São Paulo, sábado, 14 de outubro de 2000

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Sen redefine desenvolvimento econômico
A perspectiva da liberdade

ROLF KUNTZ

Amartya Sen descreve o desenvolvimento como "um processo de expansão das liberdades reais". A relação é mais complexa do que parece à primeira vista. Dois papéis são atribuídos às liberdades nesse raciocínio: são o fim primordial do desenvolvimento, mas são também seu meio principal.
No primeiro, não é preciso justificar a importância atribuída às liberdades. São desejáveis como valores independentes de qualquer outra consideração. Todo o esforço de transformação econômica só tem sentido, para a maioria das pessoas, pelo que acrescenta à vida de cada indivíduo e de cada família. No segundo, instrumental, a tese requer uma argumentação técnica. Parte dessa argumentação é familiar a quem conhece a noção de capital humano, mas a idéia geral é mais ampla e mais complicada.
Uma advertência pode valer a pena, desde já. Para alguns leitores, Amartya Sen, ganhador do Nobel de Economia de 1998, poderá surgir como um autor preocupado com o lado "não econômico" do desenvolvimento, um economista disposto a defender a democracia, os "gastos sociais", a igualdade entre homens e mulheres, a preservação do ambiente e as várias formas de liberdade. Alguns poderão classificá-lo como um "humanista", em contraste com os economistas concentrados em temas como tecnologia, acumulação de capital, fluxos financeiros, ganhos de produtividade, aumento do PIB e equilíbrio das contas externas.
Se essa descrição fosse verdadeira, provavelmente não valeria a pena gastar tempo com as quase 400 páginas de texto e notas de "Desenvolvimento como Liberdade", lançado em inglês no ano passado e neste ano em edição brasileira. Este livro não é uma exibição de bons sentimentos nem uma sucessão de comentários politicamente corretos e piedosos. É uma respeitável exposição de teoria, apresentada em linguagem não técnica, mas nem por isso a discussão passa longe de territórios escabrosos, como a teoria das escolhas coletivas ou os problemas de comparação e agregação de preferências individuais.

A noção de desenvolvimento
Sen não despreza nenhum dos velhos indicadores utilizados pelos economistas. Tampouco julga irrelevantes o crescimento da renda e a acumulação de riqueza. Ele mesmo, para evitar mal-entendidos, chama a atenção para isso. Seria enorme tolice negligenciar esses dados, assim como abandonar as preocupações com a eficiência. É outro o diferencial de sua abordagem.
O primeiro ponto é a caracterização do desenvolvimento. Por que esse processo é importante? A resposta é obviamente avaliativa. O crescimento do PIB por habitante, a industrialização, a modernização produtiva e os ganhos de eficiência são indiscutivelmente relevantes, mas apenas porque podem mudar as condições de vida, isto é, eliminar privações, proporcionar vida mais longa e mais saudável, permitir o acesso a uma porção de valores desejáveis e, enfim, aumentar o campo de escolha das pessoas. Pobreza, fome, doença, ignorância, desemprego e incapacidade para escolher uma forma de vida são privações de liberdade.
Essas privações podem ser eliminadas ou diminuídas pelo crescimento econômico e pela modernização produtiva, mas não necessariamente. Países com diferentes taxas de crescimento e diferentes níveis de industrialização podem exibir indicadores sociais semelhantes. Mais que isso: economias maiores e mais industrializadas podem apresentar indicadores de qualidade de vida muito inferiores aos de sociedades mais pobres e com padrões de tecnologia menos avançados. O contraste entre o Brasil e várias economias muito menores e menos modernas é bem conhecido.
Sen apresenta comparações suficientes para ilustrar esse ponto. Anualmente o Banco Mundial, a ONU e outras instituições divulgam extensas tabelas com descrições econômicas e sociais de dezenas de países. Médias nacionais, no entanto, podem ainda esconder dados muito significativos. Exemplo: nem sempre, ao contrário do que se imagina, os pobres do mundo rico estão em melhores condições que os pobres ou grupos médios de países subdesenvolvidos. Os negros norte-americanos, observa Sen, têm vida mais curta, em média, que os habitantes de algumas áreas de renda por habitante muito menor, como China, Sri Lanka, o Estado indiano de Kerala, Jamaica e Costa Rica. Isso não se explica apenas pela exposição de muitos jovens negros norte-americanos à violência, um argumento rápido e fácil, embora não desprezível. A explicação é mais ampla e inclui, além desse fator, menos cobertura pela assistência médica, deficiências de serviços públicos de saúde, padrões inferiores de educação e outras desvantagens sociais.
Esse exemplo é mais que uma curiosidade. Serve para realçar dois pontos: 1) comparações de renda por habitante ou por família são insuficientes para indicar diferenças de padrão de vida; 2) padrões de vida são determinados por fatores de vários tipos, como o caráter público ou particular da assistência médica, a alocação de recursos públicos, a distribuição dos serviços governamentais e formas diversas de discriminação. Esse entrelaçamento de fatores é um dado fundamental. Diferentes formas de privação compõem uma rede complexa de relações e se reforçam umas às outras.

