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RÉPLICA
André Singer responde a resenha de Fábio Wanderley Reis
Quem tem medo da esquerda e da direita?
ANDRÉ SINGER
Em "Esquerda e Direita no Eleitorado
Brasileiro" (Edusp), revelo que pesquisas
realizadas entre 1989 e 1994 traziam uma
novidade. A autolocalização do eleitor no
espectro ideológico se mostrava relacionada ao voto nos pleitos presidenciais
que conduziram Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Passo a sugerir, então, que o posicionamento do eleitor na
esquerda, no centro ou na direita deveria
ser levado em conta como um dos determinantes do voto no Brasil. Tratava-se,
como foi escrito neste Jornal de Resenhas (9/9/2000) por Fábio Wanderley
Reis, de um propósito "simples e claro", a
meu ver sustentado por argumentação
lógica. Mesmo tendo evidenciado pleno
entendimento do propósito do trabalho,
o resenhista optou por ignorar os argumentos, em lugar de combatê-los abertamente.
Alega três motivos para rejeitar a tese.
Primeiro, coloca em dúvida a relação entre o autoposicionamento do eleitor no
espectro ideológico e o voto. Segundo,
critica a idéia de que os eleitores possam
intuir sentidos políticos nas palavras "esquerda" e "direita", a ponto de saberem
se posicionar no espectro ideológico,
mesmo que não consigam verbalizar o
significado de tais vocábulos. Por fim,
afirma, contraditoriamente, que, se a premissa anterior for aceita, ela conduzirá a
categorias irrelevantes para a compreensão do comportamento eleitoral. Acusa-me ainda de não estabelecer um "diálogo
adequado" com estudos anteriores
-"como os de minha própria autoria",
esclarece o resenhista. Responderei pela
ordem.
Será verdade que os dados apresentados no livro não sustentam a hipótese de
um significativo vínculo entre a autolocalização do eleitor em uma escala de sete
pontos (na qual "um" corresponde ao
posicionamento mais à esquerda e "sete",
mais à direita), com o voto nas eleições de
1989 e 1994? O núcleo da dúvida está no
suposto "fato de que os eleitores entrevistados, que ignoram o significado das categorias e se colocam às cegas numa ou
noutra, têm uma chance razoável de estabelecer por acaso a correspondência "correta" entre o voto e a autocolocação na escala esquerda-direita" (grifo meu).
Relação não-casual
Ora, tal afirmação desconhece as inúmeras evidências, apresentadas no livro,
de que tal relação não é casual. Ou será
que o fato de 60% dos eleitores que se posicionaram à direita, pesquisados pelo
Datafolha por meio de uma mostra nacional, terem votado em Collor no primeiro turno de 1989, contra 24% de votantes em Collor entre os que se posicionaram à esquerda, não quer dizer nada?
Será que a decisão de votar em Lula por
parte de 47% dos que se colocaram à esquerda, na mesma ocasião, contra apenas 16% dos que se colocaram à direita,
não chama a atenção de um pesquisador
experiente como Fábio Wanderley Reis?
Por falta de espaço, deixo de mencionar
muitos outros dados significativos que se
encontram no livro sobre a eleição de
1989.
Na eleição de 1994, decidida com a vitória de Fernando Henrique logo no primeiro turno, os dados revelados pela Toledo e Associados, numa pesquisa feita
no Estado de São Paulo, foram ainda
mais reveladores. Dos eleitores paulistas
que se posicionaram à direita, 85% preferiram FHC, enquanto esse número caía
para 35% entre os que se colocaram à esquerda. Dos entrevistados que se posicionaram à esquerda, 64% optaram por Lula, apesar do apoio que havia, mesmo na
esquerda, ao Plano Real. Em contrapartida, o número de eleitores de direita que
escolheram Lula despenca para 14%.
Como é possível, diante desses dados,
que um intelectual de primeira linha, como Fábio Wanderley Reis, sugira que os
entrevistados acertaram por acaso? Cumpre mencionar que as relações citadas foram submetidas, sem exceção, a teste estatístico para verificar exatamente se as
associações entre a autolocalização na escala e o voto estavam fora da margem de
acaso. Os resultados dos testes, à disposição de todos no livro, foram inequívocos.
Eles mostraram que as relações encontradas não eram casuais.
Para contornar a força das evidências
apresentadas por mim, o resenhista recorreu a um artifício. Afirmou que os resultados poderiam decorrer do fato de eu
não ter separado os eleitores que sabem
explicar o que é esquerda e direita daqueles que não sabem fazê-lo. De acordo
com o crítico, a minoria dos que sabem,
ao votar de modo coerente, teria contaminado a aferição das associações. Caso
fossem separados os que sabem dos que
não sabem, ficaria demonstrado que a
grande maioria, formada pelos que não
sabem, revelaria absoluta falta de coerência. Pois bem, fiz o teste com dados da
pesquisa Datafolha de março de 1990, e o
resultado mostrou que a associação entre
posicionamento e voto é fortemente significativa também entre os que não sabem verbalizar o que é esquerda e direita.
