São Paulo, sábado, 14 de outubro de 2000

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Correspondência de Benjamin Constant sobre a Guerra do Paraguai é comentada pela crítica literária Flora Süssekind
Guerra revisitada

FLORA SÜSSEKIND

Na "Semana Ilustrada" de 20 de março de 1870, há um contraste curioso, de efeito inequivocamente irônico, entre o editorial comemorativo do fim da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai e a coluna inicial da seção "Badaladas", dedicada, não à toa, nesse número, à potencialidade épica de uma notícia policial corriqueira: "Um Anônimo Mordido por um Cão no Catumbi". Assunto canino que, segundo o "Dr. Semana" (lembre-se que Machado de Assis foi um de seus redatores), poderia sugerir "mil cousas sublimes" a possíveis "Homeros e Camões", caso estes não estivessem ainda acomodados em "secretarias" (caso tivessem "padrinhos") ou "no Exército" (caso votassem "com a oposição").
A referência à prática do recrutamento forçado como meio de retaliação política, frequente durante a campanha do Paraguai, parece conectar subitamente as "Badaladas" ao editorial encomiástico paginado ao lado. E as críticas humorísticas do "Dr. Semana" aos excessos da perseguição policial inclemente a um simples cachorro baio apontam, indiretamente, para a extensão da caçada militar a Solano López. Aproximações que, reforçadas pela paginação lado a lado e pelo comentário em "tom maior" das duas notícias, registrariam, mesmo numa publicação sempre favorável ao imperador, como a de Henrique Fleuiss, os sentimentos contraditórios da população brasileira com relação ao conflito platino e o processo simultâneo de auto-afirmação e desgaste interno do Estado imperial ao longo da luta.
A visualização contraditória do conflito é perceptível, por exemplo, nas diferenças de tratamento que a guerra receberia em dois livros -"O Culto do Dever" e "Memórias do Sobrinho de Meu Tio"- de Joaquim Manuel de Macedo, publicados com o intervalo de pouco mais de dois anos. Ou nos contrastes entre as dicções épicas de "Terribilis Dea", composição de Pedro Luís Pereira de Sousa, e da "Retirada da Laguna", do Visconde de Taunay, e o caráter estritamente pessoal, a motivação amorosa, propositadamente "menor", que conduz à guerra alguns personagens machadianos, como o Jorge de "Iaiá Garcia" e o Emílio de "Um Capitão de Voluntários".
Ou ainda, conforme assinala Lilia Moritz Schwarcz em "As Barbas do Imperador" (Companhia das Letras), de um lado entre a disseminação nos primeiros anos do conflito de fotos e gravuras de Pedro 2º como o "Voluntário Número Um" ou a popularização, via formato "carte de visite", de retratos de militares e quadros bélicos e, de outro, a satirização, via "charges" impressas, em "O Bazar Volante", "Vida Fluminense", "Ba-ta-clan", na própria "Semana Ilustrada", não apenas da figura de Solano López, mas dos episódios desastrados dos Exércitos aliados, do recrutamento compulsório, da duração e dos males da guerra.
Há, no entanto, outro campo de oscilação discursiva, ligado à campanha do Paraguai, particularmente significativo para a compreensão do modo pelo qual esse período foi vivenciado pela população brasileira e para a configuração da experiência mesma da guerra, da participação num Exército nacional em formação, do mapeamento de fronteiras territoriais, pela geração diretamente envolvida nesse processo.
Trata-se, em primeiro lugar, do exame do contraste entre as versões oficiais ou as correspondências de jornal e as formas pessoais (cartas, diários) de narração e registro, no calor da hora, da experiência militar. E, em segundo lugar, do confronto entre os vários registros pessoais brasileiros (Visconde de Taunay, Benjamin Constant, André Rebouças, Dionísio Cerqueira, José Luís Rodrigues da Silva, Enéas Galvão, Afonso Celso, Silveira da Mota) e platinos (Juan Crisóstomo Centurión, Gregório Benítes, León de Palleja, José Ignácio Garmendia, Bartolomeu Mitre), nos quais os episódios militares, o cotidiano da guerra, se misturam ao auto-retrato do combatente e de suas expectativas particulares, à experiência das fronteiras, às críticas ao encaminhamento da campanha, às contradições sociais aparentes na própria organização do Exército.
Testemunhos pessoais cuja relevância documental para o estudo do Brasil do Segundo Reinado tem sido sublinhada, entre outros, pelos seguintes autores: Maria Odila Silva Dias, na sua excelente edição das notas do diário de campanha de Rebouças referentes ao ano de 1866; Ricardo Salles, no seu ensaio sobre as "memórias de guerra"; e Maria Alice Rezende de Carvalho, em "O Quinto Século", no qual, cotejando o "Diário" de André Rebouças com as "Memórias" do Visconde de Taunay, contrapõe visões distintas sobre a engenharia militar, os destinos dos "pedaços distantes do Brasil", o envolvimento na guerra, enfocada em perspectiva antimilitarista por Rebouças e sentimental-civilizatória por Taunay.

