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Os diários do médico judeu Victor Klemperer sobre a experiência nazista
A linguagem do Terceiro Reich
RENATO LESSA
No inverno alemão de janeiro de 1933, a
vida do dr. Victor Klemperer sofre inapelável inflexão. Até então, esse pacato professor titular de literatura românica da
Universidade Técnica de Dresden, desde
1920, vinha se dedicando à leitura, ao ensino e à escritura a respeito de um universo composto por personagens tais como
Corneille, Montesquieu, Voltaire, Diderot, Rousseau e a miríade de figuras dos
deliciosos séculos 17 e 18, abrigos de céticos, pessimistas, irônicos e libertinos. A
exposição a esse universo fez de Klemperer um sujeito híbrido.
Ele personaliza o intelectual humanista
típico, a combinar erudição histórica e literária, desconfiança diante de pretensões de compreensão exaustiva do mundo e disposição incomum de absorver informações e idéias. Klemperer é o que
poderíamos designar como um intelectual permanente: em seus piores momentos de infortúnio, a partir do desastre
de 1933, o temor pela própria vida será invariavelmente acompanhado pelo horror
diante do espectro da impossibilidade do
pensamento. Esse exercício obsessivo da
observação e da leitura e essa insaciabilidade cognitiva estão presentes em Klemperer na persona de um "cético prazeroso", para usar a bela autodefinição que ele
nos proporciona. Como veremos, essa
marca tem consequências decisivas na
escritura klemperiana.
Mais do que humanista com afinidades
céticas e cidadão pleno da república das
letras, Klemperer é um alemão. Esse é o
outro lado da história: o contraponto local de uma identidade que se pretende
também referida a uma dimensão não-paroquial. A inflexão de 1933 representa
para Klemperer sobretudo a destruição
de seu mito pessoal a respeito da circunstância humana mais elementar: a que
pertenço, que atributo identitário básico
dá sentido a minhas escolhas e ações?
Victor não tem dúvidas a respeito disso. Veterano da Grande Guerra, portador
da Cruz de Combate, protestante convertido, embora filho de um rabino: trata-se,
portanto, de um alemão. Mesmo supondo que a ênfase nesse atributo, em seu
diário, possa ser explicada pela ameaça
externa da sua supressão pelos nazistas, é
impressionante como a "Alemanha", na
economia textual de Klemperer, é o lastro, a imensa dimensão tácita, de sua vida
pessoal. A possibilidade da perda do atributo é a maior das privações.
Um alemão comum
São os preconceitos de um "alemão comum" que falam por meio de Klemperer,
em suas primeiras tentativas de interpretação da barbárie hitlerista. Diante da
violência de membros das SA, em 1933,
contra comunistas, por meio da linguagem mussoliniana do óleo de rícino e das
surras, Klemperer exibe sua perplexidade: "Se italianos fazem isso tudo bem, nativos do sul, animais... Mas alemães?".
Preconceito, perplexidade e desencanto:
"Sinto mais vergonha do que medo, vergonha pela Alemanha. Verdadeiramente,
sempre me senti alemão. Sempre imaginei: século 20 e Europa Central são coisas
bem diferentes de século 14 e Romênia".
O regime que começa a ser imposto aos
alemães em 1933 viola, portanto, todas as
cláusulas da germanidade (Thomas
Mann já tinha dito que o regime contrariava as cláusulas da humanidade). No
entanto, preconceito, perplexidade e desencanto começam a dar passagem, pouco a pouco, a hipóteses distintas, em chave mais fina, ainda que ambígua: "Na
Alemanha (...), essa forma de governo
não é encontrada em nenhuma parte, é
absolutamente não-alemã e, por isso,
sem uma duração, de alguma maneira,
definível. Mas, no momento, está organizada com a meticulosidade alemã e, por
isso, não pode ser abolida num tempo
previsível".
