São Paulo, domingo, 07 de março de 2010

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O mundo dele era o CRACK

Depois de trocar a maconha pela cocaína e passar quatro anos dependente de crack, jovem paulistano conta como a morte da mãe o ajudou a superar o vício

Marisa Cauduro/Folha Imagem
O encarregado Herminio Marques Neto limpa rua com caminhão-pipa da Prefeitura de Morro Agudo

RACHEL BOTELHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Movido pela curiosidade típica da adolescência, o operador de máquinas Rogério Caffaro, 27, deu seu primeiro trago em um cigarro de maconha aos 15 anos. Aos 17, quando um colega chegou com um papelote de cocaína no lugar do baseado que ele havia encomendado, não hesitou em experimentar a droga. Aos 20 anos, estava vivendo para o crack.
Meses após o primeiro contato com essa droga, Rogério fumava de cinco a dez pedras por dia. Foi internado três vezes -nas primeiras, o tratamento em uma clínica de elite foi custeado pela empresa em que trabalhava; na última, por iniciativa própria, passou 50 dias em uma instituição mantida por evangélicos.
Cerca de um mês depois da última alta, teve mais uma recaída. Foi só com a proximidade da morte da mãe, internada em estado grave na UTI, que Rogério decidiu por um ponto final no uso de drogas. Sozinho.
"Quando eu vi que ela estava entubada depois de uma parada cardiorrespiratória, percebi o que estava fazendo. Se ela se fosse, eu não duraria mais um mês. Naquela hora, tomei a decisão. Saí do hospital e não usei mais", recorda-se.
Sua mãe, Ruth, morreu em dois dias, aos 55 anos de idade.

Sem explicação
Dois anos, sete meses e 25 dias depois de parar, Rogério não tem explicação para sua entrada no universo das drogas. "Sempre fui muito amado, mas fui no embalo e entrei de cabeça", conta. Órfão de pai aos quatro anos, ele e o irmão mais velho foram criados pela mãe, que trabalhava como cuidadora de idosos. Não eram ricos, mas frequentaram escola particular e a mãe "nunca deixou faltar nada em casa".
Um dia, um amigo lhe ofereceu um cigarro de maconha e ele aceitou. "Na primeira vez, não senti nada. Na segunda, 20 dias depois, fiquei bem lesado." Com o tempo, o intervalo entre um cigarro e outro foi diminuindo. "Aí começou a ficar diferente: eu precisava inventar desculpas para fumar. Se ia ter um campeonato de futebol, tinha que fumar para jogar melhor, se ia falar com uma garota, fumava para conversar legal."
A transição para a cocaína foi acidental. "Um ex-colega de escola foi comprar maconha, não tinha, voltou com um papelote de coca. A primeira vez [que usei] foi na rua e em plena luz do dia." A sensação, lembra, foi horrível. "Senti o nariz arder, a garganta amargar. Apesar disso, você tem uma sensação de poder, fica mais para cima. E logo depois dá uma depressão."
Ele começou a recorrer à cocaína diariamente. "Sempre cheirava, mas não me passou pela cabeça [que me tornaria dependente]. Achava que, quando quisesse, pararia."
A passagem para o crack foi no mesmo contexto. "Não tinha uma [droga], fui na outra. Só que fumou [crack] uma vez, já era", diz. Em duas semanas, Rogério, que nunca havia estado em uma boca de tráfico, passou a frequentar favelas para se abastecer. "Eu tinha pavor de ser pego, sempre buscavam para mim. Depois, comecei a comprar de cinco a dez pedras por dia", diz. "Ganhava bem e meu dinheiro era só para isso."
Enquanto usava apenas cocaína, terminou o curso técnico em mecânica, começou a trabalhar e entrou na faculdade de direito. Frequentou até o terceiro ano, mas depois não conseguiu mais acompanhar.
O trabalho na multinacional de autopeças também foi afetado pelo crack. Escalado para o turno da tarde, chegava atrasado porque varava a madrugada fumando. "Eram 4h, 5h quando eu parava. Acordava às 12h e ia trabalhar. Se estiver em casa, você só dá uma parada quando não tem mais nada pra fumar", descreve. "A partir do momento em que conheci o crack, eu não queria mais nada: sair, ir a festas... Não queria ninguém perto de mim, só usar e usar."
A droga o deixava agressivo. "Eu me tornava outra pessoa. Não cheguei a ponto de bater, mas, uma vez, torci o braço da minha namorada."
A primeira internação ocorreu aos 22 anos, à força. Rogério estava trancado em casa, sem tomar banho e sem comer, havia três dias. "Não sei como não morri. Minha mãe e minha tia contataram a empresa onde eu trabalhava e eles providenciaram a internação em uma clínica de reabilitação. Fiquei quase um mês, mas não estava pensando em parar."
Fora da instituição, voltou ao trabalho -e ao crack, 20 dias depois. Passados sete meses, tentou pular a janela do apartamento, no segundo andar, para comprar droga. "Minha mãe não me deixava sair. Eu ia pular e me levaram para o hospital, mas arranquei o soro e saí correndo. A assistente da firma providenciou uma clínica e eu fiquei lá mais 30 dias."
Nessa época, entrou para os Narcóticos Anônimos e foi afastado do trabalho. "Minha mãe me acompanhava ao hospital-dia e eu voltava para casa totalmente retardado, com muito remédio na cabeça. Deu uns 40 dias e eu já tinha voltado ao uso de novo."
Rogério não sabe quando sua mãe percebeu que ele havia se tornado dependente, mas diz que não é possível esconder o vício em crack e que Ruth sempre lutou muito para que o filho se afastasse das drogas. "Ela passava noites em claro tentando impedir que eu usasse. Chegou a trancar a casa para que eu não saísse", conta.
O vício o afastou da família e dos estudos. "Estava largado. Meu mundo era meu quarto. Minha mãe e minha namorada foram as poucas pessoas que não desistiram de mim."
Rogério conta que não suportava mais aquela situação quando soube de uma nova clínica. "Quando acabava de usar, chorava, porque estava muito pesado. Relutei, mas fui à clínica", diz. Ficou 50 dias internado e saiu bem. "Mas o negócio é muito traiçoeiro e eu voltei."
Uma tarde, a mãe sentiu-se mal e foi parar no hospital. Ficou sete dias na UTI e morreu sem ver o filho "limpo". "Demorou para cair a ficha. Ia às reuniões do NA e ao psiquiatra, mas não queria tomar remédio porque temia ficar dependente deles. Já era viciado em Rivotril [um tranquilizante]."
Para ele, o NA foi fundamental. "Em um mês, eu tinha a chave da sala do grupo e coordenava reunião. Isso me deu forças. Mas teve minha força de vontade e o fato de a minha família acreditar em mim. "
O psiquiatra Arthur Guerra, do grupo de estudos de drogas da USP, assente. Para ele, seu paciente conseguiu melhorar de uma dependência "gravíssima" principalmente por vontade própria. "Isso vale para ele e para todos os dependentes."
Rogério não teve crises intensas de abstinência e conta três ocasiões em que ficou balançado. "Entendi que a vontade passa. Não bebo, evito quem usa maconha e quero voltar a estudar. Tenho que tocar minha vida. Não faço mais do que a obrigação em estar limpo."


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