São Paulo, domingo, 25 de outubro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FINA

Um olhar sensível sobre o mundo da jogadora Marta Vieira da Silva

por MARTA GÓES

CHUTEIRA DOURADA

Da bola feita com uma maçaroca de sacos plásticos ao título de melhor jogadora do mundo, marta DRIBLOU um sem fim de OBSTáculos e crava: "mulher sabe jogar isso aqui"

Longe dos gramados, Marta Vieira da Silva, 23, a melhor jogadora de futebol do planeta em 2006, 2007 e 2008, dá autógrafos, posa docilmente para fotos e não desperdiça sorrisos com jornalistas. Move-se depressa pelo saguão do hotel Parque Balneário, em Santos. Emprestada por três meses ao Santos F.C. pelo time americano Los Angeles Sol, hospedou-se ali até se mudar para o apartamento que o clube alugou para ela. Franzina, 1,62 m, Marta é uma estrela internacional. Com jogadas brilhantes e velozes, ajudou a consagrar a seleção feminina brasileira e desferiu um pontapé certeiro contra o sarcasmo que o país do futebol dedicava a suas jogadoras.

A presença de Marta agitou Santos –a cidade e o clube. Ao descobrir que é Marta a moça de agasalho azul que recebe um Renault preto das mãos do manobrista, os transeuntes param e cochicham, sorridentes, mas ela ignora o zum-zum-zum. Durante o treino no Centro Técnico Meninos da Vila, numa tarde de outubro, a plateia desafiava um segurança obstinado em afugentar do campo as crianças da favela de Sabuó, ali do lado.
A chegada de Marta, segundo o técnico Kleyton Lima, o mesmo da seleção brasileira, não chegou a alvoroçar uma equipe que tem oito medalhistas olímpicas. Mas inflou o público, atiçou o interesse dos patrocinadores (fecharam com o time o banco BMG, a COPAGÁS, a Lupo e a Universidade Santa Cecília) e elevou o teto de remuneração das jogadoras. O administrador de empresas Guto Assumpção, diretor do Departamento de Futebol Feminino do Santos, esquiva-se de confirmar o salário de Marta que circulou pela imprensa –R$ 150 mil–, mas garante: "Qualquer que tenha sido o investimento do clube, ele já se pagou".

DOR DE CABEÇA DA FAMÍLIA
Ainda é um mundo modesto, se comparado ao do futebol masculino, em que um craque como Ronaldo pode ganhar R$ 500 mil mensais, mas tem avançado muito. Um decreto-lei de 1941 proibia o futebol feminino, sob a alegação de que o corpo da mulher "não era adequado para isso". Em 1980, a proibição caiu, mas a questão do corpo das atletas ainda gerou confusões constrangedoras –em 2003, quando a seleção feminina conquistou uma medalha de ouro, um diretor da CBF manifestou seu desagrado: as jogadoras, segundo ele, eram "feias". Até hoje um esporte amador, a modalidade conquistou a admiração de boleiros e comentaristas, que finalmente enxergaram a beleza do jogo –vêem nele uma reserva de futebol-poesia. "Soa para nós como a epifania de um futebol antigo e redivivo", descreveu o professor e ensaísta José Miguel Wisnik, no livro "Veneno Remédio" (Companhia das Letras). "Virou orgulho nacional", diz Milly Lacombe, da Record News.

Marta começou a jogar aos seis anos, na rua, com os irmãos e os primos, em Dois Riachos, cidade de 11 mil habitantes no sertão alagoano. O gol eram duas pedras no chão e a bola, às vezes, uma maçaroca de sacos plásticos. Ter uma menina craque era dor de cabeça para a família, motivo de resmungos da avó, dos tios, do dono da venda. "Todos me perguntavam: 'Vai deixar sua filha jogando no meio de menino macho?'", recorda a mãe de Marta, Terezinha, descansando num sofá do hotel de Santos, onde passou alguns dias.

Terezinha criou os filhos só, trabalhando como zeladora da Prefeitura e empregada doméstica –o marido saiu de casa quando Marta completou um mês. O filho mais velho, José, então com dez anos, arranjou emprego numa venda. Marta só chegou à escola com nove anos. "Eu queria ir, mas minha mãe não tinha condição de comprar roupa, sapato e material para todo mundo", explica.