A essência do governo é "não-alemã",
mas a sua forma e a sua efetividade trariam a marca nacional. A contribuição
alemã teria, portanto, um caráter meramente prático, a serviço de valores e objetivos de origem diversa. Os diários de
Klemperer -de 1933 a 1945- podem
ser lidos como o testemunho da desconstrução dessa crença. Mais do que registro
de uma experiência mundana, se trata de
um exercício de sobrevivência e de auto-esclarecimento. O passo inicial desse
exercício pode ser encontrado em uma
passagem sombriamente antecipatória,
registrada em março de 1933: "O destino
do movimento hitlerista situa-se inquestionavelmente na questão judaica. Não
entendo por que colocaram esse ponto
no programa em posição tão central. Esse
ponto os levará à ruína. Mas, provavelmente, nós iremos junto". Além da indicação do conteúdo -o anti-semitismo- a ser maximizado pela forma alemã -a "meticulosidade"-, aparece esse novo sujeito: "nós". A inflexão de 1933
significa a judaização de Klemperer.
As condições de observação, o terror, a
avareza de informações e o incessante
cheiro de morte, contraditados pela disposição de viver e dar testemunho, presidem uma narrativa complexa, descontínua e com impressões díspares. A única
certeza de Klemperer acaba por não se
materializar: a de sua morte sob o Terceiro Reich. Em outros termos, os "Diários"
registram uma história contada por alguém que não poderia sobreviver para
contá-la. Mas como ler essa história?
O experimento nazista
Pragmáticos e ávidos por informações
primárias têm nos "Diários" -mesmo
com acesso limitado à edição abreviada,
de cerca de 900 páginas, e não ao texto
completo (1)- informações, descrições e
impressões preciosas a respeito do experimento do Terceiro Reich e do que significou viver como um judeu naquele contexto. Os diários e sua obra-prima -o
inédito entre nós "A Linguagem do Terceiro Reich" (1947) (2)- constituem o
que há de melhor, de instantâneo e de
mais compreensivo a respeito da experiência nazista. Ainda que, no que diz respeito a Klemperer, a impressão de Franz
Neumann -registrada no magistral
"Behemoth" (1942)- de que o regime
nazista é avesso à explicação racional,
pois se trataria de um "não-regime", de
pura desordem pelo alto, permaneça,
seus testemunhos são incontornáveis e
Klemperer é nosso guia compulsório para a noite e o inferno do Terceiro Reich.
Contudo, mais do que informação, há
em Klemperer uma forma de narrar os
fenômenos. O que conduz a uma questão
crucial: de que escritura se trata? A resposta a isso remete a muitos planos.
No primeiro deles, e no mais geral, trata-se de uma literatura praticada por escritores "in extremis", segundo sábia notação sugerida por Guy Stern. A categoria
cobre um conjunto de autores para os
quais escrever está associado à decisão de
sobreviver pela palavra como seres humanos criativos. Em uma aproximação
com a literatura sobre o Holocausto, Alvin Rosenfeld, em "A Double Dying - Reflections on Holocaust Literature" (Uma
Morte Dupla - Reflexões sobre a Literatura do Holocausto, Bloomingtom, 1980)
sugere: "A literatura sobre o Holocausto
nasce (...) como uma espécie de milagre,
não apenas como resultado de um desespero mudo, mas como asserção e afirmação de fé. Em alguns casos, talvez não se
trate mais do que de tenacidade humana
(...) diante da morte brutal. Em outros,
trata-se de fé na vontade de rejeitar a obliteração final e maligna. Ou ainda: fé na
força persistente e nada estranha de um
ânimo para buscar e encontrar novos começos". A chave da recusa da obliteração
nos devolve em cheio a Klemperer.
