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Correspondência de Benjamin Constant sobre a Guerra do Paraguai é comentada pela crítica literária Flora Süssekind
Guerra revisitada
FLORA SÜSSEKIND
Na "Semana Ilustrada" de 20 de março de 1870,
há um contraste curioso, de efeito inequivocamente irônico, entre o editorial comemorativo do
fim da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai e a coluna inicial da seção "Badaladas", dedicada, não à toa, nesse número, à potencialidade
épica de uma notícia policial corriqueira: "Um
Anônimo Mordido por um Cão no Catumbi". Assunto canino que, segundo o "Dr. Semana" (lembre-se que Machado de Assis foi um de seus redatores), poderia sugerir "mil cousas sublimes" a
possíveis "Homeros e Camões", caso estes não estivessem ainda acomodados em "secretarias" (caso tivessem "padrinhos") ou "no Exército" (caso
votassem "com a oposição").
A referência à prática do recrutamento forçado
como meio de retaliação política, frequente durante a campanha do Paraguai, parece conectar
subitamente as "Badaladas" ao editorial encomiástico paginado ao lado. E as críticas humorísticas do "Dr. Semana" aos excessos da perseguição
policial inclemente a um simples cachorro baio
apontam, indiretamente, para a extensão da caçada militar a Solano López. Aproximações que, reforçadas pela paginação lado a lado e pelo comentário em "tom maior" das duas notícias, registrariam, mesmo numa publicação sempre favorável
ao imperador, como a de Henrique Fleuiss, os sentimentos contraditórios da população brasileira
com relação ao conflito platino e o processo simultâneo de auto-afirmação e desgaste interno do Estado imperial ao longo da luta.
A visualização contraditória do conflito é perceptível, por exemplo, nas diferenças de tratamento que a guerra receberia em dois livros -"O Culto do Dever" e "Memórias do Sobrinho de Meu
Tio"- de Joaquim Manuel de Macedo, publicados com o intervalo de pouco mais de dois anos.
Ou nos contrastes entre as dicções épicas de "Terribilis Dea", composição de Pedro Luís Pereira de
Sousa, e da "Retirada da Laguna", do Visconde de
Taunay, e o caráter estritamente pessoal, a motivação amorosa, propositadamente "menor", que
conduz à guerra alguns personagens machadianos, como o Jorge de "Iaiá Garcia" e o Emílio de
"Um Capitão de Voluntários".
Ou ainda, conforme assinala Lilia Moritz
Schwarcz em "As Barbas do Imperador" (Companhia das Letras), de um lado entre a disseminação
nos primeiros anos do conflito de fotos e gravuras
de Pedro 2º como o "Voluntário Número Um" ou
a popularização, via formato "carte de visite", de
retratos de militares e quadros bélicos e, de outro,
a satirização, via "charges" impressas, em "O Bazar Volante", "Vida Fluminense", "Ba-ta-clan", na
própria "Semana Ilustrada", não apenas da figura
de Solano López, mas dos episódios desastrados
dos Exércitos aliados, do recrutamento compulsório, da duração e dos males da guerra.
Há, no entanto, outro campo de oscilação discursiva, ligado à campanha do Paraguai, particularmente significativo para a compreensão do modo pelo qual esse período foi vivenciado pela população brasileira e para a configuração da experiência mesma da guerra, da participação num
Exército nacional em formação, do mapeamento
de fronteiras territoriais, pela geração diretamente
envolvida nesse processo.
Trata-se, em primeiro lugar, do exame
do contraste entre as versões oficiais ou
as correspondências de jornal e as formas
pessoais (cartas, diários) de narração e
registro, no calor da hora, da experiência
militar. E, em segundo lugar, do confronto entre os vários registros pessoais brasileiros (Visconde de Taunay, Benjamin
Constant, André Rebouças, Dionísio
Cerqueira, José Luís Rodrigues da Silva,
Enéas Galvão, Afonso Celso, Silveira da
Mota) e platinos (Juan Crisóstomo Centurión, Gregório Benítes, León de Palleja,
José Ignácio Garmendia, Bartolomeu Mitre), nos quais os episódios militares, o
cotidiano da guerra, se misturam ao auto-retrato do combatente e de suas expectativas particulares, à experiência das
fronteiras, às críticas ao encaminhamento da campanha, às contradições sociais
aparentes na própria organização do
Exército.
