São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
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Abracadabra do horror

JORGE COLI

Não, a cultura não é vivida tranquilamente nos EUA. "Highbrow" e "lowbrow" -testa alta, testa baixa- são expressões que indicam uma guerra de preconceitos. Elas distinguem as poses intelectuais chiques, socialmente aprovadas, das que revelam prazeres incultos, impuros e párias. Nas universidades, pode-se, é claro, fazer uma análise complicada de qualquer coisa, sobretudo se a intenção for revelar, por meio de uma ginástica mental bem cansativa, astuciosas intenções ocultas nesse objeto. Posso escrever um ensaio sobre a natureza da pornografia, por exemplo. Mas não posso gostar de pornografia. Ou melhor, não posso dizer que gosto. O "lowbrow" é permitido apenas se for visto dentro de uma atitude "highbrow".
É esta a situação do livro acima. No início, o autor explica: "Meus pais deram origem sem querer a este tratado quando me disseram para não perder tempo e dinheiro com livros, revistas, revistas em quadrinhos, programas de TV e filmes de horror. Num ato final de provocação filial, decidi provar a eles que aquele tempo todo me dedicara a algo proveitoso".
Ao garoto desobediente sucede o adulto e professor universitário tentando demonstrar que esse gênero é digno de uma reflexão elevada. Decide então construir uma teoria da literatura e do cinema de terror, uma teoria que seja, modestamente, essencial e definitiva. Diz ele: "É minha intenção fazer com o gênero do horror o que Aristóteles fez com a tragédia".
O tom ambicioso tropeça, porém, já que a pretensão teórica não vai além de um procedimento classificatório. Os capítulos escondem o vazio com títulos espertos -"Biologias Fantásticas e as Estruturas das Imagens do Horror" ou "Acerca do Impacto das Narrativas de Horror Características" e assim por diante. Alguns conceitos voltam, de modo martelado, a fim de parecerem invenções novas e fundamentais, mas funcionando antes como fórmula cabalística. Desse modo, "paradoxo da ficção" é uma espécie de "abracadabra" reiterado: quer dizer muito pouco (o paradoxo é: como podemos ter medo de monstros que não existem?), mas soa complicado e parece poder revelar tesouros.
Na verdade, os tesouros acabam desperdiçados. O autor os ordena, como se tivesse trazido armários para a caverna de Ali-Babá e colocado cada objeto de ouro na prateleira certa, e pronto. Por exemplo, o livro identifica "14 formatos possíveis de histórias de horror: irrupção; irrupção/descobrimento; irrupção/ confirmação; irrupção/ confronto; irrupção/confirmação/ confronto; irrupção/ descobrimento/ confirmação/confronto; descobrimento; descobrimento/confirmação; descobrimento/confronto; descobrimento/confirmação/ confronto; confirmação; confirmação/confronto; e confronto. Essas 14 estruturas básicas de enredo, é claro, não esgotam o leque inteiro de esquemas de histórias".

A Filosofia do Horror ou Os Paradoxos do Coração
Noel Carroll Tradução: Roberto Leal Ferreira Papirus (Tel. 0/xx/19/272-4500) 320 págs., R$ 49,50



Esse paroxismo classificatório apenas esconde uma imagem de rigor. Há uma certa sedução no emprego de números e esquemas para analisar os objetos da cultura: parece científico. Se não for este o motivo, é então pura maluquice inútil. Encaixar um filme numa categoria ou em outra nada acrescenta à sua compreensão. Sequer o número 14 é justificável, já que o desdobramento poderia ir até... onde? O que é o "leque inteiro de esquemas"? 28? 56? Infinitos?
Ou, ainda, de que adianta pôr "O Iluminado" na categoria das "casas malignas", subcategoria "possessão da vida de novos habitantes da casa com o propósito de reencenar algum mal passado", se o filme de Kubrick é ignorado em sua complexidade? Por sinal, ele é, de fato, inteiramente ignorado. Como pode um livro sobre o horror na literatura e no cinema dos últimos 50 anos, esquecer "O Iluminado", de Kubrick?
Pode, porque o que conta é o sistema classificatório, disfarçado por pretensões à filosofia. Quando a obsessão esquemática dá, às vezes, lugar a tentativas de interpretações mais gerais, nenhuma das leituras propostas, sejam elas sintéticas ou analíticas, convence. Deploráveis, as generalidades sobre a "psicologia" do terror ou as últimas páginas pseudo-histórico-sociológicas, muito simplistas.
De certa forma, porém, se o livro não entusiasma, possui algo de comovente. Porque o autor é sincero no seu amor por essa literatura e esses filmes considerados "inferiores". Preso na trama dos preconceitos universitários, tenta fazer o que pode, com instrumentos factícios, mas que serão aceitos e reconhecidos como legítimos por seus pares. Às vezes, uma ou outra intuição se acende, extinguindo-se em seguida.
Isto é pouco para compensar sua leitura. Outras obras mais importantes, clássicas ou recentes, poderiam vir enriquecer o mercado editorial brasileiro, tão desprovido nesses domínios. Assim, qualquer um que leia "Gothic -Four Hundred Years of Excess, Horror, Evil and Ruin", livro de âmbito mais amplo, de Richard Davenport-Hines, representante de velho e excelente humanismo europeu, sai recompensado, com a cabeça efervescente, com o espírito sedento, querendo mais. Quem consegue chegar à última página de "A Filosofia do Horror", de Noël Carroll, solta um "ufa!" de alívio.


Jorge Coli é professor de história da arte na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).


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