Esse ato de resistência é precedido de
uma decisão ética: a de seguir escrevendo
e a de dar testemunho: "Seguirei escrevendo. Esse é o meu heroísmo. Prestarei
testemunho, testemunho preciso". Nos
12 anos de ordálio, Klemperer não pára
de registrar suas impressões. A cada interrupção mais longa -como a da prisão
por ter deixado a janela aberta com a luz
acesa durante o blecaute- segue-se meticuloso esforço de reconstituição dos
dias sem acesso ao diário. A inspiração
desse cronista é claramente montaigniana. É Montaigne quem aparece como autor sugerido a seus estudantes, nos últimos momentos em que conserva sua cátedra, por meio de deliciosas passagens
dos "Ensaios": "Ils vont, ils viennent, ils
trottent, ils dansent..." (Eles vão, vêm,
trotam e dançam).
Klemperer, como Montaigne, escreve
os ensaios de sua vida. Não certamente
em um castelo e contando com sua memória, mas igualmente ao sabor das impressões provocadas por um mundo que
não controla e se mantendo intelectualmente em movimento. Diante da letalidade do mundo, a escritura é como que
uma redenção, um abrigo ou um antídoto à loucura. É, portanto, visceralmente
tensa: trata-se de exercitar o prazer e a
sensação de recuperar a integridade proporcionada pelo pensamento e pela ação
textual diante de um mundo letal, no qual
os assuntos dispostos à observação são
antes objetos de horror do que de conhecimento.
O caráter incognoscível dessa experiência não radica apenas no horror e em sua
incompatibilidade com conhecimento
sistemático. Além da incerteza abrigada
pela certeza do terror, há a surpresa frequente das situações de anticlímax: tratamento gentil e humano por parte de alemães ordinários, aparentemente desconhecidos de Daniel Goldhagen, e o acaso,
o puro acaso, pai, suspeito eu, de considerável porção dos eventos humanos.
Klemperer é salvo da morte por sua mulher Eva, "ariana" segundo a língua do
Terceiro Reich. Protegido por um casamento misto, Victor -um dos 168 judeus sobreviventes de Dresden- escapa
da morte certa, em fevereiro de 1945, com
o bombardeio daquela cidade, executado
pela Real Força Aérea inglesa. Alguma
utilidade, portanto, pode ser depreendida da estupidez do bombardeio de Dresden, dizimada quando a sorte da guerra
já estava decidida. De qualquer maneira,
as bombas inglesas trazem o caos e com
ele vida para Victor, agora livre de sua estrela amarela, arrancada de seu paletó
por Eva -sempre Eva- e do acréscimo
de Israel em seu nome.
Montaigne e Levi
Essa é, portanto, uma história de acasos
e de certezas, que transita entre a sensação instantânea de estar vivo e o reconhecimento incontornável de que tudo acabará em morte. Essa é uma história narrada à moda de Montaigne, mas também
de Primo Levi. Se considerarmos a brilhante imagem de Levi -a da complexidade do estado de desgraça-, exposta
em sua narrativa da experiência de
Auschwitz, veremos que essa é a coluna,
digamos, metodológica da narrativa de
Klemperer. Pela imagem, Levi denota um
processo no qual cada infortúnio sofrido,
mesmo que momentaneamente suprimido, dá lugar ao reconhecimento e ao
domínio de outro infortúnio: à supressão
do frio, com o fim do inverno, sobrevinha
a ditadura da fome; essa, se por acaso saciada minimamente, permite que consideremos a doença, ou outra fonte de infortúnio qualquer. A dor, mais do que cubista, se revela sob camadas de malignidade, em uma disposição arqueológica
que evoca o inferno de Dante. A história
de Victor e de Eva segue a lógica da complexidade do estado de desgraça: isso faz
com que todas as avaliações registradas
ao fim de cada ano -de 1933 a 1944-, e
sempre a indicar que as coisas nunca estiveram piores, embora retrospectivamente sujeitas a reparos, sejam verdadeiras.
O leitor dessa história sabe como as coisas terminam. Se medianamente culto,
dispõe de excelentes histórias, algumas
das quais tentam explicar o inexplicável.
