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Sen redefine desenvolvimento econômico
A perspectiva da liberdade
ROLF KUNTZ
Amartya Sen descreve o desenvolvimento como "um processo de expansão
das liberdades reais". A relação é mais
complexa do que parece à primeira vista.
Dois papéis são atribuídos às liberdades
nesse raciocínio: são o fim primordial do
desenvolvimento, mas são também seu
meio principal.
No primeiro, não é preciso justificar a
importância atribuída às liberdades. São
desejáveis como valores independentes
de qualquer outra consideração. Todo o
esforço de transformação econômica só
tem sentido, para a maioria das pessoas,
pelo que acrescenta à vida de cada indivíduo e de cada família. No segundo, instrumental, a tese requer uma argumentação técnica. Parte dessa argumentação é
familiar a quem conhece a noção de capital humano, mas a idéia geral é mais ampla e mais complicada.
Uma advertência pode valer a pena,
desde já. Para alguns leitores, Amartya
Sen, ganhador do Nobel de Economia de
1998, poderá surgir como um autor preocupado com o lado "não econômico" do
desenvolvimento, um economista disposto a defender a democracia, os "gastos
sociais", a igualdade entre homens e mulheres, a preservação do ambiente e as várias formas de liberdade. Alguns poderão
classificá-lo como um "humanista", em
contraste com os economistas concentrados em temas como tecnologia, acumulação de capital, fluxos financeiros,
ganhos de produtividade, aumento do
PIB e equilíbrio das contas externas.
Se essa descrição fosse verdadeira, provavelmente não valeria a pena gastar
tempo com as quase 400 páginas de texto
e notas de "Desenvolvimento como Liberdade", lançado em inglês no ano passado e neste ano em edição brasileira. Este livro não é uma exibição de bons sentimentos nem uma sucessão de comentários politicamente corretos e piedosos. É
uma respeitável exposição de teoria,
apresentada em linguagem não técnica,
mas nem por isso a discussão passa longe
de territórios escabrosos, como a teoria
das escolhas coletivas ou os problemas de
comparação e agregação de preferências
individuais.
A noção de desenvolvimento
Sen não despreza nenhum dos velhos
indicadores utilizados pelos economistas. Tampouco julga irrelevantes o crescimento da renda e a acumulação de riqueza. Ele mesmo, para evitar mal-entendidos, chama a atenção para isso. Seria
enorme tolice negligenciar esses dados,
assim como abandonar as preocupações
com a eficiência. É outro o diferencial de
sua abordagem.
O primeiro ponto é a caracterização do
desenvolvimento. Por que esse processo
é importante? A resposta é obviamente
avaliativa. O crescimento do PIB por habitante, a industrialização, a modernização produtiva e os ganhos de eficiência
são indiscutivelmente relevantes, mas
apenas porque podem mudar as condições de vida, isto é, eliminar privações,
proporcionar vida mais longa e mais saudável, permitir o acesso a uma porção de
valores desejáveis e, enfim, aumentar o
campo de escolha das pessoas. Pobreza,
fome, doença, ignorância, desemprego e
incapacidade para escolher uma forma
de vida são privações de liberdade.
Essas privações podem ser eliminadas
ou diminuídas pelo crescimento econômico e pela modernização produtiva,
mas não necessariamente. Países com diferentes taxas de crescimento e diferentes
níveis de industrialização podem exibir
indicadores sociais semelhantes. Mais
que isso: economias maiores e mais industrializadas podem apresentar indicadores de qualidade de vida muito inferiores aos de sociedades mais pobres e com
padrões de tecnologia menos avançados.
O contraste entre o Brasil e várias economias muito menores e menos modernas
é bem conhecido.
Sen apresenta comparações suficientes
para ilustrar esse ponto. Anualmente o
Banco Mundial, a ONU e outras instituições divulgam extensas tabelas com descrições econômicas e sociais de dezenas
de países. Médias nacionais, no entanto,
podem ainda esconder dados muito significativos. Exemplo: nem sempre, ao
contrário do que se imagina, os pobres do
mundo rico estão em melhores condições que os pobres ou grupos médios de
países subdesenvolvidos. Os negros norte-americanos, observa Sen, têm vida
mais curta, em média, que os habitantes
de algumas áreas de renda por habitante
muito menor, como China, Sri Lanka, o
Estado indiano de Kerala, Jamaica e Costa Rica. Isso não se explica apenas pela
exposição de muitos jovens negros norte-americanos à violência, um argumento
rápido e fácil, embora não desprezível. A
explicação é mais ampla e inclui, além
desse fator, menos cobertura pela assistência médica, deficiências de serviços
públicos de saúde, padrões inferiores de
educação e outras desvantagens sociais.
