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ANÁLISE
Um caso clássico de "confusão" estatística
CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA
Ter Deus no coração faz bem
à saúde? Uma leitura apressada
de vários estudos recentes nos
Estados Unidos dá a entender
que sim: um deles aponta uma
correlação positiva entre frequência a serviços religiosos e
redução no risco de morte; outro mostra que o risco de hipertensão não apenas cai em praticantes religiosos como é tão
menor quanto maior for a frequência a igrejas, sinagogas e
outros templos.
A aparência de milagre começa a se desfazer quando se
acrescenta a esse rosário de
pesquisas médicas um estudo
concluído também nos Estados
Unidos, em 2006, que avaliou
durante uma década o efeito
das orações feitas por estranhos na intenção de pacientes
que convalesciam de cirurgias
cardíacas.
A pesquisa foi bancada pela
fundação cristã americana
Templeton e atendeu a critérios rigorosos de testes clínicos:
os 1.800 pacientes avaliados foram divididos em grupos de
pessoas que sabiam estar recebendo as orações intercessórias e que não sabiam.
Seus autores não só não viram nenhum efeito estatisticamente discernível da oração sobre a recuperação dos doentes:
ao contrário, as pessoas que sabiam estar recebendo orações
tiveram uma ligeira piora.
Acasos
Os resultados díspares ilustram um caso clássico daquilo
que os epidemiologistas chamam de "confusão", ou um fator que aparentemente tem relação causal com um resultado
qualquer, mas que, na verdade,
só está mascarando outros fatores -esses sim, causais.
Minha avó Aparecida, católica devota e morta em Juiz de
Fora com avançados 93 anos, é
um exemplo de como esse tipo
de confusão pode operar. Ela
não bebia, não fumava e dormia
cedo para poder ir à missa todos os dias às seis da manhã
-religiosamente.
Sua religião trazia no pacote
toda uma rede social, vida saudável, atividades comunitárias
e, por último, mas não menos
importante, caminhadas matinais pelas ladeiras da cidade.
Tivesse sido incluída no estudo americano, minha avó atestaria como a religião diminui os
riscos à saúde. Porém, se a pesquisa focasse não devotos, mas
membros de um clube de escalada, digamos, o efeito seria
provavelmente o mesmo.
Prova desse efeito é o valor
alto, no estudo da hipertensão,
do chamado "p", número mágico que estima a probabilidade
de que o efeito observado seja
casual. Em epidemiologia, valores de "p" aceitáveis são menores que 0,05. Nesse trabalho, o
número é dez vezes mais alto.
Seus autores, dos Centros
Nacionais de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA,
parecem saber disso: "A participação religiosa pode reduzir
os efeitos do estresse no indivíduo ao ajudar na integração social, fornecer apoio social e evitar hábitos pouco saudáveis".
Eles continuam: "Estudos são
necessários para excluir causação reversa (doenças crônicas e
a necessidade de tomar remédios podem induzir mais atenção religiosa)".
Qualquer que seja a relação
entre religião e boa saúde, Deus
não parece ter nada com isso.
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