Direitos e oportunidades
A partir dessa consideração, Sen relaciona cinco "liberdades instrumentais": 1) liberdades políticas; 2) facilidades econômicas; 3) oportunidades sociais; 4) garantias de transparência; 5) segurança protetora. Cada uma tende a ampliar e reforçar a capacidade geral de uma pessoa, isto é, seu potencial de cumprir funções valiosas para si e para os outros.
Capacidades e funções, ou funcionamentos, tradução usada para "functionings", são conceitos importantes na construção do livro. A noção de "funcionamento" inclui tanto a realização de atos bem delimitados, como o cumprimento de uma tarefa profissional, quanto a participação na vida coletiva segundo padrões socialmente valorizados. Algo parecido com essa noção estava presente em Adam Smith, como observa Sen. Exemplo: certas condições de apresentação (vestuário, por exemplo) são necessárias para o indivíduo aparecer "sem se envergonhar" numa determinada sociedade. A mesma renda suficiente para viver de forma confortável num dado meio pode ser insuficiente para uma presença digna em outra.
As capacidades, condições necessárias para os "funcionamentos", têm papel semelhante no pensamento de Sen ao dos bens primários na teoria da justiça de John Rawls. Os bens primários, como "direitos, liberdades e oportunidades, renda e riqueza e as bases sociais do respeito próprio", são meios necessários à realização dos fins de qualquer indivíduo. Numa sociedade pluralista e bem organizada, não cabe à ordem política fixar esses fins. Mas é responsabilidade coletiva garantir os meios indispensáveis a qualquer projeto razoável de indivíduos livres e responsáveis. Só assim o Estado pode assegurar, materialmente, as condições básicas de igualdade necessárias a uma sociedade livre.
O enfoque nas capacidades, segundo Sen, é mais satisfatório que a ênfase nos bens primários, pois inclui a consideração de como as pessoas podem, de fato, utilizar os meios básicos oferecidos a cada um. Nos dois casos, e este é um ponto especialmente importante, a responsabilidade coletiva é enfatizada. "A liberdade individual", escreve Sen, "é essencialmente um produto social e existe uma relação de mão dupla entre (1) as disposições sociais que visam expandir as liberdades individuais e (2) o usos das liberdades individuais não só para melhorar a vida de cada um, mas também para tornar as disposições sociais mais apropriadas e eficazes".
Uma passagem de especial interesse para o debate latino-americano se refere à questão dos meios para as "políticas sociais". Como financiá-las em países pobres? A pergunta é razoável, admite Sen, mas a resposta não é tão difícil e está associada ao conceito de preços relativos.
As chamadas políticas sociais dependem, geralmente, da utilização intensiva de mão-de-obra, para atividades como educação elementar e difusão de padrões sanitários. Essa mão-de-obra seria muito cara em países do Primeiro Mundo, mas é geralmente barata em países pobres. Um bom exemplo a favor dessa tese seria a experiência dos agentes comunitários de saúde, em algumas das áreas menos desenvolvidas do Brasil.
É possível, com trabalhos desse tipo, elevar os padrões de saúde em regiões atrasadas. O exemplo, no entanto, é muito menos contagioso que as doenças típicas do subdesenvolvimento.



Desenvolvimento como Liberdade
de Amartya Sen Tradução de Laura Teixeira Motta Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/3846-0801) 410 págs., R$ 35,00




Rolf Kuntz é professor do departamento de filosofia da USP.


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