Testemunhos pessoais cuja relevância
documental para o estudo do Brasil do
Segundo Reinado tem sido sublinhada,
entre outros, pelos seguintes autores: Maria Odila Silva Dias, na sua excelente edição das notas do diário de campanha de
Rebouças referentes ao ano de 1866; Ricardo Salles, no seu ensaio sobre as "memórias de guerra"; e Maria Alice Rezende
de Carvalho, em "O Quinto Século", no
qual, cotejando o "Diário" de André Rebouças com as "Memórias" do Visconde
de Taunay, contrapõe visões distintas sobre a engenharia militar, os destinos dos
"pedaços distantes do Brasil", o envolvimento na guerra, enfocada em perspectiva antimilitarista por Rebouças e sentimental-civilizatória por Taunay.
Reedição ampliada
E é no contexto da reavaliação dessas
reminiscências históricas que se situa o livro "Cartas da Guerra - Benjamin Constant na Campanha do Paraguai", de Renato Lemos, uma reedição ampliada, incluindo trechos e muitos originais ausentes da primeira compilação da correspondência, a cargo de Teixeira Mendes,
em 1894. Para Renato Lemos, autor da
minuciosa biografia "Benjamin Constant
- Vida e História" (1999), a edição dessa
correspondência de guerra expande o
acesso a uma das fontes fundamentais de
seu trabalho, em especial do segundo capítulo ("Capitão de Engenheiros na Campanha do Paraguai").
Talvez devido a essa vinculação evidente com sua tese de doutoramento, o historiador tenha optado pela supressão de
notas explicativas, mapas, itinerários,
confronto de testemunhos, de muita valia, no entanto, como se pode verificar no
trabalho de edição de parte do "Diário"
de André Rebouças, realizado por Maria
Odila Silva Dias e divulgado pelo Instituto de Estudos Brasileiros em 1973. Por
um lado, se a economia de informações,
presentes na introdução e na breve cronologia que acompanham as cartas de
Constant, evita uma sobrecarga interpretativa por parte do editor, torna, por outro lado, obrigatório o levantamento dos
itinerários, referências e operações militares nelas mencionados. Detalhamento
que, sem prejuízo da sobriedade do trabalho editorial, poderia ser acrescentado,
com proveito, a uma futura reimpressão.
Quanto ao material compilado, é bastante significativo, e não só pela ampliação do epistolário de Benjamin Constant,
incluindo suas violentas críticas a Caxias
(que chega a chamar de "nulidade", de
"verdadeira aberração de todas as leis sociais") e ao seu grupo de auxiliares mais
próximos (qualificados de "aduladores"), que teriam transformado, a seu ver,
o "quartel-general-em-chefe", em atividade no Prata, na "Corte com todas as
suas mazelas". Pois, sobretudo se aproximadas a outras correspondências (como
as "Cartas de Campanha", de Taunay) ou
notas privadas (como as de Rebouças) e
memórias (como as de Dionísio Cerqueira), as cartas de Benjamin Constant (de
setembro de 1866 a setembro de 1867),
evidenciam alguns dos motivos mais recorrentes nesses testemunhos sobre a
campanha do Paraguai.
E reiteram a crítica aos informes sobre
as operações militares veiculados pelos
jornais da corte ("Não lhes dê crédito",
diz ao sogro e à mulher, "o nosso povo é
de uma credulidade infantil"); à lentidão
das operações ("Apesar dos imensos sacrifícios de vidas e de dinheiro que o país
tem feito esterilmente"); à administração
militar ("O dinheiro continua a gastar-se
abundantemente e sem necessidade"); ao
preconceito contra os oficiais de armas
científicas ("Que não fazem da farda o
seu futuro, cumprindo no entanto religiosamente todos os seus deveres"); ao
estado sanitário das tropas ("Sabe quantos homens doentes temos nos hospitais?" -pergunta em 23 de março de
1867- "11.500!, e o número de doentes
vai crescendo extraordinariamente").
