São Paulo, domingo, 28 de março de 2010

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FINO

A polidez e a rigidez de João Havelange

por ALEXANDRE HERCHCOVITCH

O HOMEM EFETIVO

Aos 94 anos, João Havelange não bebe, come pouco, nada muito e diz ter se acostumado "a não sentir nem frio e nem calor"

Além da idade, qualquer algarismo ligado a João Havelange é superlativo. Prestes a completar 94 anos em maio, o homem que comandou a FIFA, a Confederação Brasileira de Desportos e a Viação Cometa (sim, foram 62 anos à frente da empresa de ônibus) diz ter mais de mil condecorações guardadas em suas gavetas: "Fora as 400 placas e medalhas que ganhei pelo tempo em que fiz desporto."
Em seu escritório de paredes escuras, num prédio comercial no centro do Rio de Janeiro, Havelange guarda também parte das milhares de cartas que recebeu durante os 24 anos em que presidiu a entidade máxima do futebol mundial. Parte delas vinha de peças-chave da diplomacia, como o chanceler americano Henry Kissinger ou o papa João Paulo 2º. Outra, de figuras sem notoriedade, como o aposentado brasileiro Heber Trinta Filho, um estudioso do futebol que, mesmo sem nunca ter conhecido, Havelange fazia questão de cumprimentar em missivas longas e pessoais, agradecendo os elogios ("Seus conceitos sobre minha pessoa muito me lisonjearam") e lamentando, quando necessário, o atraso ("Somente hoje respondo em razão de haver estado ausente do Brasil por mais de 90 dias"). As correspondências –escritas do próprio punho para depois serem digitadas pela secretária– eram concebidas, em grande parte, durante as mais de 27 mil horas, ou três anos inteiros, em que o dirigente passou no ar, para visitar os 186 países filiados à FIFA em seu mandato como presidente executivo (de 1974 a 1998).
Hoje, ocupando a presidência de honra da entidade, Havelange viaja menos, mas carrega, como herança da vida nômade, o hábito de morar em um apart-hotel –segundo ele, por insistência da mulher, Anna Maria: "Vivíamos em um apartamento em São Conrado, que ficou grande após o falecimento de minha sogra." A mudança, à primeira vista, desagradou-lhe: "Já fazia tempo que eu me hospedava por meses seguidos em um hotel, em Zurique (cidade-sede da FIFA). Falei para Anna Maria: 'Você vai me fazer passar o resto da vida em um quarto desses'." Acabou cedendo, seduzido por uma piscina –a do Country Club– a um atravessar de ruas do edifício. É lá que, todo dia, às 6h, Havelange percorre 1200 metros, nado livre.
A natação esteve presente à vida do dirigente desde a infância. Aos 20 anos, participou, como atleta, da delegação brasileira enviada às Olimpíadas de Berlim. Aos 26, venceu a Travessia de São Paulo a Nado, disputada no então límpido rio Tietê. Para manter o corpo de 1,80 m em forma, Havelange estende o rigor físico à alimentação, que alterna entre peixe e carne grelhados, e arroz: "Tomo muito cuidado. Quando era atleta, meu peso era 85 kg. Hoje, tenho 89 kg."
Deferente ("Os senhores me perdoem o escritório vazio, que vou me mudar no fim do mês"), rígido ("Procurei sempre me disciplinar para manter a dignidade do cargo") e dono de um fraseado fino e protocolar ("De terno estava, e de terno fiquei"), Havelange só abandonou a escala superlativa ao anunciar o tempo de entrevista, após os cumprimentos. Sentado na cabeceira da mesa, diante de uma cópia de um retrato seu pintado pelo equatoriano Oswaldo Guayasamín, decretou: "São 16h. Os senhores têm até as 16h50 para terminar."

Por que o senhor, no auge do poder, dedicava parte do tempo a responder cartas de pessoas que não conhecia?
Se alguém me escreve, deve ser por uma razão. O mínimo que posso fazer é demonstrar meu respeito com essa pessoa, e assim sempre fiz. Eu quero lhe dizer que quando estive na CBD e na FIFA, por ano eu fazia mais ou menos 6.000 mil cartas, escrevessem de onde escrevessem, fossem pessoas do esporte ou não. Para o senhor ter uma ideia, a cada ano no Natal eu normalmente envio mais ou menos 2.000 cartas-resposta. Mas não é aquela carta pronta, protocolar. Eu faço um texto para cada pessoa e assino, para demonstrar o respeito. E não é batido à maquina. É à mão. Alguns eu sensibilizo, outros ficam surpresos e outros, agradecidos.

