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São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

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Ensaios de Marilena Chaui explicam filosofia política de Espinosa

Exercício livre do pensamento

RENATO LESSA

Na introdução ao "Tratado Teológico-Político", publicado em 1670, e em muitas de suas cartas, Baruch de Espinosa enumera um conjunto de razões que o teriam levado a escrever essa obra. Todas elas são devastadoras, se considerarmos os hábitos religiosos e cognitivos básicos do século 17.
Entre as razões encontramos o desejo de demonstrar que não há nas "Escrituras" nenhuma forma de verdade especulativa, mas tão-somente ensinamentos morais e religiosos, de uma simplicidade tal que crentes ordinários não encontram dificuldades maiores em sua compreensão. Mais do que isso, Espinosa visa a explicar as contradições entre as narrativas dos Profetas não como mistérios divinos, mas como produtos de condições, digamos, "materiais" precisas, que têm que ver com variações culturais, históricas, linguísticas, psicológicas e políticas, todas explicáveis por um método histórico, crítico e filológico.
O choque de realismo na análise das "Escrituras" é acompanhado por duas motivações de natureza filosófica: operar uma distinção clara entre teologia e filosofia e orientar os que se confundem com as contradições entre esses dois regimes intelectuais. Pela distinção, a teologia é remetida a seu campo próprio, o da política, sendo, pois, desprovida de qualquer virtude cognitiva intrínseca.
No desejo de orientação dos confusos, aparece o que pode ser tomado como o núcleo da obra de Espinosa. Tal como em Maimônides, aqui encontramos um guia para os perplexos. A diferença reside no fato de que em Maimônides tratava-se de erradicar a perplexidade e de sustentar o regime da crença, enquanto em Espinosa o que se impõe é a libertação da filosofia -e por extensão da política-, pela sua não-subordinação à revelação e à teologia. Em "Política em Espinosa", Marilena Chaui nos proporciona um inestimável guia de orientação para o guia de Espinosa. Trata-se de um magnífico conjunto de ensaios nos quais a potência política do corpus espinosano é destacada em diversos de seus endereços recônditos e revelada em sua radicalidade: se a teologia é o regime simbólico da política teocrática, a filosofia exige a liberdade de pensamento, a expressão da potência humana -e, portanto, divina- e, para o registro prático, a política democrática.

