Ribeirão Preto, Domingo, 05 de Novembro de 2000

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LITERATURA
"Que Enchente Me Carrega?", de escritor de Serrana ganhador do Jabuti, chega às livrarias no final deste mês
Menalton Braff lança novo romance

LUÍS EBLAK
EDITOR DA FOLHA RIBEIRÃO

O homem diante de suas limitações. É a história de "Que Enchente Me Carrega?", de Menalton Braff, o escritor gaúcho que mora em Serrana e ganhou o último Prêmio Jabuti de literatura.
O romance, que chega às livrarias no final deste mês, narra o processo de decadência social e mental do sapateiro Firmino. Ele se dá conta de que seus produtos artesanais definitivamente perderam espaço para os calçados fabricados pelas indústrias. São as limitações de um ser humano que descobriu, de uma hora para outra, que a única coisa que ele sabia fazer na vida foi ultrapassada pelo tempo, pela tecnologia.
Braff ganhou o mais importante prêmio da literatura brasileira este ano com seu livro de contos "À Sombra do Cipreste", surpreendendo e desbancando nomes consagrados das letras nacionais, como Carlos Heitor Cony, Ignácio Loyola Brandão e Moacyr Scliar. Cony (colunista da Folha e vencedor dos concursos de 1996 e 1998) disputava o Jabuti com "Romance sem Palavras" e era o favorito, segundo votação popular realizada num site paulistano da Internet.
Após a façanha, Braff -até então desconhecido e um pacato professor de literatura de colégios do interior paulista- despontou na mídia e foi parar até na novela da Globo "Laços de Família" e no programa do "dublê de David Letterman no Brasil", Jô Soares.
"É um livro mais de análise psicológica do que de ação", descreve ele. O que chama a atenção no romance é uma técnica de narrativa usada por Braff para expressar a degradação mental do personagem principal: seu último capítulo -sete páginas- é escrito sem pontuação. Nem ponto nem vírgula, muito menos ponto e vírgula. Só o ponto final. "É uma forma de mostrar que Firmino perdeu a razão."
A técnica ficou célebre na literatura mundial no trecho final de "Ulisses", do escritor irlandês James Joyce (1882-1941) .

Gênese
A cena de nascimento de "Que Enchente Me Carrega?" é um pôr-do-sol da cidade de Laranjeiras do Sul, interior do Paraná. Lá, município do pai de Braff, Manoel, ele avistou certa vez -início da década de 1990- a imagem de uma casa ameaçada de cair num barranco. "Será que a pessoa que mora naquele lugar dorme tranquila todas as noites e não tem medo de ver sua casa desabar? Uma chuva, uma enchente derrubaria a construção. Foi o que me perguntei na época."
A obra de Braff parece sempre ter um apelo visual. Foi assim em "À Sombra do Cipreste", que partiu da imagem da árvore com formato e significado mitológico especiais presente em sua história desde a infância. Não é à toa que tanto o livro de contos como "Que Enchente..." trazem na capa as pinturas de cores fortes do pós-impressionista holandês Vincent van Gogh (1853-1890).
Roseli, mulher e ex-aluna de Braff, foi testemunha do "dia do nascimento do livro". Ela era estudante do curso universitário de letras em São Paulo em que o escritor era o professor. Hoje, ela é a "revisora especial" de seus textos. "E é uma crítica ferrenha do que escrevo. Não é de ficar elogiando não."
Até os anos de 1980, o casal vivia na capital paulista. Em 1987, ele se mudou para a tranquila Serrana fugindo da violência da cidade grande. Hoje, leciona em vários colégios secundários do interior. Viaja 1.500 km por semana, passando por municípios em sentidos opostos, como Ituverava (106 km a norte de Ribeirão) e Catanduva (146 km a oeste).
As viagens são comuns na vida deste mestre em teoria literária pela Universidade São Judas Tadeu. Nascido em Taquara (cerca de 70 km de Porto Alegre), Braff se acostumou a peregrinar de cidade em cidade desde pequeno. Filho de um professor de gramática, passou por sete municípios do Rio Grande do Sul até se fixar na capital do Estado aos 14 anos.
Como na imagem vista no interior paranaense, o personagem principal de "Que Enchente..." vive numa casa próxima a um barranco. Ironicamente, a chegada de uma indústria de calçados faz com que a prefeitura local construa uma avenida na área. É essa via que vai comprometer as estruturas da residência de Firmino, causando-lhe arruinação.
Paralelamente a isso, o casamento do personagem está se acabando e ele demonstra isso ao leitor contando a história que já ocorreu. Com a mulher, ele perde também seus tradicionais e ricos clientes e passa a viver isolado em sua casa. "Ele é um homem à antiga. Não permitia que a mulher, Elvira, trabalhasse, por exemplo. Isso causava enormes problemas conjugais."
No início do enredo, Firmino é razoavelmente sóbrio. Assim, o texto de "Que Enchente Me Carrega?" é pontuado, com frases curtas e objetivas. Só de vez em quando, as locuções não se completam, mostrando talvez seu estado de embriaguez.
No decorrer da história, o personagem vai perdendo a razão. Chega a pensar -sem saber nunca a verdade- que matou e enterrou a mulher no quintal de sua casa. "É o real estado de degradação social que se tornou degradação mental. Na verdade ele tem dúvidas se enterrou mesmo Elvira ou se foram seus pertences. Beira a esquizofrenia."
"Que Enchente Me Carrega?" foi escrito por Braff entre 1990 e 1992. Já está pronto, portanto, há oito anos. À época, já morando em Serrana, uma região vizinha, a de Franca, começava a sentir a crise de um setor ligado ao personagem Firmino: o calçadista.
As medidas do governo do presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992) refletiu negativamente nas indústrias, causando as primeiras das milhares de demissões de empregados. "Mas a criação do Firmino não tem nada a ver com isso. Na verdade eu simplesmente queria uma pessoa que vivesse um dilema como o de sapateiro-artesão."
O escritor também garante que a confecção do personagem também não tem relação com a região Sul do país, terra natal de Braff, igualmente forte produtora de calçados.
"É simplesmente a história do artesão que perde para a indústria. Antigamente, você tinha o seu médico; hoje, tem um plano de saúde. Antes, um alfaiate levava duas, três semanas para fazer seu terno (com intervalos em que você tinha de ir até ele para experimentar a roupa); hoje, você compra na loja do shopping. É um processo irreversível e vai ser assim cada vez mais. Mas o que eu penso é no lado humano. Como se sente o alfaiate, o sapateiro nesse processo todo?"
No livro, Firmino desponta discutir o que vem a ser arte. Para ele, o seu sapato carinhosamente produzido por suas mãos é um objeto de arte. Questiona se o fato de o calçado ter uma utilidade anula sua essência de arte. Diz um trecho: "Quem sabe o que é útil e o que é inútil? Se o guarda do museu usasse a Mona Lisa para tapar o buraco de um vidro quebrado ou se um médico usa uma sinfonia de Mozart na terapia de seus pacientes, a tela e a música deixam de ser arte?"
Apesar de ter ficado na gaveta durante quase toda a década de 90, "Que Enchente Me Carrega?" se manteve quase que no original, sem grandes mudanças. "Não mudei quase nada. Só uma palavrinha aqui, outra acolá. Ficou da mesma forma."