Registrariam, ainda, a extensão da epidemia de cólera ("caem 30 a 40 soldados
por dia"), das febres e demais moléstias
("perto de 12.000 homens"); a valentia
paraguaia (chama-os de "fanáticos", mas
"bravos", "dedicados", "homens heróis",
incapazes de rendição) e o forte antagonismo existente mesmo entre os aliados,
o que, com o crescimento do número de
vítimas de cólera, levaria os argentinos,
como se lê na carta de 11 de abril de 1867,
a planejar um incêndio contra todos os
hospitais e repartições brasileiros.
Há, também, uma série de verdadeiros
topos bélicos que Benjamin Constant
partilha com outros correspondentes e
memorialistas da época.
Das melancólicas cenas de partida para
a guerra às observações em torno do dever patriótico e à autovalorização dos
próprios empreendimentos (em geral
proporcional a um reconhecimento oficial considerado insuficiente, como no
caso de Rebouças, Dionísio Cerqueira e
Constant); dos exercícios descritivos militares (como o ataque de um corpo de cavalaria do general Osório, descrito por
Constant em carta de 7 de julho de 1867,
com cabeças arrancadas, esquartejamentos e montes de cadáveres) ou paisagísticos (de que são exemplares tanto os quadros naturais de Taunay quanto as impressões de viagem de Constant) às cenas
de breves contatos amistosos inesperados com o inimigo (é o caso do encontro
de Dionísio Cerqueira, numa trincheira,
com um velho soldado paraguaio ou da
troca de cigarros, charutos e laranjas com
paraguaios relatada por Constant em 20
de março de 1867); de algumas heroificações (como a de Antônio Tibúrcio Ferreira de Sousa, consensual em Rebouças,
Benjamin Constant e Dionísio Cerqueira) à recorrência mágica ao caiporismo
(como faz Taunay ao falar do conde d'Eu,
Dionísio Cerqueira ao explicar a bravura
sem promoções do "Batalhão 16" e Benjamin Constant ao pensar em sua história
familiar).
Ao lado desse entrecruzamento de
questões e recursos próprios a essas formas pessoais de relato militar, definem-se, contudo, entre elas, perspectivas conflitantes com relação à guerra, à construção da imagem nacional, às formas de organização do Exército, às tensões entre
mobilização nacional e ordem escravocrata, entre o movimento de ampliação
da base social da monarquia, então em
curso, e a manutenção de exclusões, de
privilégios hierárquicos e de um reforço à
centralização imperial.
Nesse sentido, é possível distinguir várias atitudes em relação à guerra: sua condenação, da parte de Rebouças, que fala
em "horror", "nefanda guerra", "carnificina", e Constant, que fala em "açougue
monstro do Império"; o lamento sobre
ela ("Triste é a guerra"), mesclado, no entanto, ao entusiasmo pelos feitos e combates, da parte de Dionísio Cerqueira; e a
tentativa de ligá-la à natureza, objeto frequente de reflexão, via "lei do mais forte",
da parte de Taunay.
Distinguem-se, também, de um lado, as
críticas violentas de Constant e Rebouças
aos comandantes brasileiros (em especial
Caxias, Osório e Tamandaré) e à estratégia morosa adotada na campanha e, de
outro, os elogios de Dionísio Cerqueira
ao "brilhante estado-maior" de Caxias ou
as explicações estratégicas de Taunay para as ações militares, elogiando, em particular, a mobilidade ou o mapeamento
territorial como condições de êxito.
E, se nesses testemunhos, há um movimento de intensificação do sentimento
nacional, via ação militar, os aspectos
particulares, concretos, desse fenômeno
também variam. Nessa linha, se em Rebouças há uma grande ênfase nos "sagrados símbolos da Pátria", no hino e no pavilhão, nas detalhadas cenas de tiroteio
em que a bandeira nacional permanece,
no entanto, intacta; se em Taunay é igualmente exaltado o "culto à bandeira" e sublinham-se a experiência da fronteira, a
delimitação territorial do império, o fortalecimento da "união em torno de um
centro comum"; e se em Dionísio Cerqueira parece todo-poderosa a idéia de
que "o homem nada vale; a pátria é tudo", em Benjamin Constant, declarada a
necessidade de "fazer o sacrifício que o
país exige", "o amor da família" teria
sempre "um lugar sagrado ao lado do
amor à pátria", como ele afirmaria em
carta de 1º de janeiro de 1867.