Filosofia e teologia
O livro é constituído por cinco ensaios, dois dos quais ("Política e Profecia" e "A Instituição do Campo Político") com fôlego e extensão para serem publicados como livros independentes. O terceiro da série, "Direito e Potência - Experiência e Geometria no "Tratado Político'", discute o posicionamento de Espinosa diante das duas tradições da filosofia política, a experimental e a racional, indicando a convivência de uma concepção geométrica do campo político com uma noção realista do direito, das formas da política e do lugar da "multitudo" (multidão).
Os demais ensaios tratam, respectivamente, das noções de plebe e de vulgar no "Tratado Político" e das principais diferenças entre Hobbes e Espinosa no que diz respeito aos temas do direito natural e do direito civil.
Nesse sentido, não se trata de uma apresentação ordenada e sequencial a respeito da teoria política de Espinosa. Mas, o que a olhos mais metódicos poderia sugerir alguma frustração, acaba por configurar-se como um modo virtuoso e altamente prazeroso de discutir os significados e lugares da política em Espinosa. Com efeito, é menos nas passagens explicitamente políticas e mais, muito mais, na definição de Deus, na primeira parte da "Ética" ("De Deo"), na discussão sobre profecias, na distinção entre filosofia e teologia e no modo de constituição da "multitudo", no estado de natureza que uma concepção original e libertária da política se insinua.
Em um ótimo trabalho recente sobre Espinosa ("Imaginação e Poder - Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa", Lisboa, Colibri), Diogo Pires Aurélio indaga a respeito da pertinência de falarmos de uma teoria política espinosana. Sua resposta é positiva, sob a condição de que se busquem os componentes da filosofia política de Espinosa menos em textos explicitamente políticos -nos quais o paralelo com Hobbes é forte- e mais na "profundidade de sua ontologia".
Pois bem, essa resposta foi antecipada por Marilena Chaui, no conjunto de ensaios que constituem "Política em Espinosa", publicados originalmente entre 1978 e 1995. O método de detecção é indicar as implicações políticas das posições filosóficas básicas de Espinosa, em uma operação que faz jus à expressão "filosofia política", que não se confunde com um regime intelectual especializado e exclusivamente voltado para a elucidação de fenômenos de natureza estritamente política e institucional.
Um dos temas fortes, presentes em todos os ensaios é o da distinção espinosana entre teologia e filosofia. Logo no primeiro ensaio, "Política e Profecia", duas proposições importantes de Espinosa sobre aquela distinção são apresentadas e exploradas de forma magnífica. A primeira diz respeito ao que é próprio da teologia racional (na verdade, um oxímoro), ou seja, sua função de conferir à religião revelada "um suporte mais firme do que a flutuação das paixões humanas". Ao fazê-lo, a teologia racional se apresenta como "imposição da imagem da autoridade como fonte (de) constância e (de) firmeza". A segunda proposição a destacar é a que sustenta que teologia e filosofia diferem entre si não tanto pelo "tipo de verdade que alcançam, e sim pelo tipo de prática que produzem".
Nas duas proposições o registro da intervenção é o da política. Se a filosofia é o "contradiscurso da teologia" e se o terreno dessa disputa não é o dos efeitos de conhecimento e de instanciação da verdade, em que lugar detectar as consequências práticas de ambos os registros e de sua oposição? O registro político da teologia é o da teocracia e o da obediência e da autoridade. Se a filosofia é seu contradiscurso e exprime sua diferença em termos práticos, cabe a pergunta: qual o seu registro? Ao elucidar essa discussão, Marilena Chaui exibe de forma direta e clara a disjuntiva de Espinosa: teologia é não-saber, filosofia é saber.

Ontologia do necessário
Esse saber, próprio da filosofia, nada tem de contemplativo. Trata-se de um saber sobre a totalidade da existência, sustentado na simples fórmula "Deus sive natura". Deus, em uma formulação que encantava a Jorge Luis Borges, é uma substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita. Todo o existente é produto da ação da livre potência da substância absolutamente infinita de Deus: "Deus é causa imanente de todas as coisas, e não causa transitiva delas" ("Ética"). Deus, portanto, age "apenas pela necessidade de sua própria natureza sem qualquer constrangimento". O mundo -enquanto "natureza naturada"- que decorre de tal potência não é produto de qualquer capricho ou mistério, mas algo necessário da própria natureza divina (ou "natureza naturante").
Chaui resume esse movimento da fabulação espinosana com a expressão "ontologia do necessário". Em suma, não há contingência ou mistério, mas um curso ontológico que faz da idéia de liberdade simplesmente o que resulta da expressão natural da potência (divina e humana).
A filosofia como saber denuncia a religião como artifício para mitigar a angústia da contingência e a teologia como pretensão de racionalizar a submissão humana. Nesse sentido, seu registro prático decorre de sua capacidade de buscar conhecer como as coisas são. Nada mais contrário à sua índole do que a "excessiva autoridade dos pregadores", que impedem o "dizer o que se pensa". O regime prático da filosofia é o da liberdade de pensamento e de expressão, condição necessária para a república e para a política democrática. A filosofia, afinal, é "exercício livre do pensamento".
Umas das arenas preferenciais de combate de Espinosa foi a da interpretação das "Escrituras". Nesse domínio, o que importou foi a dessacralização dos textos e sua subordinação a considerações históricas, culturais, políticas e linguísticas. As "Escrituras" são percebidas por Espinosa como narrativa da história hebraica e de sua própria história e mostram ainda "como o documento atribui sentido às próprias circunstâncias históricas que o suscitam".
É fundamental considerar, no entanto, que a inovação espinosana foi precedida por uma importante mutação nos estudos bíblicos, no decorrer do século 17. Em termos mais diretos, o empreendimento de Espinosa talvez não fosse possível -ou não tivesse tido o alcance que teve- sem a antecipação bizarra e genial da obra de Isaac la Peyrère, "Os Pré-Adamitas", e do trabalho de investigação bíblica do padre oratoriano Richard Simon. Tal como reconstituída por Richard Popkin em dois livros seminais ("História do Ceticismo de Erasmo a Espinosa" e "Isaac la Peyrère"), a obra de La Peyrère teve como argumento central a tese da existência de seres humanos antes de Adão, o que transformou a Bíblia em um livro histórico que contém tão-somente o registro da história dos judeus.
O realismo histórico e linguístico empregado por Espinosa elucida um conjunto de temas políticos, na leitura das "Escrituras". Um deles diz respeito ao problema da profecia. Em uma primeira aproximação, o profeta é aquele que "interpreta as coisas que Deus revela para aqueles que não podem ter um conhecimento exato e que, por isso, só pela fé as podem perfilhar" ("Tratado Teológico-Político"). No entanto a certeza profética não é apodítica e demonstrável, mas sim de natureza moral ou persuasiva, "adaptada à compreensão do profeta e de seus ouvintes".

