São Paulo, sábado, 14 de outubro de 2000

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Os diários do médico judeu Victor Klemperer sobre a experiência nazista
A linguagem do Terceiro Reich

RENATO LESSA

No inverno alemão de janeiro de 1933, a vida do dr. Victor Klemperer sofre inapelável inflexão. Até então, esse pacato professor titular de literatura românica da Universidade Técnica de Dresden, desde 1920, vinha se dedicando à leitura, ao ensino e à escritura a respeito de um universo composto por personagens tais como Corneille, Montesquieu, Voltaire, Diderot, Rousseau e a miríade de figuras dos deliciosos séculos 17 e 18, abrigos de céticos, pessimistas, irônicos e libertinos. A exposição a esse universo fez de Klemperer um sujeito híbrido.
Ele personaliza o intelectual humanista típico, a combinar erudição histórica e literária, desconfiança diante de pretensões de compreensão exaustiva do mundo e disposição incomum de absorver informações e idéias. Klemperer é o que poderíamos designar como um intelectual permanente: em seus piores momentos de infortúnio, a partir do desastre de 1933, o temor pela própria vida será invariavelmente acompanhado pelo horror diante do espectro da impossibilidade do pensamento. Esse exercício obsessivo da observação e da leitura e essa insaciabilidade cognitiva estão presentes em Klemperer na persona de um "cético prazeroso", para usar a bela autodefinição que ele nos proporciona. Como veremos, essa marca tem consequências decisivas na escritura klemperiana.
Mais do que humanista com afinidades céticas e cidadão pleno da república das letras, Klemperer é um alemão. Esse é o outro lado da história: o contraponto local de uma identidade que se pretende também referida a uma dimensão não-paroquial. A inflexão de 1933 representa para Klemperer sobretudo a destruição de seu mito pessoal a respeito da circunstância humana mais elementar: a que pertenço, que atributo identitário básico dá sentido a minhas escolhas e ações?
Victor não tem dúvidas a respeito disso. Veterano da Grande Guerra, portador da Cruz de Combate, protestante convertido, embora filho de um rabino: trata-se, portanto, de um alemão. Mesmo supondo que a ênfase nesse atributo, em seu diário, possa ser explicada pela ameaça externa da sua supressão pelos nazistas, é impressionante como a "Alemanha", na economia textual de Klemperer, é o lastro, a imensa dimensão tácita, de sua vida pessoal. A possibilidade da perda do atributo é a maior das privações.

Um alemão comum
São os preconceitos de um "alemão comum" que falam por meio de Klemperer, em suas primeiras tentativas de interpretação da barbárie hitlerista. Diante da violência de membros das SA, em 1933, contra comunistas, por meio da linguagem mussoliniana do óleo de rícino e das surras, Klemperer exibe sua perplexidade: "Se italianos fazem isso tudo bem, nativos do sul, animais... Mas alemães?". Preconceito, perplexidade e desencanto: "Sinto mais vergonha do que medo, vergonha pela Alemanha. Verdadeiramente, sempre me senti alemão. Sempre imaginei: século 20 e Europa Central são coisas bem diferentes de século 14 e Romênia".
O regime que começa a ser imposto aos alemães em 1933 viola, portanto, todas as cláusulas da germanidade (Thomas Mann já tinha dito que o regime contrariava as cláusulas da humanidade). No entanto, preconceito, perplexidade e desencanto começam a dar passagem, pouco a pouco, a hipóteses distintas, em chave mais fina, ainda que ambígua: "Na Alemanha (...), essa forma de governo não é encontrada em nenhuma parte, é absolutamente não-alemã e, por isso, sem uma duração, de alguma maneira, definível. Mas, no momento, está organizada com a meticulosidade alemã e, por isso, não pode ser abolida num tempo previsível".
A essência do governo é "não-alemã", mas a sua forma e a sua efetividade trariam a marca nacional. A contribuição alemã teria, portanto, um caráter meramente prático, a serviço de valores e objetivos de origem diversa. Os diários de Klemperer -de 1933 a 1945- podem ser lidos como o testemunho da desconstrução dessa crença. Mais do que registro de uma experiência mundana, se trata de um exercício de sobrevivência e de auto-esclarecimento. O passo inicial desse exercício pode ser encontrado em uma passagem sombriamente antecipatória, registrada em março de 1933: "O destino do movimento hitlerista situa-se inquestionavelmente na questão judaica. Não entendo por que colocaram esse ponto no programa em posição tão central. Esse ponto os levará à ruína. Mas, provavelmente, nós iremos junto". Além da indicação do conteúdo -o anti-semitismo- a ser maximizado pela forma alemã -a "meticulosidade"-, aparece esse novo sujeito: "nós". A inflexão de 1933 significa a judaização de Klemperer.
As condições de observação, o terror, a avareza de informações e o incessante cheiro de morte, contraditados pela disposição de viver e dar testemunho, presidem uma narrativa complexa, descontínua e com impressões díspares. A única certeza de Klemperer acaba por não se materializar: a de sua morte sob o Terceiro Reich. Em outros termos, os "Diários" registram uma história contada por alguém que não poderia sobreviver para contá-la. Mas como ler essa história?

