São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2008

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NO RIO

O fino da bossa

por HELOISA SEIXAS

Um gringo entra na loja de discos Modern Sound, em Copacabana, atrás de algum disco de bossa nova. Enquanto remexe nas gôndolas de CDs, ele -que é um estudioso da grande música brasileira- começa a prestar atenção no trio que está tocando no café da loja, em cima de um palquinho despretensioso, em meio à balbúrdia das pessoas nas mesas e dos garçons que passam de um lado para outro. O som é tão bom que dali a pouco o gringo já largou os CDs que tinha nas mãos e, de olhos rútilos, observa os homens no palco. Até que, ao final de um número, alguém apresenta os músicos e ele ouve o nome de Bebeto Castilho. Bebeto Castilho? O lendário contrabaixista do Tamba Trio? Não pode ser. Vai até um dos vendedores da loja e, num português arranhado, informa-se. O vendedor confirma, é Bebeto, sim. O gringo fica boquiaberto. Um de seus heróis está ali na sua frente. E o mais incrível: ele o ouve sem ter de pagar nada por isso.

A história é hipotética, mas pode muito bem já ter acontecido. Quando não passava de uma lojinha na rua Barata Ribeiro (abriu em 1966), a Modern Sound já era freqüentada por músicos e pesquisadores por ter, como tem até hoje, um acervo de discos impressionante. Mas, depois de sua expansão, tornou-se palco de algumas das noites mais memoráveis da música brasileira. E, sempre assim, de forma democrática: qualquer um que passe por lá pode espiar os shows, de graça (salvo algumas noites de lançamentos muito especiais). Porque, como o bistrô Allegro funciona num espaço aberto dentro da loja, vale a velha máxima: o ar é livre.

A Modern Sound tem uma programação musical heterogênea, com shows de samba, choro, rock, música clássica e tudo mais, mas a bossa nova é, junto com o jazz, sua especialidade. E, por aquele palco, que fica quase no mesmo nível das mesas, já passaram vários monstros sagrados da bossa, capazes de deixar de cabelo em pé o gringo da história. Nomes como Carlinhos Lyra, Roberto Menescal, Billy Blanco, João Donato, Wanda Sá, Marcos Valle, Durval Ferreira, Pery Ribeiro, Doris Monteiro, Os Cariocas e muitos mais.

Um desses shows até hoje é relembrado pelos freqüentadores do bistrô: o do compositor e violonista Durval Ferreira. Autor de dois clássicos do samba-jazz -"Batida Diferente" e "Estamos aí"- Durval lançou um disco na Modern Sound e todos os amigos apareceram. E todos queriam tocar. Como só havia um piano, os pianistas se revezavam no palco -entre eles Osmar Milito, Antonio Perna Fróes, João Carlos Coutinho, Alberto Chimelli. Já os demais músicos (por exemplo, os que tocavam instrumentos de sopro), subiam e iam ficando. Ao fim do show, havia quase 30 pessoas no palco, entre cantores (Leny Andrade, Doris Monteiro, Orlandivo) e músicos (só saxofonistas eram cinco ao mesmo tempo). Apesar daquele pé-direito de 20 m de altura (a Modern Sound ocupa hoje o espaço onde foi o cinema Bruni Copacabana), as paredes tremeram e o prédio quase veio abaixo.

Além dos artistas que fazem seus lançamentos no bistrô Allegro, há também os habitués da casa, que muitas vezes estão numa das mesas com amigos e de repente são chamados ao palco para dar uma "canja". É o caso de outro grande saxofonista, Aurino Ferreira, e da cantora Leny Andrade, que quando pega o microfone não quer mais ?largar (e nem o público deixa).

Certa vez, num fim de tarde,? Juarez Araújo, que estava se apresentando (fabuloso saxofonista, ele tocou na loja até morrer, em 2003), viu Paulo Moura numa das mesas e o chamou para uma dessas canjas. Paulo Moura foi. E então se deu a mágica. Sem nenhum ensaio, os dois -Juarez no sax tenor e no clarinete, Paulo Moura no sax soprano- se entenderam à perfeição, fazendo uma performance que levou muita gente às lágrimas. Pena que nada foi gravado. Os shows lá são assim, como obras de arte perecíveis, como esculturas de gelo: só para quem tem a sorte de estar na loja na hora certa. Depois, é como diz a música de Carlinhos Lyra e Ronaldo Bôscoli: "Brinca no ar, um resto de canção..."

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