São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
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Estudo investiga a criação e o artesanato de Maurício Azeredo
Um dialeto inconfundível

ANA LUISA ESCOREL

As tentativas feitas no Brasil de tratar o design de forma mais sistemática deixam um pouco a desejar, salvo as exceções de sempre. Nos casos em que a abordagem tem caráter sincrônico, é difícil que o autor atinja aqueles momentos de intuição reveladora que iluminam as questões em torno das quais costumam girar as preocupações de quem se interessa pelo design, seja como linguagem, atividade profissional ou técnica de comunicação.
Quando a abordagem tem caráter diacrônico, encadeando os fatos e perseguindo seu sentido, o resultado tende a ser melhor na medida em que não só o autor se move num terreno já bastante sedimentado, como também não lhe cabe propriamente a obrigação de tratar questões relativas à linguagem e, como decorrência, à maneira como a expressão se organiza no produto por meio do projeto.
A propósito, o livro de Adélia Borges talvez tenha se deixado enredar numa armadilha ardilosa, apesar do interesse de seu objeto e da apaixonada abordagem feita por uma jornalista que tem se ocupado seriamente com a questão do design em nosso país.
Maurício Azeredo é, sem sombra de dúvida, um grande criador. Desses artistas raros que não só chegam à plena mestria de seus meios como conseguem definir um timbre próprio ao articular com extrema sensibilidade as infinitas variações dos temas que não pára de inventar, construindo com seus móveis um dialeto inconfundível de grande beleza.
Como se não bastasse, os princípios que norteiam sua invenção repousam na mais absoluta reverência à natureza e ao cuidado com seu equilíbrio. Experimentalista, faz da pesquisa sobre nossas madeiras um exercício cromático por meio do qual a forma, o encaixe e a superfície de seus objetos atingem uma compleição absolutamente brasileira e original. E isso tudo é destacado por Adélia Borges.

Artesanato e design
No entanto, e aqui entraria uma discordância com o enfoque principal da autora, tanto o método quanto a tecnologia de trabalho de Azeredo o definem com um artesão, não como um designer. Um artesão comprometido com a fatura e o acabamento individual de suas peças, frequentemente obras únicas que burila à exaustão, e com as quais gastará o tempo que for necessário para atingir o rigor compatível com sua grande exigência.
Ora, essa não costuma ser a duração, o método, nem o conjunto de recursos, enfim, que caracterizam a ação do designer. E não que o designer não deva ser absolutamente preciso e rigoroso nos limites das atribuições de seu campo. Ocorre que duas são as condições necessárias para que se configure a presença do design: 1) que exista projeto; 2) que a tecnologia de fabricação escolhida pressuponha a reprodução de uma matriz por meios industriais ou pós-industriais, como o eletrônico, por exemplo.

Maurício Azeredo - A Construção da Identidade Brasileira no Mobiliário
Adélia Borges Instituto Lina Bo e P.M. Bardi (Tel. 0/xx/11/3744-9902) 114 págs., R$ 30,00



De fato, as pequenas séries obtidas por meio de tecnologias artesanais ou semi-artesanais permitem um tipo de interferência que é vedada ao designer, ou seja, que a fabricação se interrompa para que o objeto seja ajustado, depurado, corrigido. Em processos de produção regidos pela metodologia do design, caso se quisesse proceder de maneira semelhante, seria necessário refazer a matriz. Interromper a fabricação para tentar mudar seu rumo seria não apenas impensável, como inexequível. Sendo assim, certamente teria sido mais adequado focalizar a produção de Azeredo como a de um artesão excepcional que trouxe para seu ofício os conhecimentos adquiridos na formação de arquiteto.
Além disso, como aponta Adélia ao longo de seu texto, o trabalho de Azeredo não se impõe apenas por suas qualidades formais, mas, também, por seu interesse cultural, pelo fato de encarnar exemplarmente um certo tipo de compromisso com a cultura brasileira. E esse talvez seja o grande mérito da autora: revelar numa escrita transparente não só à dimensão humana de um profissional de exceção, inserindo-o com carinho em seu tempo e nos ambientes em que desenvolveu sua inteligência e amadureceu seus propósitos, mas descrever os movimentos de um criador empenhado em exprimir as raízes de sua gente numa linguagem pessoal, periodicamente refrescada pela busca incessante da auto-superação.
Não menos meritória foi a escolha feita por Adélia do fotógrafo e dos designers gráficos, Rômulo Fialdini, Ricardo Ribenboim e Rodney Schunck, parceiros sensíveis, indispensáveis à construção da bela trama tecida pela palavra e pela imagem, na qual estão apoiados o discurso do livro e a valorização dos objetos produzidos por Azeredo.
Por outro lado, a inserção dos depoimentos laudatórios, prestados por colegas arquitetos e admiradores da obra de Azeredo, não só entram em conflito com sua alardeada modéstia, como pouco acrescentam ao perfil traçado por Adélia Borges, remetendo a um tipo de aproximação mais própria do portfólio profissional do que do exame de uma trajetória.
Finalizando, enquanto o termo design continuar acolhendo em seu âmbito tudo o que se acha com direito de nele se encaixar, talvez mais apropriado do que criticar os estilos pelos quais se tornou conhecido fosse compreender as razões dessa da prevalência. Da mesma maneira, contrapor a graça do artesanal à inevitável precisão uniformizadora da indústria talvez possa remeter a uma espécie de resistência ao design, ainda que inconsciente. Na verdade, o design implica numa nova forma de feitura e de fruição de objetos e informações. Implica, também, numa nova estética. A cultura que não souber incorporá-lo estará fadada a atrasar o passo, dificultando sua sintonia com a torrente transnacional do mundo globalizado.


Ana Luisa Escorel é designer e integra a equipe de planejamento, projeto e assessoria do 19 Design e a diretoria regional da ADG - Associação dos Designers Gráficos no Rio de Janeiro.

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