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Lição de anatomia
EDUARDO KICKHÖFEL
O nome Andreas Vesalius lembra imediatamente o surgimento da anatomia moderna. Nascido em 1514 numa família
de médicos, Vesalius desde muito cedo voltou-se para o estudo
da medicina. Após estudos em Louvain e Paris, Vesalius foi para Pádua em 1537, cidade cuja universidade o acolheu ainda
muito jovem como professor de cirurgia e anatomia. Após publicar sua tese de doutoramento (1537) e as "Tabulae Sex"
(1538), reeditar um texto de seu professor parisiense Johann
Guinther von Andernach, "Instituitiones" (1538), escrever uma
polêmica carta a respeito da venissecção (1539) e servir como
revisor de três textos anatômicos de Galeno para a grande edição Giunta da "Opera Galeni" (1541), Vesalius publicou seu
grande livro, "De Humani Corporis Fabrica" (1543), juntamente com um resumo intitulado "Epitome". Em seguida, Vesalius
deixou sua promissora carreira acadêmica e, seguindo a tradição de sua família, serviu a casa dos Habsburgos até 1564, ano
de sua morte na volta de uma misteriosa peregrinação à Terra
Santa.
Há pouco mais de 50 anos, O'Malley e Saunders, autores de
uma extensa bibliografia a respeito de história da medicina, na
qual se destaca um excelente catálogo a respeito dos desenhos
de anatomia de Leonardo da Vinci, publicaram uma importante edição das ilustrações dos trabalhos de Vesalius, que é composta de um esboço biográfico introdutório seguido de reproduções de todas as pranchas dos trabalhos de Vesalius, acompanhadas de traduções de alguns de seus textos originais e de
comentários anatômicos detalhados.
Seu texto introdutório está ordenado segundo episódios da
vida de Vesalius, com seções a respeito de assuntos diversos colocados em pontos muito oportunos, como por exemplo a discussão a respeito do impressor Johannes Oporinus e do estado
da ilustração anatômica na época de Vesalius. O texto mostra
evidentemente o grande conhecimento das fontes por parte dos
autores. Suas opiniões são moderadas a respeito de muitas
questões que facilmente provocam especulações sem fundamento, quando não opiniões sensacionalistas, como, por exemplo, o problema da autoria das ilustrações do grande livro de
Vesalius. Entretanto há alguns problemas a serem apontados.
Após comentar o método de Vesalius para resolver o tradicional problema da venissecção, O'Malley e Saunders sustentam
que a observação direta do corpo humano realizada por Vesalius faz do "De Humani Corporis Fabrica" "o primeiro avanço
real na ciência moderna". Essa tese é repetida insistentemente.
Ao final da introdução, por exemplo, Vesalius é considerado "o
primeiro homem da ciência moderna". Aparentemente, O'Malley e Saunders trabalharam sobre alguma concepção de ciência, como mostra a sua opinião a respeito de "ocupações intelectuais, científicas ou pseudocientíficas" dos médicos do século 16. No entanto isso permanece sem uma distinção clara.
A marca distintiva da ciência moderna é a matematização da
física associada à experimentação, ambas alcançadas no início
do século 17 por Galileu, em suas análises do movimento dos
corpos. Em oposição a isso, a anatomia era uma ciência descritiva, de modo que não havia como Vesalius quantificá-la ou
realizar experimentos. Dessa forma, a anatomia de Vesalius não
satisfaz as condições da ciência moderna. A parte observacional
foi importante à anatomia do século 16, assim como para todas
as ciências do século 17 em diante, e a importância de Vesalius
nesse ponto é inquestionável. Entretanto apenas observação e
descrição não fizeram a ciência moderna.
Além disso, Vesalius não rompeu com a "fisiologia" de Galeno, e, mesmo quando isso foi feito por William Harvey, houve
apenas a unificação entre a anatomia e a "fisiologia", mas não a
concepção de um quadro teórico unificador, como o de Newton. Isso posto, negar às ciências da vida alguma participação
relevante na ciência moderna talvez pareça arrogância. Entretanto é consenso geral entre historiadores da ciência a importância das ciências ditas "duras" para o desenvolvimento da
ciência moderna. Caso se queira contrariar essa tese, que seja
apresentada uma nova idéia a respeito da formação da ciência
moderna, na qual a obra de Andreas Vesalius fique enquadrada.
Além disso, falta na introdução um panorama do ensino da
anatomia até Vesalius, de modo que a partir disso se possa conhecer o aspecto inovador de seus métodos de observação e investigação. O'Malley e Saunders dizem que "ver um professor
descer de sua cátedra acadêmica para dissecar e fazer demonstrações pessoais no cadáver era algo totalmente inusitado na
época". A postura de Vesalius aqui brevemente descrita só é entendida como inovadora quando se sabe que o ensino universitário da anatomia entre o século 14 e a metade do século 16 consistiu na leitura de um texto pelo professor para seus alunos, enquanto um assistente, usualmente um cirurgião iletrado, mostrava junto do cadáver as estruturas descritas nesse texto. Isso
está claramente ilustrado em inúmeras gravuras da segunda
metade do século 15. A gravura inicial de "De Humani Corporis
Fabrica", na qual Vesalius é mostrado junto de um cadáver, é
um contraponto evidente a essas ilustrações.
Por fim, lamenta-se a falta um aparato crítico para que seus
leitores busquem as fontes consultadas. Segundo O'Malley e
Saunders, a documentação está omitida "por estar além dos objetivos desta publicação". Não obstante sua extraordinária parte ilustrada, cujo assunto é de interesse amplo e de fácil acesso
ao "leitor comum", a cultura mediana é evidentemente alheia a
uma publicação como esta. O livro em questão não consiste, de
fato, numa obra de divulgação científica. Trata-se de um lançamento importante no meio acadêmico brasileiro. A edição brasileira segue o modelo da original, sendo apenas um pouco
maior, e sua qualidade gráfica é muito boa. Nota-se, contudo, a
falta de um prefácio que a contextualize historicamente no âmbito das pesquisas a respeito de Vesalius e sua obra, de modo
que se possa avaliar sua relevância e atualidade.
Eduardo Henrique Peiruque Kickhöfel é mestre em história da arte e da cultura pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutorando em filosofia pela USP.
De Humani Corporis Fabrica, Epitome, Tabulae Sex
Andreas Vesalius de Bruxelas
Organização: Charles D. O'Malley e J.B. de C.M. Saunders
Tradução: Pedro C.P. Lemos e Maria C.V. Carnevale
Ateliê/Ed. Unicamp/Imprensa Oficial SP (Tel. 0/xx/11/4612-9666)
268 págs., R$ 120,00
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