São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 2004

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EPOPÉIA NEGATIVA DO BRASIL

Nicolau Sevcenko discute modernização conservadora

TEXTO MARIA ALICE REZENDE DE CARVALHO

"Literatura como Missão", de Nicolau Sevcenko -livro que se lê e de que se fala há 20 anos- acaba de receber cuidadosa reedição, com o acréscimo de um caderno de ilustrações e de interessantíssimo posfácio do autor. Obra de grande êxito, é natural que Sevcenko não desafie seu público e, portanto, que as motivações intelectuais que justificaram a elaboração deste trabalho nos idos de 1980 sejam ainda as que comparecem na leitura que o próprio autor oferece às novas gerações de pesquisadores da cultura e da atividade literária no país. Está no posfácio, por exemplo, no tratamento que confere ao conto intitulado "Evolução", de Machado de Assis, a mesma sensível denúncia do "malaise" brasileiro, da reiterada atualização da direção conservadora que nossas elites imprimem aos processos de mudança, que, tal como Sevcenko apontou há duas décadas, somente ao poeta é dado revelar, pois, desinteressado dos "fatos", tenciona-os sempre com a sugestão do que poderia ter sido. Livro, sob todos os critérios, engajado, "Literatura como Missão" fala, pois, do ângulo "triste e sublime" dos que perderam e do que se perdeu. E como a longa marcha da nossa modernização-conservação não conheceu momento significativo de ruptura, o mal-estar experimentado pelos melhores intérpretes da transição brasileira ao moderno, como Euclides da Cunha e Lima Barreto, será, talvez, o ingrediente de identificação do grande público -hoje, como há 20 anos- com essa reflexão sobre história literária que expõe, finamente, a epopéia negativa do Brasil. Imobilidade, conservação, continuísmo -nesse cenário, justifica-se a compreensão que o autor manifesta quanto ao papel dos intelectuais e da cultura como aguilhão, como ponta de diamante contra os bloqueios de um país compressivo. Ou, na alusão de Sevcenko a Dom Quixote, como lança projetada, embora ineficaz, contra velhos e indesejáveis moinhos.

INTELECTUAIS E MUDANÇA
Livros, porém, são rebeldes e muitas vezes contrariam a modelagem que lhes prescrevem os autores. No caso de "Literatura como Missão", seu lançamento em pleno contexto da transição democrática foi recepcionado por parcela influente da opinião universitária como, paradoxalmente, registro de uma combinação bem-sucedida entre intelectuais e mudança. Em especial para quem se encontrava no Rio de Janeiro e aprendeu com Sevcenko que a capital federal foi produto de uma tensa negociação entre elites e pobreza culturalmente autônoma. Sem sofrer controle direto das oligarquias, como no caso das cidades nordestinas, e sem a disciplinarização que o empresariado fabril impôs aos trabalhadores paulistas, a cultura que prosperou na capital do país foi a que reconheceu a tradição do lugar, dela extraiu as qualidades possíveis e as projetou mais amplamente -do que, aliás, é exemplo a universalização que a música negra dos guetos, das casas das "tias", conheceu, a partir da interação dos intelectuais da cidade com o mundo popular. Portanto, da perspectiva do Rio de Janeiro, que não viveu uma Semana de 22 e pode disputar com mais liberdade o significado das noções de mudança, moderno e outros termos afins, o resultado imprevisto da análise empreendida por Sevcenko sobre a capital federal foi a construção de uma avaliação mais amena acerca da modernização brasileira, em que se destacam não o intelectual e a cultura como projeções sublimes de um mundo radicalmente diferente, em colisão com o estado de coisas existente, mas como potenciais realizadores da novidade que sempre perambulou pelas ruas. É claro que, ao longo de um século, o Rio de Janeiro mudou, o país mudou e, para isso, não foram indiferentes os largos períodos de ditadura, que, como notório, instauraram autoritariamente o "novo", cancelando a virtualidade do "novíssimo", isto é, da esboçada proeminência das grandes maiorias nos processos de transformação. Mas talvez se possa dizer que o sucesso editorial de "Literatura como Missão" não se deve tanto à denúncia do que perdemos, mas à comprovação de que elas já começam a chegar ao mundo dos livros e à esfera da opinião.


MARIA ALICE REZENDE DE CARVALHO é professora titular de sociologia do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e autora de "O Quinto Século - André Rebouças e a Construção do Brasil" (Revan).

Literatura como Missão Nicolau Sevcenko Cia. das Letras (Tel.0/xx/11/3707-3500) 416 págs. R$ 39,50



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