Esse exemplo é mais que uma curiosidade. Serve para realçar dois pontos: 1)
comparações de renda por habitante ou
por família são insuficientes para indicar
diferenças de padrão de vida; 2) padrões
de vida são determinados por fatores de
vários tipos, como o caráter público ou
particular da assistência médica, a alocação de recursos públicos, a distribuição
dos serviços governamentais e formas diversas de discriminação. Esse entrelaçamento de fatores é um dado fundamental. Diferentes formas de privação compõem uma rede complexa de relações e se
reforçam umas às outras.
Direitos e oportunidades
A partir dessa consideração, Sen relaciona cinco "liberdades instrumentais":
1) liberdades políticas; 2) facilidades econômicas; 3) oportunidades sociais; 4) garantias de transparência; 5) segurança
protetora. Cada uma tende a ampliar e
reforçar a capacidade geral de uma pessoa, isto é, seu potencial de cumprir funções valiosas para si e para os outros.
Capacidades e funções, ou funcionamentos, tradução usada para "functionings", são conceitos importantes na
construção do livro. A noção de "funcionamento" inclui tanto a realização de
atos bem delimitados, como o cumprimento de uma tarefa profissional, quanto
a participação na vida coletiva segundo
padrões socialmente valorizados. Algo
parecido com essa noção estava presente
em Adam Smith, como observa Sen.
Exemplo: certas condições de apresentação (vestuário, por exemplo) são necessárias para o indivíduo aparecer "sem se
envergonhar" numa determinada sociedade. A mesma renda suficiente para viver de forma confortável num dado meio
pode ser insuficiente para uma presença
digna em outra.
As capacidades, condições necessárias
para os "funcionamentos", têm papel semelhante no pensamento de Sen ao dos
bens primários na teoria da justiça de
John Rawls. Os bens primários, como
"direitos, liberdades e oportunidades,
renda e riqueza e as bases sociais do respeito próprio", são meios necessários à
realização dos fins de qualquer indivíduo. Numa sociedade pluralista e bem
organizada, não cabe à ordem política fixar esses fins. Mas é responsabilidade coletiva garantir os meios indispensáveis a
qualquer projeto razoável de indivíduos
livres e responsáveis. Só assim o Estado
pode assegurar, materialmente, as condições básicas de igualdade necessárias a
uma sociedade livre.
O enfoque nas capacidades, segundo
Sen, é mais satisfatório que a ênfase nos
bens primários, pois inclui a consideração de como as pessoas podem, de fato,
utilizar os meios básicos oferecidos a cada um. Nos dois casos, e este é um ponto
especialmente importante, a responsabilidade coletiva é enfatizada. "A liberdade
individual", escreve Sen, "é essencialmente um produto social e existe uma relação de mão dupla entre (1) as disposições sociais que visam expandir as liberdades individuais e (2) o usos das liberdades individuais não só para melhorar a
vida de cada um, mas também para tornar as disposições sociais mais apropriadas e eficazes".
Uma passagem de especial interesse
para o debate latino-americano se refere
à questão dos meios para as "políticas sociais". Como financiá-las em países pobres? A pergunta é razoável, admite Sen,
mas a resposta não é tão difícil e está associada ao conceito de preços relativos.
As chamadas políticas sociais dependem, geralmente, da utilização intensiva
de mão-de-obra, para atividades como
educação elementar e difusão de padrões
sanitários. Essa mão-de-obra seria muito
cara em países do Primeiro Mundo, mas
é geralmente barata em países pobres.
Um bom exemplo a favor dessa tese seria
a experiência dos agentes comunitários
de saúde, em algumas das áreas menos
desenvolvidas do Brasil.
É possível, com trabalhos desse tipo,
elevar os padrões de saúde em regiões
atrasadas. O exemplo, no entanto, é muito menos contagioso que as doenças típicas do subdesenvolvimento.
Desenvolvimento
como Liberdade
de Amartya Sen
Tradução de Laura Teixeira Motta
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/3846-0801)
410 págs., R$ 35,00
Rolf Kuntz é professor do departamento de filosofia da USP.
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