Reedição ampliada
E é no contexto da reavaliação dessas reminiscências históricas que se situa o livro "Cartas da Guerra - Benjamin Constant na Campanha do Paraguai", de Renato Lemos, uma reedição ampliada, incluindo trechos e muitos originais ausentes da primeira compilação da correspondência, a cargo de Teixeira Mendes, em 1894. Para Renato Lemos, autor da minuciosa biografia "Benjamin Constant - Vida e História" (1999), a edição dessa correspondência de guerra expande o acesso a uma das fontes fundamentais de seu trabalho, em especial do segundo capítulo ("Capitão de Engenheiros na Campanha do Paraguai").
Talvez devido a essa vinculação evidente com sua tese de doutoramento, o historiador tenha optado pela supressão de notas explicativas, mapas, itinerários, confronto de testemunhos, de muita valia, no entanto, como se pode verificar no trabalho de edição de parte do "Diário" de André Rebouças, realizado por Maria Odila Silva Dias e divulgado pelo Instituto de Estudos Brasileiros em 1973. Por um lado, se a economia de informações, presentes na introdução e na breve cronologia que acompanham as cartas de Constant, evita uma sobrecarga interpretativa por parte do editor, torna, por outro lado, obrigatório o levantamento dos itinerários, referências e operações militares nelas mencionados. Detalhamento que, sem prejuízo da sobriedade do trabalho editorial, poderia ser acrescentado, com proveito, a uma futura reimpressão.
Quanto ao material compilado, é bastante significativo, e não só pela ampliação do epistolário de Benjamin Constant, incluindo suas violentas críticas a Caxias (que chega a chamar de "nulidade", de "verdadeira aberração de todas as leis sociais") e ao seu grupo de auxiliares mais próximos (qualificados de "aduladores"), que teriam transformado, a seu ver, o "quartel-general-em-chefe", em atividade no Prata, na "Corte com todas as suas mazelas". Pois, sobretudo se aproximadas a outras correspondências (como as "Cartas de Campanha", de Taunay) ou notas privadas (como as de Rebouças) e memórias (como as de Dionísio Cerqueira), as cartas de Benjamin Constant (de setembro de 1866 a setembro de 1867), evidenciam alguns dos motivos mais recorrentes nesses testemunhos sobre a campanha do Paraguai.
E reiteram a crítica aos informes sobre as operações militares veiculados pelos jornais da corte ("Não lhes dê crédito", diz ao sogro e à mulher, "o nosso povo é de uma credulidade infantil"); à lentidão das operações ("Apesar dos imensos sacrifícios de vidas e de dinheiro que o país tem feito esterilmente"); à administração militar ("O dinheiro continua a gastar-se abundantemente e sem necessidade"); ao preconceito contra os oficiais de armas científicas ("Que não fazem da farda o seu futuro, cumprindo no entanto religiosamente todos os seus deveres"); ao estado sanitário das tropas ("Sabe quantos homens doentes temos nos hospitais?" -pergunta em 23 de março de 1867- "11.500!, e o número de doentes vai crescendo extraordinariamente").
Registrariam, ainda, a extensão da epidemia de cólera ("caem 30 a 40 soldados por dia"), das febres e demais moléstias ("perto de 12.000 homens"); a valentia paraguaia (chama-os de "fanáticos", mas "bravos", "dedicados", "homens heróis", incapazes de rendição) e o forte antagonismo existente mesmo entre os aliados, o que, com o crescimento do número de vítimas de cólera, levaria os argentinos, como se lê na carta de 11 de abril de 1867, a planejar um incêndio contra todos os hospitais e repartições brasileiros.
Há, também, uma série de verdadeiros topos bélicos que Benjamin Constant partilha com outros correspondentes e memorialistas da época.