Os garotos da escola relutaram em aceitá-la no time que participava dos campeonatos de futsal da região. Cederam depois de muitos gols e de um troféu de melhor artilheira. "Precisei dar umas porradas", diz, brincalhona. Foi o coordenador desses jogos, um carioca que viveu em Alagoas, quem levou Marta para uma peneira no Vasco da Gama, em 2000. "Eu perguntava toda hora quando ia ser o teste, e ele desconversava", ela recorda. "Um belo dia, falou: 'é hoje'". Lembra que ficou nervosa na hora do teste, e que as outras meninas, "mais malandrinhas", riram do seu jeito acanhado –"'Parece um bichinho do mato', elas falaram". Depois, os homens do clube vieram lhe dizer que precisava assinar os papéis e ela compreendeu que fora aprovada. No dia seguinte, começou a treinar e não voltou mais para a casa da mãe. Tinha 14 anos, estava na quinta série primária, e sua vida profissional estava começando.

O PRIMEIRO SALTO ALTO
"Se tivesse ficado em Dois Riachos, ia casar, ter filhos e passar o resto da vida lá", avalia Marta. "O futebol era a única maneira de ajudar minha mãe e ganhar algum dinheiro." A irmã, Ângela, que gostava de Michael Jackson e cantava músicas inteiras sem saber uma palavra de inglês, mora perto de Maceió com o marido e os dois filhos, numa casa que Marta ajudou a comprar. José, o irmão mais velho, trabalha com uma camionete que ganhou de Marta. "Leva passageiros, leva carga, pessoas doentes e até alguém que morre", explica Terezinha. Valdir é pedreiro.

Marta vive sob os holofotes, em cidades distantes, em contato com atletas do mundo inteiro. De 2004 a 2008, jogou na Suécia, e, em 2008, foi para o time do Los Angeles Sol, ao lado de atletas dos Estados Unidos, do Canadá, da França, da Suécia e da China. Mora num apartamento em Redondo Beach e frequenta a casa que outras jogadoras dividem em Beverly Hills. "De vez em quando, a gente faz um churrasco", conta. Marta não gosta de morar sozinha, sente falta de ter com quem falar, e concluiu que namorar é complicado para as mulheres jogadoras. "Vivo mudando de cidade, de país.

Os homens podem bancar e sempre arranjam mulheres dispostas a acompanhá-los, mas quem é que topa ficar andando atrás de uma jogadora de futebol?" Seu grande amigo nos Estados Unidos é um americano, assessor de imprensa do clube.

Para receber o prêmio da FIFA de melhor do mundo em 2006, na Suíça, cedeu aos apelos da madrinha, Risolândia Lira Duarte, e calçou pela primeira vez sandálias de salto alto, em vez dos tênis e chuteiras número 36. Riso se encarrega de muitas tarefas para a afilhada, como levá-la ao cabeleireiro Agnaldo, de Maceió, para fazer escova progressiva, até despachar para Dois Riachos as malas de chuteiras que Marta consegue na Puma, sua patrocinadora, para a criançada local.

No domingo, 18, diante de um público inédito de 14.138 pagantes, na Vila Belmiro, ela ajudou o Santos a vencer o paraguaio Universidad Autónoma por 9 X 0 e conquistar a Taça Libertadores da América de Futebol Feminino. Diante das câmeras, agradeceu à mãe, ao público e à nação santista, e lembrou a todos: "Mulher sabe jogar isso aqui." Estava chorando. Mesmo para uma campeã mundial, era um grande momento, que dirá para uma garota de Dois Riachos no país do futebol.

Texto Anterior: SÉRGIO DÁVILA: Atração fatal da mídia americana por notícias feitas de ar quente
Próximo Texto: FINO: Em primeira mão, o livro de Benjamin Moser sobre Clarice Lispector
Índice



Clique aqui Para deixar comentários e sugestões Para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É Proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou imPresso, sem autorização escrita da Folhapress.