Ribeirão Preto, Sábado, 19 de junho de 1999

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Um italiano percorre a história de Ribeirão

da Folha Ribeirão

A guerra havia estourado na Itália, quando o garoto Theodoro José Papa, então com 7 anos, desembarcou no porto de Santos.
O jovem imigrante ainda lembra da dureza dos 22 dias a bordo do navio, sem ver a terra, e o percurso de trem pela mata, de mais de dez horas, rumo a uma região que surgia como promissora: Ribeirão Preto.
O percurso é o mesmo por onde, desde 1883, escoava a produção de café das fazendas da região. Historiadores apontam a chegada da estrada de ferro, da antiga Mogiana, como a principal responsável pelo enriquecimento da região.
O caçula da família Papa estranhou o calçamento das ruas da época (1914), a água que vinha de canos e, principalmente, a existência da luz elétrica em toda a cidade.
Lá na Calábria (Itália), na pequena Rizziconi, havia homens que cobravam para transportar a água dos riachos até as casas e a iluminação ainda vinha do fogo. "A cidade era bem menor", afirma.
O irmão mais velho do menino, Rosario Papa, não pôde embarcar com a família porque havia sido convocado para lutar na Primeira Guerra. Ele acabaria morto no ano seguinte, atingido por uma bomba. Ainda hoje, a família guarda suas medalhas.
O pai do garoto (Theodoro Papa) veio antes, em 1910, para "tentar a sorte" e acabou empregado pelo prefeito de Ribeirão Preto na época, Macedo Bitencourt. Era engenheiro agrônomo e durante anos cuidou do Horto Florestal da cidade e de outros projetos paisagísticos, como a reconstrução de avenidas e praças.
Na Itália, era produtor de vinho e, segundo Papa, só decidiu vir para o Brasil depois de perder toda a produção de um ano por causa de um grande terremoto que abalou a Calábria no começo deste século.
Quatro anos depois de vir para o Brasil, mandou dinheiro para a família viajar.
Seu primeiro trabalho importante em Ribeirão Preto foi elaborar a reforma pioneira da praça 15 de Novembro, nome instituído após a Proclamação da República e que hoje, ironicamente, fica em frente ao Theatro Pedro 2º, fundado em 1930.
Ele também criou um arco de árvores ao longo da avenida da Saudade (a exemplo do que existe atualmente na avenida 9 de Julho), já destruído pelo tempo.
A família se enquadra em uma segunda geração de imigrantes, que tinha mão-de-obra especializada e que sobreviveu do dinheiro que circulava por causa das plantações locais.
Segundo historiadores, os italianos representaram cerca de 80% dos trabalhadores que vieram para a região na época do café.
A cafeicultura entrou em declínio no final da década de 30, quando ocorreu a crise na Bolsa de Nova York. Era o início do governo de Getúlio Vargas.
O jovem Papa estudou no 2º Grupo Escolar, atual colégio Fábio Barreto. "Depois, aprendi minha profissão: encanador, serralheiro e funileiro", disse.
Já em 26, com 19 anos, deixou de ser empregado e montou negócio próprio na rua Saldanha Marinho, entre a rua Duque de Caxias e a rua Mariana Junqueira, bem na área central.
O adolescente italiano desistiu dos estudos por não ter dinheiro, mas nem por isso deixou de estudar. Hoje, tem vários livros publicados e é membro da Academia Ribeirão-Pretana de Letras.
Ribeirão da década de 20 tinha 56 automóveis e 25 mil habitantes na cidade, segundo estudo encomendado pelo então prefeito João Rodrigues Guião, no Centenário da Independência (1922), e que ainda é guardado nos arquivos do Instituto de Economia da ACI-RP (Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto).
Na zona rural do município viviam outras 50 mil pessoas, como demonstra o documento.
Sem rádio nem televisão, o jovem ribeirão-pretano se divertia no coreto da praça 15 de Novembro, com as apresentações de bandas, e ao redor de um tanque, já desativado, onde ficavam peixes vermelhos e os amigos se encontravam para conversar.
Era a época dos cassinos, como o Antarctica, do primeiro empresário da noite ribeirão-pretana, Francisco Cassoulet.
Na década de 30, Papa costumava assistir aos filmes mudos que passavam no Teatro Carlos Gomes, que depois seria demolido e, no lugar, surgiria um terminal de ônibus que existe até os dias de hoje.
O comerciante italiano ainda se recorda do Café Pinho, no centro da cidade. "Servia o melhor café do país. Custava um tostão em pé e mais caro sentado, 200 réis", disse.
Na década de 40, o ex-prefeito Joaquim Camillo de Moraes Mattos discursou no casamento do jovem Papa com a brasileira Albertina Vanini Papa, com quem vive há 65 anos e teve três filhos.
Camillo de Mattos, como era mais conhecido, foi o último prefeito da "Era do Café", no final da década de 30, e, segundo o Arquivo Histórico Municipal, tentou organizar resistência contra Getúlio Vargas.
É nessa época que muda o cenário de tranquilidade na cidade. Uma vez, Papa teve de se esconder da polícia dentro de uma barbearia por ter ouvido um discurso de um desconhecido a favor do derrotado Partido Republicano Paulista.
"Isso foi proibido pelo Getúlio e, quando o rapaz levantou e começou a falar, todo mundo saiu correndo com medo da polícia."
Do lado de fora da barbearia ficou o dono do estabelecimento, um italiano, que, desesperado, pedia em sua língua natal que o deixassem entrar para se esconder.
O comerciante se mudou para a avenida Visconde do Rio Branco, de onde viu o país declarar guerra aos italianos e alemães. Do outro lado do hemisfério, primos dele engrossavam as fileiras contra os Aliados (Forças Armadas comandadas por EUA e Reino Unido que incluiu o Brasil). Terminada a Segunda Guerra, depois de sobreviverem à frente russa, eles também viriam tentar a sorte em Ribeirão Preto.
Foi na época do conflito que Papa teve de entregar o único rádio que tinha para as autoridades e ficou proibido de falar em italiano. "Não funcionou bem porque a gente ouvia rádio do mesmo modo, na casa dos amigos."
Ribeirão desse período, depois da crise do café, já tinha diversificado a produção agrícola.
Nos campos se multiplicavam outras culturas, principalmente o algodão, trazendo a região de volta ao cenário nacional.
Em 44, o imigrante italiano se valeu de uma lei recém-promulgada por Getúlio Vargas para ganhar direito a votar. "Isso só era permitido para aqueles que fossem casados com brasileiras, tivessem filhos aqui e propriedades", disse.
O comerciante, então mais maduro, fechou a oficina no centro, tendo feito como último trabalho as instalações do Cine São Jorge, e passou a construir casas.
Apesar de não gostar da política local, Papa fez campanha para o candidato Costábile Romano, na década de 50. "A política em si é bonita, mas existiam muitas brigas entre eles", disse ele.
Ao final dos discursos, sempre que participava, Papa convocava os participantes a fazer uma oração. "Até tentaram me lançar candidato, mas sendo estrangeiro não podia", disse Papa.
Como construtor, o imigrante italiano conseguiu sustentar a família e ainda ergueu a própria casa, que hoje fica no centro.
Em 68, antes da eclosão do programa de álcool no país, Papa se aposentou e passou a escrever e a se envolver em obras assistenciais.
Seis anos antes, ele havia sido indicado para ocupar a cadeira 16 da Academia Ribeirão-Pretana de Letras, no lugar ocupado por Paulo Setúbal. (ALESSANDRO SILVA)



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