comediantes são aqueles que brincam com as palavras, pois o cômico formal é o que mais demora a ficar obsoleto. Sustenta ainda que a figura do palhaço é o correspondente terrestre do Deus farsante que muitas comunidades tiveram em suas mitologias, cujo papel seria justamente o de satisfazer as necessidades e o desejo da coletividade, violando os tabus por meio do riso, da brincadeira ou da farsa. O cineasta Billy Wilder alia esses dois traços. É um mestre da palavra cômica e do riso irreverente, associado ao interdito. Um dos melhores exemplos é o final impagável de "Quanto Mais Quente Melhor": a fim de se livrar da máfia, Jack Lemmon, ainda vestido de mulher, foge com seu apaixonado milionário e, quando enfim lhe revela seu verdadeiro sexo, o outro apenas diz: "Ninguém é perfeito".


YANET AGUILERA é doutoranda no departamento de filosofia da USP e organizadora de "Entre Quadros e Esculturas - Wesley e os Fundadores da Escola Brasil" (Discurso Editorial).

Ninguém é Perfeito - Billy Wilder Uma Biografia Pessoal Charlotte Chandler Tradução Cássia Zanon Landscape (Tel. 0/xx/11/3746-9711) 366 págs. R$ 45,00



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