Isso lhe foi transmitido do berço?
Desde menino meu pai e minha mãe tinham uma atenção muito grande com os filhos. Éramos três. Lamentavelmente, estão todos falecidos. Tanto os meus pais quanto meus irmãos. Sempre recebemos uma educação rígida, e procurei manter esse principio de respeito.

E essa rigidez lhe foi importante no exercício do poder?
Sim. Procurei sempre me disciplinar e me colocar dentro da responsabilidade que eu tinha. Era uma forma de manter o respeito e a dignidade do cargo. Conto-lhe uma história. Na abertura da Copa de 1994, em Chicago, fazia um calor imenso. Na tribuna estávamos o Clinton, o Kissinger –perdão, o Helmut Kohl, chanceler alemão– e o presidente da Bolívia, porque o jogo era entre Alemanha e Bolívia. Todos tiraram os paletós, arregaçaram as mangas. Eu estava de terno, e de terno fiquei. Quando veio o "half-time", uma pessoa me perguntou: "O senhor não está com calor, presidente?" Ao que respondi: "Me acostumei a não sentir nem frio e nem calor."

O senhor já perdeu a compostura?
Não. Primeiro por educação, segundo, por princípio. O senhor pode ficar no pior estado, mas deve controlar os sentidos em função do respeito que tem que impor. Nos 24 anos em que fiquei na FIFA, cada vez que havia um congresso ou uma reunião do executivo, oferecia-se, na véspera, um jantar. Eu mandava dizer que o jantar começava às 20h, e que às 22h, houvesse terminado ou não, eu me levantaria. Eu não bebia, e comia estritamente o necessário. O principal não é somente estar à mesa de maneira educada, mas se policiar para, no dia seguinte, estar apto a presidir a reunião, ouvindo a todos e dirigindo para chegar a resultados.

O senhor não bebe?
Normalmente não bebo. Se eu for à sua casa e o senhor me der um copo de vinho, não vou dizer que não vou beber. Mas normalmente não bebo. E nunca fumei na minha vida.

Nem charuto?
Muito menos. Só de olhar já me assusto.

O senhor tem telefone celular?
Não tenho telefone celular. Assim, mantenho a tranquilidade. Se o senhor quiser falar comigo, ligue para o meu secretário na Europa, que ele tem um celular. Ele vai lhe atender, o senhor diz o que quer, e ele me telefona. Ele fala inglês, francês, espanhol, alemão, português e italiano. Portanto, está pronto a lhe atender.

Uma única pergunta sobre futebol. O senhor conheceu todos os presidentes brasileiros desde Getúlio Vargas. Deles, qual entendia mais de bola?
Indiscutivelmente o Jango. Ele jogou no Internacional de Porto Alegre, se não me falha a memória, mas teve uma lesão no joelho, e acabou parando. Eu me recordo que, em 1962, antes da Copa do Chile, recebi um telefonema do Jango, convocando-me ao Palácio das Laranjeiras, onde estava. Eu fui, e ele disse: "Havelange, vamos ter a Copa do Mundo. Estás com seu time aí. O meu time é esse", e me deu um pedaço de papel. Respondi: "Vossa Excelência em vez de ser o presidente da República, deveria ser o técnico da Seleção." Ele riu –era mais moço do que eu, se vivo estivesse, teria hoje 92 anos– mas em seguida, avisei: "Respeito vossa indicação, presidente, pelo conhecimento que tens, mas tenho que respeitar o técnico." Não trabalho com política. Meu senso de política é só um: no dia das eleições, vou à urna, deposito o meu voto e nada mais. Poderia ter parado de votar, mas continuo, porque quem não vota não tem o direito de reclamar.

O senhor é um homem romântico?
Não muito. Respeito o romantismo, respeito as pessoas que se lançam nesse sentido, mas sou mais efetivo das coisas como elas se apresentam.

E como é para a sua mulher conviver com um homem mais efetivo do que romântico?
Parece estar bem, porque estou casado há 63 anos. É algo que não se fabrica mais hoje. Não devo ser dos piores.

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