Das melancólicas cenas de partida para a guerra às observações em torno do dever patriótico e à autovalorização dos próprios empreendimentos (em geral proporcional a um reconhecimento oficial considerado insuficiente, como no caso de Rebouças, Dionísio Cerqueira e Constant); dos exercícios descritivos militares (como o ataque de um corpo de cavalaria do general Osório, descrito por Constant em carta de 7 de julho de 1867, com cabeças arrancadas, esquartejamentos e montes de cadáveres) ou paisagísticos (de que são exemplares tanto os quadros naturais de Taunay quanto as impressões de viagem de Constant) às cenas de breves contatos amistosos inesperados com o inimigo (é o caso do encontro de Dionísio Cerqueira, numa trincheira, com um velho soldado paraguaio ou da troca de cigarros, charutos e laranjas com paraguaios relatada por Constant em 20 de março de 1867); de algumas heroificações (como a de Antônio Tibúrcio Ferreira de Sousa, consensual em Rebouças, Benjamin Constant e Dionísio Cerqueira) à recorrência mágica ao caiporismo (como faz Taunay ao falar do conde d'Eu, Dionísio Cerqueira ao explicar a bravura sem promoções do "Batalhão 16" e Benjamin Constant ao pensar em sua história familiar).
Ao lado desse entrecruzamento de questões e recursos próprios a essas formas pessoais de relato militar, definem-se, contudo, entre elas, perspectivas conflitantes com relação à guerra, à construção da imagem nacional, às formas de organização do Exército, às tensões entre mobilização nacional e ordem escravocrata, entre o movimento de ampliação da base social da monarquia, então em curso, e a manutenção de exclusões, de privilégios hierárquicos e de um reforço à centralização imperial.
Nesse sentido, é possível distinguir várias atitudes em relação à guerra: sua condenação, da parte de Rebouças, que fala em "horror", "nefanda guerra", "carnificina", e Constant, que fala em "açougue monstro do Império"; o lamento sobre ela ("Triste é a guerra"), mesclado, no entanto, ao entusiasmo pelos feitos e combates, da parte de Dionísio Cerqueira; e a tentativa de ligá-la à natureza, objeto frequente de reflexão, via "lei do mais forte", da parte de Taunay.
Distinguem-se, também, de um lado, as críticas violentas de Constant e Rebouças aos comandantes brasileiros (em especial Caxias, Osório e Tamandaré) e à estratégia morosa adotada na campanha e, de outro, os elogios de Dionísio Cerqueira ao "brilhante estado-maior" de Caxias ou as explicações estratégicas de Taunay para as ações militares, elogiando, em particular, a mobilidade ou o mapeamento territorial como condições de êxito.
E, se nesses testemunhos, há um movimento de intensificação do sentimento nacional, via ação militar, os aspectos particulares, concretos, desse fenômeno também variam. Nessa linha, se em Rebouças há uma grande ênfase nos "sagrados símbolos da Pátria", no hino e no pavilhão, nas detalhadas cenas de tiroteio em que a bandeira nacional permanece, no entanto, intacta; se em Taunay é igualmente exaltado o "culto à bandeira" e sublinham-se a experiência da fronteira, a delimitação territorial do império, o fortalecimento da "união em torno de um centro comum"; e se em Dionísio Cerqueira parece todo-poderosa a idéia de que "o homem nada vale; a pátria é tudo", em Benjamin Constant, declarada a necessidade de "fazer o sacrifício que o país exige", "o amor da família" teria sempre "um lugar sagrado ao lado do amor à pátria", como ele afirmaria em carta de 1º de janeiro de 1867.
Sentimento de lealdade familiar que, ombreado à solidariedade social e ao sentimento da pátria, matizaria sua visão de mundo positivista. Assim como a crença na ação transformadora, sobretudo de técnicos, de engenheiros, de matemáticos, o deixaria por vezes próximo ao projeto antimilitarista de supressão dos Exércitos. Tensionamento interno das próprias possibilidades (positivista, militar, no caso de Constant) de expressão política que se definiria igualmente, mas sob perspectiva distinta, nas cartas de Taunay, que vê o império brasileiro como defensor do liberalismo no Prata, quando se opõe à "tirania" de López, mas não pode deixar de assinalar a sua contraditória base escravista ("Não se poderá fazer alguma cousa no sentido anti-escravagista? (...) A escravidão, caso seja um princípio, é princípio que todos devem debelar", comentaria em 28 de fevereiro de 1870).