Mas Victor não sabe do que se trata, ignora o alcance das coisas, ouve falar imprecisamente de Auschwitz apenas em 1942
e, sobretudo, não tem a visão do final,
ainda que tenha a certeza da morte. Essa é
a mais radical experiência da escritura "in
extremis": eis aqui os ensaios da minha
vida, pelos caminhos que conduzem à
minha morte certa.
A decisão de escrever é condição necessária da escritura. Essa proposição trivial
adquire no caso de Klemperer uma aura
dramática e remete a um enigma: Victor
escreve porque fica na Alemanha. Sendo
assim, como explicar essa decisão de ficar?
Havia na Alemanha, em 1933, cerca de
500 mil judeus. Mediante sucessivas ondas de migração e até 1941, quando a saída do país ficou impossível, apenas um
terço permaneceu. Na posição que ocupava, a fuga do país não era, para Klemperer, impossível. Ao longo do diário, várias razões são apresentadas: todas elas
denotam inadaptação a qualquer coisa
que não fosse alemã. Klemperer constrói
uma casa nova, nas cercanias de Dresden,
aprende a dirigir com quase 60 anos e
compra um automóvel, carinhosamente
designado como "bode velho". Seus movimentos indicam a direção de um enraizamento, em um mundo que a todo momento o define como "personalidade
problemática".
Como explicar, então, esse apego? Kurt
Schwitters, artista plástico alemão e um
dos criadores do dadaísmo, sai da Alemanha em 1933 e decide abandonar a língua.
Em seu exílio inglês, Schwitters não mais
utiliza a língua natal, pois a crê contaminada pelos símbolos da "nova ordem".
Klemperer representa o negativo da atitude de Schwitters. O Terceiro Reich é,
antes de tudo, uma linguagem. Antes de
Wittgenstein, Klemperer está a sugerir
que sendo uma forma de vida, o Terceiro
Reich é um contexto linguístico e semântico. Talvez seja exagero dizer que fica na
Alemanha para estudar a linguagem do
Terceiro Reich. No entanto, se esse não é
o motivo, creio ser essa a razão. A chave
dessa suposição se encontra plenamente
apresentada na obra-prima "A Linguagem do Terceiro Reich".
O apego a essa manifestação do regime
resulta, ironicamente, das próprias supressões que ele impõe. Privado do acesso a bibliotecas, expulso de sua casa e da
possibilidade de exercer seu ofício em bases normais, a língua de seus inimigos adquire centralidade. Klemperer, assim, se
apega a algo que o regime não pode suprimir ou a ele negar: sua linguagem. Tudo o mais pode ser retirado: vida, bens e
dignidade. Mas sob condição de oferecer
a Klemperer uma coleção notável de fenômenos: as palavras, as locuções e, ao
fim, os sons que estruturam a nova forma
de vida. Victor sobrevive para observar
como falam os inimigos, para revelar a
intimidade e os efeitos de seus jogos de
linguagem. Seus textos concedem ao leitor o privilégio inestimável de testemunhar nossa vitória final sobre o nazismo.
Notas
1. O texto completo, em tradução inglesa, em dois
volumes e em cerca de 1.700 páginas foi publicado na Inglaterra, em 1999, pela editora Weidenfeld & Nicolson.
2. Ver "The Language of The Third Reich - A Philologist Notebook", London & New Brunswick,
2000.
Os Diários de Victor
Klemperer - Testemunho
Clandestino de um Judeu na
Alemanha Nazista
Victor Klemperer
Tradução: Irene Aron
Companhia das Letras
(Tel.0/xx/11/ 3846-0801)
896 págs., R$ 42,00
Renato Lessa é professor do Iuperj e da Universidade Federal Fluminense e autor, entre outros livros, de "Veneno Pirrônico - Ensaios sobre o Ceticismo" (Francisco Alves).
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