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LITERATURA
"Que Enchente Me Carrega?", de escritor de Serrana ganhador do Jabuti, chega às livrarias no final deste mês
Menalton Braff lança novo romance
LUÍS EBLAK
EDITOR DA FOLHA RIBEIRÃO
O homem diante de suas limitações. É a história de "Que Enchente Me Carrega?", de Menalton
Braff, o escritor gaúcho que mora
em Serrana e ganhou o último
Prêmio Jabuti de literatura.
O romance, que chega às livrarias no final deste mês, narra o
processo de decadência social e
mental do sapateiro Firmino. Ele
se dá conta de que seus produtos
artesanais definitivamente perderam espaço para os calçados fabricados pelas indústrias. São as
limitações de um ser humano que
descobriu, de uma hora para outra, que a única coisa que ele sabia
fazer na vida foi ultrapassada pelo
tempo, pela tecnologia.
Braff ganhou o mais importante
prêmio da literatura brasileira este ano com seu livro de contos "À
Sombra do Cipreste", surpreendendo e desbancando nomes
consagrados das letras nacionais,
como Carlos Heitor Cony, Ignácio Loyola Brandão e Moacyr
Scliar. Cony (colunista da Folha e
vencedor dos concursos de 1996 e
1998) disputava o Jabuti com "Romance sem Palavras" e era o favorito, segundo votação popular
realizada num site paulistano da
Internet.
Após a façanha, Braff -até então desconhecido e um pacato
professor de literatura de colégios
do interior paulista- despontou
na mídia e foi parar até na novela
da Globo "Laços de Família" e no
programa do "dublê de David
Letterman no Brasil", Jô Soares.
"É um livro mais de análise psicológica do que de ação", descreve ele. O que chama a atenção no
romance é uma técnica de narrativa usada por Braff para expressar a degradação mental do personagem principal: seu último capítulo -sete páginas- é escrito
sem pontuação. Nem ponto nem
vírgula, muito menos ponto e vírgula. Só o ponto final. "É uma forma de mostrar que Firmino perdeu a razão."
A técnica ficou célebre na literatura mundial no trecho final de
"Ulisses", do escritor irlandês James Joyce (1882-1941) .
Gênese
A cena de nascimento de "Que
Enchente Me Carrega?" é um pôr-do-sol da cidade de Laranjeiras do
Sul, interior do Paraná. Lá, município do pai de Braff, Manoel, ele
avistou certa vez -início da década de 1990- a imagem de uma
casa ameaçada de cair num barranco. "Será que a pessoa que mora naquele lugar dorme tranquila
todas as noites e não tem medo de
ver sua casa desabar? Uma chuva,
uma enchente derrubaria a construção. Foi o que me perguntei na
época."
A obra de Braff parece sempre
ter um apelo visual. Foi assim em
"À Sombra do Cipreste", que partiu da imagem da árvore com formato e significado mitológico especiais presente em sua história
desde a infância. Não é à toa que
tanto o livro de contos como "Que
Enchente..." trazem na capa as
pinturas de cores fortes do pós-impressionista holandês Vincent
van Gogh (1853-1890).
Roseli, mulher e ex-aluna de
Braff, foi testemunha do "dia do
nascimento do livro". Ela era estudante do curso universitário de
letras em São Paulo em que o escritor era o professor. Hoje, ela é a
"revisora especial" de seus textos.
"E é uma crítica ferrenha do que
escrevo. Não é de ficar elogiando
não."
Até os anos de 1980, o casal vivia
na capital paulista. Em 1987, ele se
mudou para a tranquila Serrana
fugindo da violência da cidade
grande. Hoje, leciona em vários
colégios secundários do interior.
Viaja 1.500 km por semana, passando por municípios em sentidos opostos, como Ituverava (106
km a norte de Ribeirão) e Catanduva (146 km a oeste).
As viagens são comuns na vida
deste mestre em teoria literária
pela Universidade São Judas Tadeu. Nascido em Taquara (cerca
de 70 km de Porto Alegre), Braff
se acostumou a peregrinar de cidade em cidade desde pequeno.
Filho de um professor de gramática, passou por sete municípios do
Rio Grande do Sul até se fixar na
capital do Estado aos 14 anos.
Como na imagem vista no interior paranaense, o personagem
principal de "Que Enchente..." vive numa casa próxima a um barranco. Ironicamente, a chegada
de uma indústria de calçados faz
com que a prefeitura local construa uma avenida na área. É essa
via que vai comprometer as estruturas da residência de Firmino,
causando-lhe arruinação.
Paralelamente a isso, o casamento do personagem está se acabando e ele demonstra isso ao leitor contando a história que já
ocorreu. Com a mulher, ele perde
também seus tradicionais e ricos
clientes e passa a viver isolado em
sua casa. "Ele é um homem à antiga. Não permitia que a mulher, Elvira, trabalhasse, por exemplo. Isso causava enormes problemas
conjugais."
No início do enredo, Firmino é
razoavelmente sóbrio. Assim, o
texto de "Que Enchente Me Carrega?" é pontuado, com frases
curtas e objetivas. Só de vez em
quando, as locuções não se completam, mostrando talvez seu estado de embriaguez.
