São Paulo, quinta-feira, 29 de abril de 2010

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ANÁLISE

Um caso clássico de "confusão" estatística

CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

Ter Deus no coração faz bem à saúde? Uma leitura apressada de vários estudos recentes nos Estados Unidos dá a entender que sim: um deles aponta uma correlação positiva entre frequência a serviços religiosos e redução no risco de morte; outro mostra que o risco de hipertensão não apenas cai em praticantes religiosos como é tão menor quanto maior for a frequência a igrejas, sinagogas e outros templos.
A aparência de milagre começa a se desfazer quando se acrescenta a esse rosário de pesquisas médicas um estudo concluído também nos Estados Unidos, em 2006, que avaliou durante uma década o efeito das orações feitas por estranhos na intenção de pacientes que convalesciam de cirurgias cardíacas.
A pesquisa foi bancada pela fundação cristã americana Templeton e atendeu a critérios rigorosos de testes clínicos: os 1.800 pacientes avaliados foram divididos em grupos de pessoas que sabiam estar recebendo as orações intercessórias e que não sabiam.
Seus autores não só não viram nenhum efeito estatisticamente discernível da oração sobre a recuperação dos doentes: ao contrário, as pessoas que sabiam estar recebendo orações tiveram uma ligeira piora.

Acasos
Os resultados díspares ilustram um caso clássico daquilo que os epidemiologistas chamam de "confusão", ou um fator que aparentemente tem relação causal com um resultado qualquer, mas que, na verdade, só está mascarando outros fatores -esses sim, causais.
Minha avó Aparecida, católica devota e morta em Juiz de Fora com avançados 93 anos, é um exemplo de como esse tipo de confusão pode operar. Ela não bebia, não fumava e dormia cedo para poder ir à missa todos os dias às seis da manhã -religiosamente.
Sua religião trazia no pacote toda uma rede social, vida saudável, atividades comunitárias e, por último, mas não menos importante, caminhadas matinais pelas ladeiras da cidade.
Tivesse sido incluída no estudo americano, minha avó atestaria como a religião diminui os riscos à saúde. Porém, se a pesquisa focasse não devotos, mas membros de um clube de escalada, digamos, o efeito seria provavelmente o mesmo.
Prova desse efeito é o valor alto, no estudo da hipertensão, do chamado "p", número mágico que estima a probabilidade de que o efeito observado seja casual. Em epidemiologia, valores de "p" aceitáveis são menores que 0,05. Nesse trabalho, o número é dez vezes mais alto.
Seus autores, dos Centros Nacionais de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, parecem saber disso: "A participação religiosa pode reduzir os efeitos do estresse no indivíduo ao ajudar na integração social, fornecer apoio social e evitar hábitos pouco saudáveis". Eles continuam: "Estudos são necessários para excluir causação reversa (doenças crônicas e a necessidade de tomar remédios podem induzir mais atenção religiosa)".
Qualquer que seja a relação entre religião e boa saúde, Deus não parece ter nada com isso.


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