Verdades morais
Disso deriva a sua variedade. Seu motor, na verdade, é "acima de tudo (...) a justiça e o bem". O profeta, portanto, é uma figura política central de um ordenamento teocrático -tal como o da sociedade hebraica das "Escrituras". Seu produto -a profecia- é um "princípio de organização sociopolítica próprio da teocracia". Mas, sendo assim, é possível enquadrar a profecia -ainda em termos espinosanos, creio- de um outro modo, desvinculando-a da prisão histórica original. Não tendo validade especulativa, mas tão-somente moral, uma leitura laica da profecia poderia aproximá-la a uma modalidade de pensamento que poderíamos designar como antecipatória.
Nesse sentido, a profecia afirma verdades morais indemonstráveis pela razão e as inscreve em futuros possíveis ou em presentes organizados por tais imagens de futuro. O conhecimento profético, assim descrito, assemelha-se à faina da filosofia política. Independentemente dos regimes contingentes que a aprisionam, ela lida com futuros possíveis e com certezas morais dispostas na ordem do tempo. E, mais do que tudo, a profecia indica o lugar do inimigo.
De um ponto de vista pirrônico, Espinosa é um dogmático. O juízo parece contradizer algumas evidências fortes: como é possível designar como dogmático o mais radical dos defensores da liberdade de pensamento e da autonomia humana? O que justifica atribuir tão desagradável característica a este diligente aluno de Menasseh ben Israel e paciente polidor de lentes?
Apesar do sabor de paradoxo, a classificação implacável dos céticos se sustenta. Espinosa é um dogmático porque fundamenta seu "sistema" em princípios não-evidentes ("ádelon"), aos quais só obtemos acesso cognitivo se com ele concordarmos. No entanto, dado o imperativo de viver em um mundo constituído por decantações de dogmas -nem todos palatáveis-, não há como reconhecer que Espinosa é o mais adorável dos dogmáticos. Sua obra, magistralmente tratada por Marilena Chaui -antes, em "A Nervura do Real" (Cia. das Letras) e, agora, em "Política em Espinosa"-, constitui um novo guia para os perplexos; os de então, de um século assolado pela querela das teologias, e os de hoje. Sobretudo para os que, hoje, estão atônitos com a neutralização da política, com a naturalização inautêntica da vida social e com o demofóbico desprezo da multidão como sede da soberania.


Renato Lessa é professor titular de teoria política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e autor, entre outros livros, de "Veneno Pirrônico - Ensaios sobre o Ceticismo" (Francisco Alves).

Política em Espinosa
Marilena Chaui
Companhias das Letras (Tel. 0/xx/ 11/3707-3500)
344 págs., R$ 39,00


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