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Abracadabra do horror
JORGE COLI
Não, a cultura não é vivida tranquilamente nos EUA.
"Highbrow" e "lowbrow" -testa alta, testa baixa- são
expressões que indicam uma guerra de preconceitos.
Elas distinguem as poses intelectuais chiques, socialmente aprovadas, das que revelam prazeres incultos,
impuros e párias. Nas universidades, pode-se, é claro,
fazer uma análise complicada de qualquer coisa, sobretudo se a intenção for revelar, por meio de uma ginástica mental bem cansativa, astuciosas intenções ocultas
nesse objeto. Posso escrever um ensaio sobre a natureza
da pornografia, por exemplo. Mas não posso gostar de
pornografia. Ou melhor, não posso dizer que gosto. O
"lowbrow" é permitido apenas se for visto dentro de
uma atitude "highbrow".
É esta a situação do livro acima. No início, o autor explica: "Meus pais deram origem sem querer a este tratado quando me disseram para não perder tempo e dinheiro com livros, revistas, revistas em quadrinhos,
programas de TV e filmes de horror. Num ato final de
provocação filial, decidi provar a eles que aquele tempo
todo me dedicara a algo proveitoso".
Ao garoto desobediente sucede o adulto e professor
universitário tentando demonstrar que esse gênero é
digno de uma reflexão elevada. Decide então construir
uma teoria da literatura e do cinema de terror, uma teoria que seja, modestamente, essencial e definitiva. Diz
ele: "É minha intenção fazer com o gênero do horror o
que Aristóteles fez com a tragédia".
O tom ambicioso tropeça, porém, já que a pretensão
teórica não vai além de um procedimento classificatório. Os capítulos escondem o vazio com títulos espertos
-"Biologias Fantásticas e as Estruturas das Imagens do
Horror" ou "Acerca do Impacto das Narrativas de Horror Características" e assim por diante. Alguns conceitos voltam, de modo martelado, a fim de parecerem invenções novas e fundamentais, mas funcionando antes
como fórmula cabalística. Desse modo, "paradoxo da
ficção" é uma espécie de "abracadabra" reiterado: quer
dizer muito pouco (o paradoxo é: como podemos ter
medo de monstros que não existem?), mas soa complicado e parece poder revelar tesouros.
Na verdade, os tesouros acabam desperdiçados. O autor os ordena, como se tivesse trazido armários para a
caverna de Ali-Babá e colocado cada objeto de ouro na
prateleira certa, e pronto. Por exemplo, o livro identifica
"14 formatos possíveis de histórias de horror: irrupção;
irrupção/descobrimento; irrupção/ confirmação; irrupção/ confronto; irrupção/confirmação/ confronto;
irrupção/ descobrimento/ confirmação/confronto; descobrimento; descobrimento/confirmação; descobrimento/confronto; descobrimento/confirmação/ confronto; confirmação; confirmação/confronto; e confronto. Essas 14 estruturas básicas de enredo, é claro,
não esgotam o leque inteiro de esquemas de histórias".
A Filosofia do Horror ou Os Paradoxos do Coração
Noel Carroll
Tradução: Roberto Leal Ferreira
Papirus (Tel. 0/xx/19/272-4500)
320 págs., R$ 49,50
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Esse paroxismo classificatório apenas esconde uma
imagem de rigor. Há uma certa sedução no emprego de
números e esquemas para analisar os objetos da cultura: parece científico. Se não for este o motivo, é então
pura maluquice inútil. Encaixar um filme numa categoria ou em outra nada acrescenta à sua compreensão. Sequer o número 14 é justificável, já que o desdobramento
poderia ir até... onde? O que é o "leque inteiro de esquemas"? 28? 56? Infinitos?
Ou, ainda, de que adianta pôr "O Iluminado" na categoria das "casas malignas", subcategoria "possessão da
vida de novos habitantes da casa com o propósito de
reencenar algum mal passado", se o filme de Kubrick é
ignorado em sua complexidade? Por sinal, ele é, de fato,
inteiramente ignorado. Como pode um livro sobre o
horror na literatura e no cinema dos últimos 50 anos,
esquecer "O Iluminado", de Kubrick?
Pode, porque o que conta é o sistema classificatório,
disfarçado por pretensões à filosofia. Quando a obsessão esquemática dá, às vezes, lugar a tentativas de interpretações mais gerais, nenhuma das leituras propostas,
sejam elas sintéticas ou analíticas, convence. Deploráveis, as generalidades sobre a "psicologia" do terror ou
as últimas páginas pseudo-histórico-sociológicas, muito simplistas.
De certa forma, porém, se o livro não entusiasma, possui algo de comovente. Porque o autor é sincero no seu
amor por essa literatura e esses filmes considerados "inferiores". Preso na trama dos preconceitos universitários, tenta fazer o que pode, com instrumentos factícios,
mas que serão aceitos e reconhecidos como legítimos
por seus pares. Às vezes, uma ou outra intuição se acende, extinguindo-se em seguida.
Isto é pouco para compensar sua leitura. Outras obras
mais importantes, clássicas ou recentes, poderiam vir
enriquecer o mercado editorial brasileiro, tão desprovido nesses domínios. Assim, qualquer um que leia "Gothic -Four Hundred Years of Excess, Horror, Evil and
Ruin", livro de âmbito mais amplo, de Richard Davenport-Hines, representante de velho e excelente humanismo europeu, sai recompensado, com a cabeça efervescente, com o espírito sedento, querendo mais. Quem
consegue chegar à última página de "A Filosofia do
Horror", de Noël Carroll, solta um "ufa!" de alívio.
Jorge Coli é professor de história da arte na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp).
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