Tempos modernos
O novo romance de Braff entra numa discussão muito difundida pelas ciências humanas neste século: a da extinção de funções imposta pelo desenvolvimento do capitalismo.
Braff discute o lado humano do sapateiro-artesão que se considera um artista, pois é o sujeito que "cria" calçados sob encomenda como se fosse um objeto de arte, uma escultura grega, um quadro cubista ou uma música erudita.
Esse debate é bem antigo, remonta ao início do capitalismo, ou à introdução do chamado capitalismo mercantil (ou primitivo), nos séculos 15 e 16. O sapateiro, ao lado de outras profissões da época, era justamente o sujeito que perdia seu espaço para as empresas emergentes. Aqui entra a questão da divisão do trabalho e dos conhecimentos e tudo o mais (leia-se a obra de Karl Marx).
Mas o debate do artesão frente às novas tecnologias do capitalismo também é bem simbólico e atual, ainda. Máquinas simplesmente substituem trabalhadores numa velocidade assustadora.
Na região de Ribeirão, o sujeito que conhece de perto essa questão é o bóia-fria da cana-de-açúcar, que não lê nem vai ler este texto. Ele está deixando de existir aos poucos há anos, após a introdução das colheitadeiras nos canaviais. Quantos Firminos tinham empregos garantidos em todas as safras passadas e hoje simplesmente não existem mais (o que eles faziam não era arte, mas igualmente foram derrotados pela tecnologia)?
Vale o questionamento também para a função do escritor na sociedade da Internet, do cinema e da TV. Quem é hoje o sujeito que escreve romances, contos, poemas? "A literatura vai ter de mudar. O romance, por exemplo, tende a um encontro com a poesia. Como Clarice Lispector já previa: diminuição do enredo, com mais elementos de linguagem", responde Braff, referindo-se à escritora brasileira de origem ucraniana (1920-1977).
Para ele, há dois papéis básicos do escritor hoje na sociedade. Primeiro, ele expressa o momento particular, a visão emotiva de expectativas e passado. "Em segundo lugar, (o escritor) tem de criar, tem de provocar reflexão, tem de incomodar. Não que dê soluções, mas que incite o leitor a pensar", completa.
A Palavra Mágica, a editora que "descobriu" Braff, promete o lançamento da obra para o final deste mês. E já conta inclusive com a possibilidade de ganhar novos prêmios. "Vamos inscrever sim "Que Enchente Me Carrega" no Jabuti", afirmou o editor Galeno Amorim.


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