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Tantas Marias
MARY DEL PRIORE
Numa terra de tantas Marias, talvez valesse a pena nos interrogarmos,
junto com Jaroslav Pelikan: por que a Virgem sempre representou o
ideal feminino de virtude? Como se construiu sua imagem "ao longo
dos séculos"? As respostas para tais questões são, todavia, complexas.
Distribuídas em 16 capítulos, elas procuram interpretar como vem
sendo retratada e venerada ao longo dos tempos essa que também é
conhecida como Theotokos, a mãe de Deus. O autor dessa obra, professor emérito em Yale, é inegavelmente uma das maiores autoridades em história da religião cristã. Sua erudição, os conhecimentos gerais de artes somados a tantos outros de filologia permitem-lhe costurar com competência várias partes de um todo: a Míriam de Nazaré, a
Madona Negra, a Serva do Senhor, a Mater Dolorosa, a Mulher vestida de Sol, enfim, essas múltiplas faces da mulher adorada, tanto no
Oriente quanto no Ocidente, por muçulmanos, judeus e católicos.
00O objetivo do livro é, seguindo uma ordem cronológica, resgatar o
significado de Maria de um ponto de vista histórico. E de fazê-lo, não
apenas pela leitura exegética da Bíblia e do Corão, mas também pela
análise da criação artística, pictórica ou musical. De reconstituir tais
significados desde as representações sobre a primeira Maria -esta
que é uma segunda Eva e que, diferentemente de sua antecessora,
obedece a Deus- à Theotokos, cuja ambiguidade de natureza divina
e humana sempre instigou os grandes teólogos, passando pela Maria
Pontifex, ponte entre diferentes crenças e religiões até chegar à Mater
Dolorosa na Idade Média, auge de imagens e poesias atribuídas à Maria, momento em que essa adquire a expressão subjetiva e sentimental "daquela que sofre com o Filho".
00O livro investiga, portanto, o Antigo e o Novo Testamento para
compreender de que forma as poucas e obscuras menções à sua pessoa incentivaram uma doutrina que é quase universal; analisa as visões maniqueístas que se forjaram na Antiguidade, dando origem às
representações de "Maria, a boa mãe de Cristo" versus "Eva, a malvada mãe dos homens"; comenta os solenes rituais ortodoxos cristãos e
a imagem marial no Corão; explica como o paradoxo da Virgem Mãe
moldou os usos da sexualidade no Ocidente cristão e termina iluminando a rejeição pelo protestantismo do culto a Nossa Senhora.
00Um dos capítulos interessantes refere-se a um momento que gerou
farta criação iconográfica: o da Anunciação. Presente nas primeiras
catacumbas, a representação da visita do Anjo alado, lírio branco na
mão e dedo em riste apontando a presença do Santo Espírito, é, ao
longo dos tempos, motivo mariano de maior impacto entre os devotos. No Oriente bizantino, o tema deu origem a uma das 12 festividades mais importantes da Igreja Ortodoxa. Por trás do tema, o apaixonante dogma que se resume na frase: "E o Verbo se fez carne". Por trás
do dogma, ferventes embates teológicos sobre a relação entre a obrigação e o livre arbítrio, entre a sabedoria divina e a liberdade humana,
ou como bem resumiu o poeta Paul Claudel, "a liberdade de obedecer". Como ocorre com as bonecas russas, embutidas umas nas outras, o autor nos faz descobrir, por trás da humilde Serva de Deus,
sempre pronta a curva-se às mais sofridas obrigações, a "mulier fortis", corajosa e capaz de esmagar a serpente com o pé delicado, mulher que é farol na noite dos pecadores, piloto do barco da fé.
00Outro capítulo que dá o que pensar é o que incide sobre os milagres
marianos. Pelikan sublinha que as experiências místicas estão presentes desde o Apocalipse de São João. Coroada de estrelas, lua sob os
pés, Maria é aí retratada como a mulher "vestida de Sol". Assim iluminada e cantada em prosa e verso, ela multiplica-se em crescentes aparições. No século 4º, por exemplo, o teólogo, filósofo e místico Gregório de Nissa tornou-se um dos seus mais eloquentes porta-vozes. O
auge dos milagres dá-se, contudo, entre 1830 e 1930. A Igreja Católica,
por seu lado, sempre foi muito prudente, preferindo considerá-los,
na sua grande maioria, como produto de ilusões subjetivas. Apenas
dez dessas aparições foram aceitas pelo clero como meritórias de
crença piedosa.
00A lista começa pela que teve lugar em Guadalupe, no México, em
1531, passa por Lourdes, em 1858, e termina em 1933, em Benneaux,
na Bélgica. Elementos de uma aparição clássica se repetem em todas
elas: o visionário é de origem simples, a Virgem lhe entrega uma mensagem a ser revelada a posteriori, o pároco mostra-se cético, há reação
hostil por parte das autoridades civis até que a sucessão de milagres e
curas obrigue à igreja a criação de um culto. Contudo, leitor, quando
nos damos conta de que o terceiro segredo de Fátima foi revelado na
mesma semana em que a biotecnologia decifrou o código genético
humano, as teses de Pelikan começam a nos parecer sensaboronas.
00O livro é bonito? Sim. Suas páginas respiram livremente e o tratamento editorial é impecável. A editora deu-se ao trabalho de reproduzir um belíssimo catálogo iconográfico com imagens da Virgem em
todas as épocas. A tradução de Vera Camargo Guarnieri é irreprochável. A obra é fundamental? Penso que não. Ao descrever rituais e práticas religiosas que, como todos os rituais, são polissêmicos e nos falam de mensagens conectadas com o sobrenatural, o autor não tem
qualquer preocupação em relacioná-los com o social, o lúdico, a identidade ou o sistema cultural. Sua interpretação sobre a aparição de
Nossa Senhora a um índio mexicano, no século 16, é lida na chave
mais epidérmica, sem deter-se ou isolar crenças e discursos que cercaram a intensa apropriação e reapropriação de diferentes culturas
quando da chegada dos europeus à América e por conseguinte, das
imagens de sua religião.
00Mas não são apenas esses os obstáculos. O maior deles é a narrativa. Num enorme contraste com o assunto e as imagens que o ilustram, o texto é pedregoso. Palmilha-se o livro com a mesma aridez
que o pecador encontra ao palmilhar um deserto. A técnica de exposição é impessoal, fria, sem cuidados literários com um dos temas que,
paradoxalmente, mais os mereceram. Pelikan, apesar de tantas obras
publicadas e o renome internacional, parece desconhecer, como diz
Paul Ricoeur, que fazer história é também "colocar em ação ações representadas". A história, em sua escrita, não pode se subtrair a alguns
procedimentos literários mínimos. Caso contrário, ao virar a última
página, o leitor corre o risco de exclamar, como nos tempos medievais analisados pelo autor: "Finis, laos Deo!".
Maria Através dos Séculos - Seu Papel na História da Cultura
Jaroslav Pelikan
Tradução: Vera Camargo Guarnieri.
Companhia das Letras (tel. 0/xx/11/ 3846-0801).
356 págs., R$ 33,00.
Mary Del Priore é professora de história na USP, autora de "Ao Sul do Corpo" (José Olympio) e organizadora
de "História das Mulheres no Brasil" (Contexto).
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