O experimento nazista
Pragmáticos e ávidos por informações primárias têm nos "Diários" -mesmo com acesso limitado à edição abreviada, de cerca de 900 páginas, e não ao texto completo (1)- informações, descrições e impressões preciosas a respeito do experimento do Terceiro Reich e do que significou viver como um judeu naquele contexto. Os diários e sua obra-prima -o inédito entre nós "A Linguagem do Terceiro Reich" (1947) (2)- constituem o que há de melhor, de instantâneo e de mais compreensivo a respeito da experiência nazista. Ainda que, no que diz respeito a Klemperer, a impressão de Franz Neumann -registrada no magistral "Behemoth" (1942)- de que o regime nazista é avesso à explicação racional, pois se trataria de um "não-regime", de pura desordem pelo alto, permaneça, seus testemunhos são incontornáveis e Klemperer é nosso guia compulsório para a noite e o inferno do Terceiro Reich.
Contudo, mais do que informação, há em Klemperer uma forma de narrar os fenômenos. O que conduz a uma questão crucial: de que escritura se trata? A resposta a isso remete a muitos planos.
No primeiro deles, e no mais geral, trata-se de uma literatura praticada por escritores "in extremis", segundo sábia notação sugerida por Guy Stern. A categoria cobre um conjunto de autores para os quais escrever está associado à decisão de sobreviver pela palavra como seres humanos criativos. Em uma aproximação com a literatura sobre o Holocausto, Alvin Rosenfeld, em "A Double Dying - Reflections on Holocaust Literature" (Uma Morte Dupla - Reflexões sobre a Literatura do Holocausto, Bloomingtom, 1980) sugere: "A literatura sobre o Holocausto nasce (...) como uma espécie de milagre, não apenas como resultado de um desespero mudo, mas como asserção e afirmação de fé. Em alguns casos, talvez não se trate mais do que de tenacidade humana (...) diante da morte brutal. Em outros, trata-se de fé na vontade de rejeitar a obliteração final e maligna. Ou ainda: fé na força persistente e nada estranha de um ânimo para buscar e encontrar novos começos". A chave da recusa da obliteração nos devolve em cheio a Klemperer.
Esse ato de resistência é precedido de uma decisão ética: a de seguir escrevendo e a de dar testemunho: "Seguirei escrevendo. Esse é o meu heroísmo. Prestarei testemunho, testemunho preciso". Nos 12 anos de ordálio, Klemperer não pára de registrar suas impressões. A cada interrupção mais longa -como a da prisão por ter deixado a janela aberta com a luz acesa durante o blecaute- segue-se meticuloso esforço de reconstituição dos dias sem acesso ao diário. A inspiração desse cronista é claramente montaigniana. É Montaigne quem aparece como autor sugerido a seus estudantes, nos últimos momentos em que conserva sua cátedra, por meio de deliciosas passagens dos "Ensaios": "Ils vont, ils viennent, ils trottent, ils dansent..." (Eles vão, vêm, trotam e dançam).
Klemperer, como Montaigne, escreve os ensaios de sua vida. Não certamente em um castelo e contando com sua memória, mas igualmente ao sabor das impressões provocadas por um mundo que não controla e se mantendo intelectualmente em movimento. Diante da letalidade do mundo, a escritura é como que uma redenção, um abrigo ou um antídoto à loucura. É, portanto, visceralmente tensa: trata-se de exercitar o prazer e a sensação de recuperar a integridade proporcionada pelo pensamento e pela ação textual diante de um mundo letal, no qual os assuntos dispostos à observação são antes objetos de horror do que de conhecimento.
O caráter incognoscível dessa experiência não radica apenas no horror e em sua incompatibilidade com conhecimento sistemático. Além da incerteza abrigada pela certeza do terror, há a surpresa frequente das situações de anticlímax: tratamento gentil e humano por parte de alemães ordinários, aparentemente desconhecidos de Daniel Goldhagen, e o acaso, o puro acaso, pai, suspeito eu, de considerável porção dos eventos humanos. Klemperer é salvo da morte por sua mulher Eva, "ariana" segundo a língua do Terceiro Reich. Protegido por um casamento misto, Victor -um dos 168 judeus sobreviventes de Dresden- escapa da morte certa, em fevereiro de 1945, com o bombardeio daquela cidade, executado pela Real Força Aérea inglesa. Alguma utilidade, portanto, pode ser depreendida da estupidez do bombardeio de Dresden, dizimada quando a sorte da guerra já estava decidida. De qualquer maneira, as bombas inglesas trazem o caos e com ele vida para Victor, agora livre de sua estrela amarela, arrancada de seu paletó por Eva -sempre Eva- e do acréscimo de Israel em seu nome.