Sentimento de lealdade familiar que,
ombreado à solidariedade social e ao sentimento da pátria, matizaria sua visão de
mundo positivista. Assim como a crença
na ação transformadora, sobretudo de
técnicos, de engenheiros, de matemáticos, o deixaria por vezes próximo ao projeto antimilitarista de supressão dos
Exércitos. Tensionamento interno das
próprias possibilidades (positivista, militar, no caso de Constant) de expressão
política que se definiria igualmente, mas
sob perspectiva distinta, nas cartas de
Taunay, que vê o império brasileiro como
defensor do liberalismo no Prata, quando
se opõe à "tirania" de López, mas não pode deixar de assinalar a sua contraditória
base escravista ("Não se poderá fazer alguma cousa no sentido anti-escravagista?
(...) A escravidão, caso seja um princípio,
é princípio que todos devem debelar",
comentaria em 28 de fevereiro de 1870).
Criação de identidade
Conforme verifica José Murilo de Carvalho em "Brasil - Nações Imaginadas",
se coube à Guerra do Paraguai, com sua
mobilização de tão grandes parcelas da
população, "a experiência coletiva que foi
o maior fator de criação de identidade
nacional desde a Independência", produziram-se, igualmente, no âmbito mesmo
dessa experiência, imagens contraditórias dessa abrangência nacional. A mais
evidente, claro, é imposta pela presença
escrava no Exército. Daí a anotação de
Rebouças, em 23 de junho de 1866: "Discutimos agricultura, política, emancipação dos escravos no Brasil". Daí o "Nós,
da Arraia Miúda", de Dionísio Cerqueira,
que fala da infantaria como a "plebe do
Exército" e sobre as diferenças de tratamento que sublinhavam divisões hierárquicas internas.
Diferenças de tratamento ("O cólera só
tem atacado aos desgraçados soldados
que dormem a maior parte do tempo ao
relento, sem roupa para se agasalharem e
sem uma alimentação regular") e choque
entre mérito ("Os homens de bem andam aborrecidos e vexados") e clientelismo ("Os aduladores andam assanhados"), enfatizados também por Benjamin
Constant no interior da organização militar brasileira.
Se a mobilização geral (incluindo as camadas médias e populares, além de escravos), ao lado da figuração de inimigos
externos, questões de fronteira e "ódios
étnicos", parecem reforçar militarmente
uma experiência de nacionalidade, uma
simbolização nacional, durante a campanha do Paraguai, as tensões e os desequilíbrios hierárquicos entre as forças sociais
mobilizadas tornam visíveis as heterogeneidades, conflitos e fatores de desestabilização presentes nesse Estado nacional
imperial, paradoxalmente em processo
de consolidação.
Pois, como observa Ricardo Salles, em
seu estudo sobre "escravidão e cidadania
na formação do Exército", se a constituição de um Exército moderno, em meio
ao conflito platino, era "um índice de estabilidade e poderio" da "civilização escravista imperial" no Brasil, também
"produzia espaços contraditórios", "indicava seus limites". Contradições cuja
visibilidade parece por vezes se ampliar,
quando observadas não apenas em relatos de proporções monumentais, mas no
registro em tom menor das notas pessoais, das correspondências, como a de
Benjamin Constant, no contraste discursivo entre representações conflitantes da
campanha, por meio dos quais se reestrutura, na época, o sentimento nacional
e se reelabora socialmente a experiência
da guerra.
Cartas da Guerra - Benjamin Constant
na Campanha do Paraguai
Organização e introdução: Renato Lemos
Museu Casa de Benjamin Constant
(Tel. 0/ xx/ 21/509-1248)
220 págs., R$ 20,00. O livro é gratuito para
instituições públicas -arquivos, bibliotecas
e museus.
Flora Süssekind é crítica literária e pesquisadora
da Fundação Casa de Rui Barbosa, autora, entre
outros, de "A Voz e a Série" (7 Letras/UFMG) e "O
Brasil não é Longe Daqui" (Companhia das Letras).
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