Mas como posso afirmar que essa associação revela algo sobre o voto se eu mesmo reconheço que a grande maioria não
sabe o que quer dizer esquerda e direita?
Eis a segunda crítica. Embora pareça uma
observação dotada de bom senso, trata-se de outra recusa em apreciar os argumentos do livro. Definir esquerda e direita não é tarefa fácil. Qualquer observador
medianamente informado da política sabe que há várias acepções possíveis para
uma e outra. Tome-se, apenas a título de
exemplo, o caso da direita no Brasil.
Diante da pergunta o que é direita, um
eleitor sofisticado poderia afirmar: direita é a corrente política que defende a liberdade. O analista talvez considerasse a
resposta "correta", se imaginasse que o
entrevistado estava a pensar na livre iniciativa. No entanto, dada a associação da
direita brasileira com o regime militar recente, deveríamos também aceitar como
certa uma resposta segundo a qual a direita seria a defensora da ordem, mesmo
que a custo da liberdade. Portanto duas
definições contraditórias do que seja direita revelam-se igualmente aceitáveis.
O conteúdo de esquerda e direita é relativamente variável e subjetivo. Como
mostrou Giovanni Sartori -a quem eu
teria lido mal, segundo o resenhista-,
esquerda e direita são elementos tão
usados na gramática política justamente
por funcionarem como caixas vazias, nas
quais é possível colocar sempre novos
conteúdos. Mas, se são caixas vazias, qual
é a sua utilidade, afinal?
Ocorre que esquerda e direita funcionam como sinalizadores de diferentes
posicionamentos dos partidos e candidatos ao longo de um mesmo eixo. São úteis
porque organizam, concentram e simplificam um feixe variável de conteúdos,
muitas vezes percebidos vagamente pelo
público de massa, que permitem aos candidatos, partidos e eleitores "conversarem" sobre as disputas democráticas. Por
isso, de 80% a 90% dos eleitores reconhecem, de modo intuitivo, que há partidos e
candidatos de esquerda, centro e direita.
Mesmo que não consiga verbalizar com
palavras próprias o significado dos termos, o eleitor percebe, por exemplo, que
Lula estava à esquerda de Collor em 89 e
de Fernando Henrique em 94.
O PT foi o primeiro partido abertamente de esquerda a disputar a Presidência
com chances de vitória. Isso tornou a divisão ideológica mais explícita e difundida pelos meios de comunicação. Desse
modo, não espanta que o eleitor intua
quem está em que lugar na divisão espacial esquerda-direita. Os dados que apresento no livro a respeito são igualmente
contundentes. As pesquisas que pedem
ao eleitor que indique, na escala de um a
sete, em que ponto se encontram os partidos brasileiros, mostram que os entrevistados tendem a reconhecer corretamente a posição relativa dos mesmos.
Mas, quando questionada, grande parte
dos entrevistados não sabe explicar o que
é esquerda e direita.
Isso quer dizer que esquerda e direita
são termos destituídos de conteúdo e,
portanto, que a relação entre o autoposicionamento do eleitor e o voto, embora
existente, seria irrelevante? Tal a terceira
crítica.
Se o eleitor intui a divisão espacial que
existe entre partidos e candidatos, se
identifica com determinado ponto dentro da mesma escala e, finalmente, vota
de modo coerente com o ponto em que
se coloca no espectro ideológico, é evidente que a identificação ideológica configura um bom preditor do voto. Como
insisto em meu livro, não se trata do único nem necessariamente do preditor
mais importante. Todavia ele existe e,
nas duas eleições que analisei, mostrou-se um dos melhores preditores do voto,
mesmo quando, em 94, o Plano Real foi
um importante determinante do sufrágio.
Devolvo, portanto, a pergunta ao meu
crítico: mesmo aceitas as premissas acima -de que esquerda e direita estejam
associadas a um conteúdo político frouxo, uma vez que os eleitores não sabem
verbalizá-lo-, por que desconhecer a
variável da identificação ideológica?
Não creio que o posicionamento à esquerda e à direita seja destituído de conteúdo para o eleitor. No último capítulo
indico linhas de associação cujo aprofundamento, em novas pesquisas, poderia
descobrir aspectos importantes dos sistemas de crença presentes no eleitorado
brasileiro. Sugiro que o posicionamento
à direita está vinculado, sobretudo nas
camadas de baixa renda e escolaridade, a
uma adesão à ordem, evidenciada pelo
apoio a medidas repressivas contra manifestações oriundas da organização popular.
Por fim, longe de me furtar ao "diálogo
adequado" com os estudos anteriores,
deixo claro no livro que pretendo apenas
aduzir uma peça ao quebra-cabeça do
comportamento eleitoral no Brasil e não
reinventar a roda. A menos que por
"adequado" Reis entenda a mera repetição do que ele e sua geração descobriram
com "argúcia e rigor", como está escrito
no próprio volume resenhado. Por que
tanto medo da esquerda e da direita?
André Singer é professor de ciência política na
USP e repórter especial da Folha.
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