Montaigne e Levi
Essa é, portanto, uma história de acasos e de certezas, que transita entre a sensação instantânea de estar vivo e o reconhecimento incontornável de que tudo acabará em morte. Essa é uma história narrada à moda de Montaigne, mas também de Primo Levi. Se considerarmos a brilhante imagem de Levi -a da complexidade do estado de desgraça-, exposta em sua narrativa da experiência de Auschwitz, veremos que essa é a coluna, digamos, metodológica da narrativa de Klemperer. Pela imagem, Levi denota um processo no qual cada infortúnio sofrido, mesmo que momentaneamente suprimido, dá lugar ao reconhecimento e ao domínio de outro infortúnio: à supressão do frio, com o fim do inverno, sobrevinha a ditadura da fome; essa, se por acaso saciada minimamente, permite que consideremos a doença, ou outra fonte de infortúnio qualquer. A dor, mais do que cubista, se revela sob camadas de malignidade, em uma disposição arqueológica que evoca o inferno de Dante. A história de Victor e de Eva segue a lógica da complexidade do estado de desgraça: isso faz com que todas as avaliações registradas ao fim de cada ano -de 1933 a 1944-, e sempre a indicar que as coisas nunca estiveram piores, embora retrospectivamente sujeitas a reparos, sejam verdadeiras.
O leitor dessa história sabe como as coisas terminam. Se medianamente culto, dispõe de excelentes histórias, algumas das quais tentam explicar o inexplicável. Mas Victor não sabe do que se trata, ignora o alcance das coisas, ouve falar imprecisamente de Auschwitz apenas em 1942 e, sobretudo, não tem a visão do final, ainda que tenha a certeza da morte. Essa é a mais radical experiência da escritura "in extremis": eis aqui os ensaios da minha vida, pelos caminhos que conduzem à minha morte certa.
A decisão de escrever é condição necessária da escritura. Essa proposição trivial adquire no caso de Klemperer uma aura dramática e remete a um enigma: Victor escreve porque fica na Alemanha. Sendo assim, como explicar essa decisão de ficar?
Havia na Alemanha, em 1933, cerca de 500 mil judeus. Mediante sucessivas ondas de migração e até 1941, quando a saída do país ficou impossível, apenas um terço permaneceu. Na posição que ocupava, a fuga do país não era, para Klemperer, impossível. Ao longo do diário, várias razões são apresentadas: todas elas denotam inadaptação a qualquer coisa que não fosse alemã. Klemperer constrói uma casa nova, nas cercanias de Dresden, aprende a dirigir com quase 60 anos e compra um automóvel, carinhosamente designado como "bode velho". Seus movimentos indicam a direção de um enraizamento, em um mundo que a todo momento o define como "personalidade problemática".
Como explicar, então, esse apego? Kurt Schwitters, artista plástico alemão e um dos criadores do dadaísmo, sai da Alemanha em 1933 e decide abandonar a língua. Em seu exílio inglês, Schwitters não mais utiliza a língua natal, pois a crê contaminada pelos símbolos da "nova ordem". Klemperer representa o negativo da atitude de Schwitters. O Terceiro Reich é, antes de tudo, uma linguagem. Antes de Wittgenstein, Klemperer está a sugerir que sendo uma forma de vida, o Terceiro Reich é um contexto linguístico e semântico. Talvez seja exagero dizer que fica na Alemanha para estudar a linguagem do Terceiro Reich. No entanto, se esse não é o motivo, creio ser essa a razão. A chave dessa suposição se encontra plenamente apresentada na obra-prima "A Linguagem do Terceiro Reich".
O apego a essa manifestação do regime resulta, ironicamente, das próprias supressões que ele impõe. Privado do acesso a bibliotecas, expulso de sua casa e da possibilidade de exercer seu ofício em bases normais, a língua de seus inimigos adquire centralidade. Klemperer, assim, se apega a algo que o regime não pode suprimir ou a ele negar: sua linguagem. Tudo o mais pode ser retirado: vida, bens e dignidade. Mas sob condição de oferecer a Klemperer uma coleção notável de fenômenos: as palavras, as locuções e, ao fim, os sons que estruturam a nova forma de vida. Victor sobrevive para observar como falam os inimigos, para revelar a intimidade e os efeitos de seus jogos de linguagem. Seus textos concedem ao leitor o privilégio inestimável de testemunhar nossa vitória final sobre o nazismo.


Notas
1. O texto completo, em tradução inglesa, em dois volumes e em cerca de 1.700 páginas foi publicado na Inglaterra, em 1999, pela editora Weidenfeld & Nicolson.
2. Ver "The Language of The Third Reich - A Philologist Notebook", London & New Brunswick, 2000.



Os Diários de Victor Klemperer - Testemunho Clandestino de um Judeu na Alemanha Nazista
Victor Klemperer Tradução: Irene Aron Companhia das Letras (Tel.0/xx/11/ 3846-0801) 896 págs., R$ 42,00



Renato Lessa é professor do Iuperj e da Universidade Federal Fluminense e autor, entre outros livros, de "Veneno Pirrônico - Ensaios sobre o Ceticismo" (Francisco Alves).


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