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A RAZÃO NO OCIDENTE
O processo de racionalização segundo Max Weber
TEXTO RICARDO ABRAMOVAY
A tradição da psicologia empirista britânica a partir de Thomas Hobbes, no século 17, fez do conceito de racionalidade
a pedra angular do pensamento econômico. Mesmo que nem todos os homens
sejam igualmente hábeis em sua capacidade de adequar os meios com que contam aos fins a que almejam, na média e
ao longo do tempo eles o são, e seu comportamento pode ser compreendido
com base num conjunto de regras universais cujo conhecimento é objeto da
ciência.
A racionalidade pode variar do obscuro e destrutivo pessimismo de Hobbes à
simpatia democrática de Locke ou Adam
Smith; pode ser transparente e sua comunicação totalmente fluida, como em
Walras, ou incompleta, imperfeita, como é o caso, nas teorias econômicas contemporâneas. Em todo caso, faz parte
dessa tradição tratar a racionalidade como premissa lógica.
O conceito de racionalidade é central
na obra de Max Weber, mas num sentido bem diferente daquele que se consolidou na economia a partir da tradição britânica. Para Weber, racionalização é um
longo processo histórico que resulta na
formação dos próprios pilares do Ocidente, de uma civilização caracterizada,
como é dito na primeira frase de "A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo",
por "fenômenos culturais dotados (...) de
um desenvolvimento universal em seu
valor e significado".
Quem ler a "Introdução" de "A Ética
Protestante" verá, de forma surpreendente, o processo de racionalização tomando conta de todas as dimensões da
vida social: da música, da arquitetura, da
história, da ciência, do Estado, do capitalismo e até mesmo da religião. A universalidade no valor e no significado dos fenômenos culturais do Ocidente só pode
ser compreendida como produto de circunstâncias histórico-concretas, e não
como expressão triunfante de uma capacidade genérica, abstrata.
E é o que torna a obra de Weber muitas
vezes de difícil leitura para o estilo dominante hoje nas ciências sociais: seus textos sempre procuram reunir elementos
históricos e sociológicos os mais variados, sem que haja um roteiro explicativo
previamente formulado ou leis históricas abstratas das quais os fatos reunidos
pudessem aparecer como ilustrações ou
casos. Apesar disso, Weber forjou conceitos gerais cuja atualidade nas ciências
sociais contemporâneas é inegável. Mais
que isso, mostrou -de forma histórica e
não-dedutiva- um longo processo de
racionalização, estudado nesse livro de
Antônio Flávio Pierucci sob o registro de
um conceito central: o desencantamento
do mundo.
UM ROTEIRO
O rigor e a abrangência da bibliografia utilizada em "O
Desencantamento do Mundo" não fazem desse livro um texto técnico e acessível apenas a especialistas. Talvez seja
exagero dizer que o livro se lê como um
romance, mas a verdade é que Pierucci
expõe uma trama, organiza suas idéias
em torno de um roteiro: durante alguns
anos, ele leu a obra de Max Weber e assinalou todas as vezes em que aparece a
expressão que dá título ao seu livro. Fez
isso manualmente e deparou com o termo "desencantamento do mundo" apenas 17 vezes. O exame de cada uma destas expressões constitui o cerne de um
panorama impressionante e extremamente didático da obra de Max Weber.
Pierucci começa o livro alertando que
Weber não é um sociólogo da religião,
apesar de ter dedicado aos fenômenos
religiosos parte imensa de sua obra. A religião é, paradoxalmente, uma das mais
importantes modalidades sociais de racionalização: as grandes religiões mundiais só se consolidam por sua oposição
à magia. Na verdade, a magia responde a
uma lógica instrumental próxima à do
utilitarismo: o comércio com os deuses
tem objetivos práticos, imediatos, e o recurso a expedientes mágicos apóia-se no
poder de um grupo reconhecido socialmente por suas capacidades de mobilização desse universo mágico.
As grandes religiões mundiais substituem justamente a magia prático-instrumental, voltada a deuses diversos, por
um Deus que se caracteriza não por
meios mágicos de intervenção imediata
na vida dos homens, mas pela formulação de uma ética universal, que será interiorizada e transformada em regra de
conduta cotidiana. É com a formação do
judaísmo antigo que se origina o processo de desencantamento do mundo, entendido como "desmagificação" -a
construção de um universo religioso que
vai suprimindo cada vez mais a magia
por crenças de natureza ética. Esse processo culmina no protestantismo e na
supressão de qualquer relação ritual entre as criaturas e o Criador. É um belo
exemplo daquilo que define a própria sociologia: o sentido que os próprios indivíduos atribuem a sua ação.
Além da desmagificação, desencantamento do mundo tem um outro significado: perda de sentido. O texto emblemático a esse respeito é a célebre conferência que Weber fez a estudantes de
Munique a partir da pergunta: qual o
sentido da ciência para os jovens que estão no momento de escolher uma profissão? A ciência retira sentido do mundo,
já que faz dele um "cosmos da causalidade natural", algo perfeitamente explicável e, portanto, desprovido de mistério.
Ao mesmo tempo, a ciência se caracteriza exatamente pela impossibilidade de
uma visão única, completa, acabada a
respeito dos fenômenos que estuda: ela é
provisória por definição e aí reside exatamente sua força, que consiste sempre em
ser superada por novos avanços.
Mas isso quer dizer que a ciência não é
capaz de fornecer resposta a questões essenciais a respeito do sentido da vida e da
morte, por exemplo. Buscar na ciência a
receita para a conduta individual ou social é abrir o caminho para o totalitarismo. O cientista não é um formulador de
utopias, e sim alguém cuja contribuição
social está em sua capacidade crítica, na
elaboração e utilização de conceitos que
permitam compreender inclusive as utopias como fenômenos sociológicos.
RICARDO ABRAMOVAY é professor titular
do departamento de economia da USP e autor de "O
Futuro das Regiões Rurais" (ed. UFRGS).
O Desencantamento do Mundo Antônio Flávio Pierucci
Editora 34 (Tel. 0/xx/11/3816-6777)
240 págs. R$ 34
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