Criação de identidade
Conforme verifica José Murilo de Carvalho em "Brasil - Nações Imaginadas", se coube à Guerra do Paraguai, com sua mobilização de tão grandes parcelas da população, "a experiência coletiva que foi o maior fator de criação de identidade nacional desde a Independência", produziram-se, igualmente, no âmbito mesmo dessa experiência, imagens contraditórias dessa abrangência nacional. A mais evidente, claro, é imposta pela presença escrava no Exército. Daí a anotação de Rebouças, em 23 de junho de 1866: "Discutimos agricultura, política, emancipação dos escravos no Brasil". Daí o "Nós, da Arraia Miúda", de Dionísio Cerqueira, que fala da infantaria como a "plebe do Exército" e sobre as diferenças de tratamento que sublinhavam divisões hierárquicas internas.
Diferenças de tratamento ("O cólera só tem atacado aos desgraçados soldados que dormem a maior parte do tempo ao relento, sem roupa para se agasalharem e sem uma alimentação regular") e choque entre mérito ("Os homens de bem andam aborrecidos e vexados") e clientelismo ("Os aduladores andam assanhados"), enfatizados também por Benjamin Constant no interior da organização militar brasileira.
Se a mobilização geral (incluindo as camadas médias e populares, além de escravos), ao lado da figuração de inimigos externos, questões de fronteira e "ódios étnicos", parecem reforçar militarmente uma experiência de nacionalidade, uma simbolização nacional, durante a campanha do Paraguai, as tensões e os desequilíbrios hierárquicos entre as forças sociais mobilizadas tornam visíveis as heterogeneidades, conflitos e fatores de desestabilização presentes nesse Estado nacional imperial, paradoxalmente em processo de consolidação.
Pois, como observa Ricardo Salles, em seu estudo sobre "escravidão e cidadania na formação do Exército", se a constituição de um Exército moderno, em meio ao conflito platino, era "um índice de estabilidade e poderio" da "civilização escravista imperial" no Brasil, também "produzia espaços contraditórios", "indicava seus limites". Contradições cuja visibilidade parece por vezes se ampliar, quando observadas não apenas em relatos de proporções monumentais, mas no registro em tom menor das notas pessoais, das correspondências, como a de Benjamin Constant, no contraste discursivo entre representações conflitantes da campanha, por meio dos quais se reestrutura, na época, o sentimento nacional e se reelabora socialmente a experiência da guerra.



Cartas da Guerra - Benjamin Constant na Campanha do Paraguai
Organização e introdução: Renato Lemos Museu Casa de Benjamin Constant (Tel. 0/ xx/ 21/509-1248) 220 págs., R$ 20,00. O livro é gratuito para instituições públicas -arquivos, bibliotecas e museus.



Flora Süssekind é crítica literária e pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, autora, entre outros, de "A Voz e a Série" (7 Letras/UFMG) e "O Brasil não é Longe Daqui" (Companhia das Letras).

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