São Paulo, domingo, 25 de outubro de 2009

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FINO

Em primeira mão, o livro de Benjamin Moser sobre Clarice Lispector, por Rafael Cariello

por RAFAEL CARIELLO

BENJAMIN
E A ESFINGE

Biógrafo americano de Clarice Lispector foi aprender português e descobriu o misterioso universo da escritora, que ele decifra agora em livro

Chegou a "hora da estrela" de Clarice Lispector no cenário literário internacional. Desde agosto, páginas das principais revistas e jornais em língua inglesa são dedicadas a essa "esfinge brasileira".

É com esse epíteto que ela é descrita, de toda forma, no texto sobre sua obra publicado na prestigiosa "New York Review of Books", no final de setembro. Outros artigos davam conta da sua existência, semanas antes ou depois, na "Economist", no "Times" londrino e no de Nova York, em revistas de moda, como a "Vogue", ou de esquerda, como "The Nation".

Os autores quase sempre associam a estranheza da obra de Clarice –e sua obscuridade– à singularidade de seu país e de sua língua, o português. "Sua invisibilidade pode também ser um efeito da geografia", escreveu o "Times" de Londres.

O responsável por torná-la o equivalente literário do respeito e do prestígio internacional que o Brasil vem conhecendo recentemente é Benjamin Moser, 33, autor da narrativa de não-ficção que motivou esse alvoroço todo, "Why This World - A Biography of Clarice Lispector". A editora Cosac Naify prepara o lançamento brasileiro da obra para novembro. Terá como título, por aqui, "Clarice, uma Biografia".

LEGIÃO ESTRANGEIRA
A condição de "estranha" e "estrangeira", atribuída agora à autora pela imprensa internacional, foi, na realidade, uma condição de toda a sua vida, defende Moser. Como Macabéa, a retirante nordestina que protagoniza "A Hora da Estrela", Clarice era, ela também, não só imigrante, mas "miserável".

Sua miséria era uma herança da condição judaica, de um fato crucial ocorrido com sua mãe ainda na Ucrânia e revelado na obra de Moser.

Durante a Primeira Guerra Mundial e logo após a Revolução Russa, diz o jornalista, soldados de diversos Exércitos saquearam e aterrorizaram os judeus na remota região rural onde vivia a família Lispector.

Uma tática constante de humilhação dessas populações era o estupro de mulheres. Mania Krimgold Lispector, mãe da escritora, foi atacada em 1919. Contraiu sífilis.Uma antiga crença local atribuía à gravidez um poder de cura sobre a doença. Clarice foi concebida –e nasceu em 1920– com essa missão. A culpa de não ter servido ao propósito que levou seus pais a desejarem seu nascimento nunca a abandonou, diz Moser.

"Ela sente essa culpa. Ela fala disso", afirma o escritor. "A Clarice é brasileira, claro, mas, mesmo com toda a miséria que o Brasil tem, há uma outra miséria que ela experimenta, e que é distinta; é uma miséria judaica, estrangeira, que acho que foi pouco compreendida."

Esse sentimento foi uma espécie de força-motriz da produção literária de Clarice, segundo o biógrafo. Ele relaciona a principal marca dos textos da autora –um constante questionamento metafísico– a esse evento fundador.

A PAIXÃO SEGUNDO BENJAMIN
Como Clarice, Benjamin Moser, o seu jovem e bem-sucedido biógrafo, integrante dos principais círculos literários e intelectuais de Nova York, também tem origem judaica, embora apenas paterna. A mãe de seu pai é de uma família que chegou ao Estado do Texas, nos EUA, ainda no século 19. O pai de seu pai, por sua vez, só deixou a Alemanha natal três semanas antes de a Segunda Guerra Mundial eclodir.

De certa forma, o interesse de Moser por línguas estrangeiras, que afinal o levaria a estudar português e descobrir Clarice Lispector, é também um "efeito da geografia".

"Sou do Sul do Texas, da região da fronteira, onde aprendi espanhol. Nasci em Houston. Lá é um pouco como no Brasil –também tínhamos empregadas domésticas, que são quase sempre de fala hispânica. Quando menino, ficava muito em casa com aquelas mulheres, mexicanas, salvadorenhas. O espanhol nunca foi uma língua completamente estrangeira para mim."

A família judaica de sua avó paterna, Elizabeth, sempre manteve alguma ligação com a Europa, conta o escritor. "Ela achava uma falta de civilização total não saber francês." Daí que tenha incentivado o neto a passar dois anos, enquanto cursava o ensino médio, na França, e a nova língua tenha se tornado tão natural para ele quanto o inglês.

Na Universidade Brown, onde se formou em história, Moser tentou, em vão, aprender chinês. Com muita dificuldade para começar do zero numa língua completamente diferente das que já conhecia, buscou uma alternativa. "O único curso que ainda aceitava inscrições era o de português. Sem saber nada sobre o Brasil ou sobre Portugal, eu me inscrevi."

A revelação de ler pela primeira vez Clarice veio só no terceiro semestre, quando "A Hora da Estrela" foi incluído entre as obras de leitura obrigatória. "Foi uma paixão. Ainda me lembro do início do livro, exatamente como alguém se lembra da primeira vez em que viu seu namorado ou sua namorada, sentado do outro lado do restaurante."