No decorrer da história, o personagem vai perdendo a razão.
Chega a pensar -sem saber nunca a verdade- que matou e enterrou a mulher no quintal de sua
casa. "É o real estado de degradação social que se tornou degradação mental. Na verdade ele tem
dúvidas se enterrou mesmo Elvira
ou se foram seus pertences. Beira
a esquizofrenia."
"Que Enchente Me Carrega?"
foi escrito por Braff entre 1990 e
1992. Já está pronto, portanto, há
oito anos. À época, já morando
em Serrana, uma região vizinha, a
de Franca, começava a sentir a crise de um setor ligado ao personagem Firmino: o calçadista.
As medidas do governo do presidente Fernando Collor de Mello
(1990-1992) refletiu negativamente nas indústrias, causando as primeiras das milhares de demissões
de empregados. "Mas a criação do
Firmino não tem nada a ver com
isso. Na verdade eu simplesmente
queria uma pessoa que vivesse
um dilema como o de sapateiro-artesão."
O escritor também garante que
a confecção do personagem também não tem relação com a região
Sul do país, terra natal de Braff,
igualmente forte produtora de
calçados.
"É simplesmente a história do
artesão que perde para a indústria. Antigamente, você tinha o
seu médico; hoje, tem um plano
de saúde. Antes, um alfaiate levava duas, três semanas para fazer
seu terno (com intervalos em que
você tinha de ir até ele para experimentar a roupa); hoje, você
compra na loja do shopping. É
um processo irreversível e vai ser
assim cada vez mais. Mas o que eu
penso é no lado humano. Como
se sente o alfaiate, o sapateiro nesse processo todo?"
No livro, Firmino desponta discutir o que vem a ser arte. Para ele,
o seu sapato carinhosamente produzido por suas mãos é um objeto
de arte. Questiona se o fato de o
calçado ter uma utilidade anula
sua essência de arte. Diz um trecho: "Quem sabe o que é útil e o
que é inútil? Se o guarda do museu usasse a Mona Lisa para tapar
o buraco de um vidro quebrado
ou se um médico usa uma sinfonia de Mozart na terapia de seus
pacientes, a tela e a música deixam de ser arte?"
Apesar de ter ficado na gaveta
durante quase toda a década de
90, "Que Enchente Me Carrega?"
se manteve quase que no original,
sem grandes mudanças. "Não
mudei quase nada. Só uma palavrinha aqui, outra acolá. Ficou da
mesma forma."
Tempos modernos
O novo romance de Braff entra
numa discussão muito difundida
pelas ciências humanas neste século: a da extinção de funções imposta pelo desenvolvimento do
capitalismo.
Braff discute o lado humano do
sapateiro-artesão que se considera um artista, pois é o sujeito que
"cria" calçados sob encomenda
como se fosse um objeto de arte,
uma escultura grega, um quadro
cubista ou uma música erudita.
Esse debate é bem antigo, remonta ao início do capitalismo,
ou à introdução do chamado capitalismo mercantil (ou primitivo), nos séculos 15 e 16. O sapateiro, ao lado de outras profissões da
época, era justamente o sujeito
que perdia seu espaço para as empresas emergentes. Aqui entra a
questão da divisão do trabalho e
dos conhecimentos e tudo o mais
(leia-se a obra de Karl Marx).
Mas o debate do artesão frente
às novas tecnologias do capitalismo também é bem simbólico e
atual, ainda. Máquinas simplesmente substituem trabalhadores
numa velocidade assustadora.
Na região de Ribeirão, o sujeito
que conhece de perto essa questão
é o bóia-fria da cana-de-açúcar,
que não lê nem vai ler este texto.
Ele está deixando de existir aos
poucos há anos, após a introdução das colheitadeiras nos canaviais. Quantos Firminos tinham
empregos garantidos em todas as
safras passadas e hoje simplesmente não existem mais (o que
eles faziam não era arte, mas
igualmente foram derrotados pela tecnologia)?
Vale o questionamento também para a função do escritor na
sociedade da Internet, do cinema
e da TV. Quem é hoje o sujeito
que escreve romances, contos,
poemas? "A literatura vai ter de
mudar. O romance, por exemplo,
tende a um encontro com a poesia. Como Clarice Lispector já
previa: diminuição do enredo,
com mais elementos de linguagem", responde Braff, referindo-se à escritora brasileira de origem
ucraniana (1920-1977).
Para ele, há dois papéis básicos
do escritor hoje na sociedade. Primeiro, ele expressa o momento
particular, a visão emotiva de expectativas e passado. "Em segundo lugar, (o escritor) tem de criar,
tem de provocar reflexão, tem de
incomodar. Não que dê soluções,
mas que incite o leitor a pensar",
completa.
A Palavra Mágica, a editora que
"descobriu" Braff, promete o lançamento da obra para o final deste
mês. E já conta inclusive com a
possibilidade de ganhar novos
prêmios. "Vamos inscrever sim
"Que Enchente Me Carrega" no Jabuti", afirmou o editor Galeno
Amorim.
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