Ainda na faculdade, aos 19 anos, surgiu a oportunidade de vir morar temporariamente no Brasil, enquanto cursava um semestre acadêmico na PUC do Rio. Mas, dessa vez, a experiência passou longe de um amor à primeira vista.

UM SOPRO DE VIDA
"Não gostei da cidade. Era muito sozinho, não tinha amigos. Da primeira vez, francamente, nem gostei do Brasil. Eu era infeliz, então não gostei."

Apesar da tristeza, foi nessa estada que o escritor teve o seu segundo contato com a obra de Clarice Lispector.

"Fiz uma viagem de ônibus do Rio a Buenos Aires, depois para o Paraguai e de volta para o Rio. Em Florianópolis, no caminho de ida, comprei o livro 'A Paixão Segundo G.H.'. Não me lembro de nada do Rio Grande do Sul, do Uruguai, da Argentina. Só me lembro da Clarice, e da barata."

A barata. Na ânsia de se fundir com um mundo que não compreende, a personagem principal do romance morde, e come, uma barata.

"Não sei quanto a você, mas eu jamais vou me esquecer do momento em que aquela mulher morde o inseto. Esse desejo de se juntar ao mundo é tão importante, que ela vai além da repulsa contida nesse gesto", ele explica.

A paixão por Clarice Lispector só começou a se tornar um livro anos depois. Nesse meio tempo, Moser se formou e trabalhou em duas das mais importantes editoras de língua inglesa, em Nova York e em Londres.
Há alguns anos, para poder morar com seu namorado de longa data, holandês, Benjamin Moser deixou o trabalho editorial e se mudou para a cidade de Utrecht, naquele país. Passou a escrever para a mídia americana e pôde, finalmente, dedicar-se ao projeto do livro.

A VIA-CRÚCIS DO CORPO
A forte ênfase que Moser dá à condição judaica de Clarice não passou sem questionamentos. A revista inglesa "The Economist" afirmou que o biógrafo pode ter desconsiderado que a condição de uma família judaica talvez fosse diferente no Brasil, dada a "tradição de mistura racial e cultural" no país, se comparada à história de outros judeus na Europa no século 20.

Outra pergunta que se pode fazer a Moser tem a ver com o texto de Clarice, e seus questionamentos metafísicos, que ele associa à herança judaica e à história trágica de sua mãe. Afinal, não seria o questionamento sobre a falta de sentido da existência uma capacidade universal?

A resposta de Moser cita um traço específico do misticismo judaico, sua relação com a escrita, e lembra que essa característica aparece recorrentemente nos textos da escritora.

"Os grandes místicos cristãos chegam até Deus pela oração, pelo ato de rezar. Para os judeus, tradicionalmente, a experiência mística se dá sempre por meio da escrita, da palavra escrita, o que é uma diferença fundamental", ele diz.

"Os judeus são místicos escritores. Não existe místico judeu que não escreva livros. Ao escrever, Deus aparece porque, em hebraico, não é apenas a palavra de Deus que é sagrada, o próprio alfabeto é sagrado. A sintaxe da Clarice às vezes é muito barroca, complicada de ler. Mas é assim porque ela está tentando criar um mundo pela palavra, e salvar o mundo pela palavra."

BOX

Trechos selecionados de "clarice, uma biografia"

Clarice foi chamada de alienada, cerebral, 'intimista' e tediosa por críticos comunistas linha-dura. Só reagia quando ofendida pela estúpida acusação de que era estrangeira. "Sempre se indignou diante do fato de que havia quem relativizasse sua condição de brasileira", escreveu sua amiga mais próxima. Nascera na Rússia, é certo, mas aqui chegara aos dois meses de idade. Queria-se brasileira sob todos os aspectos."Eu, enfim, sou brasileira", ela declarou, "pronto e pronto."

"Clarice Lispector" já chegou a ser considerado um pseudônimo, e seu nome original só foi conhecido depois da sua morte. Onde exatamente ela nasceu e quantos anos tinha também eram pontos pouco claros. Sua nacionalidade era questionada, e a identidade de sua língua nativa era obscura. Uma autoridade atestará que era de direita, e outra, que era comunista. Uma insistirá que era uma católica devota, embora na verdade fosse judia. Correram às vezes rumores infundados de que seria lésbica, ainda que a certa altura os rumores fossem de que, na verdade, ela seria um homem.
 
Clarice Lispector não pôde ser enterrada no dia seguinte, o dia de seu aniversário de 57 anos, porque caiu no shabat. Em 11 de dezembro de 1977, no Cemitério Israelita do Caju, não muito longe do porto onde Macabéa passava suas raras horas vagas, Clarice Lispector foi sepultada de acordo com o ritual ortodoxo. Quatro mulheres da sociedade funerária, a Chevra Kadisha, limparam seu corpo por dentro e por fora, envolveram-no num lençol de linho branco, pousaram sua cabeça num travesseiro cheio de terra e a cravaram dentro de um caixão simples de madeira. Foram lidos o Salmo 91, a oração fúnebre "El malei rahamim" e o Kadish dos enterros. Não houve discursos por parte dos presentes. Três pazadas de terra foram lançadas sobre o caixão enquanto soavam as palavras do Gênesis: "Da terra viestes e à terra voltarás". Na lápide, gravado em hebraico, o nome oculto: Chaya bat Pinkhas. Chaya, filha de Pinkhas.

Tradução da edição nacional: José Geraldo Couto

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