São Paulo, domingo, 28 de março de 2010

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GASTRONOMIA

Será -como dizia Mário de Andrade- que os pratos do Norte são mais delicados?

por MILTON HATOUM, de Manaus

RAIZ FORTE

Escritor amazonense visita a cozinha da chef Maria do Céu e fica sem fala

"Almoça-se pelo Brasil, janta-se no Amazonas." Mário de Andrade (1893-1945)

Quem gosta de cozinhar e de comer bem devia ler "Tacacá com Tucupi", uma crônica deliciosa em que Mário de Andrade traça um panorama das iguarias do país de Macunaíma.
"De modo grosseiro", escreve Mário, "pode-se dizer que há uma ascensão geográfica quanto ao refinamento e à delicadeza da culinária nacional. À medida que avançamos para o Norte, mais os pratos se tornam delicados."
Recordei essa crônica quando Serafina me convidou para entrevistar a chef Maria do Céu de Athayde. Nós nos encontramos em Manaus, no Centro de Gastronomia da Amazônia, da Rede Amazônica de Televisão. Desde 2003, Maria do Céu dirige o Centro, onde dá aulas de culinária da região. Mas, antes de se lançar aos pratos clássicos ou sofisticados, ela ensina o que há de mais básico na cozinha: do feijão com arroz aos temperos mais simples. Mais do que isso, ela relaciona a forte tradição indígena com a arte de cozinhar.
"Aprendi muita coisa lendo livros de viajantes, observando a comida dos índios e ribeirinhos, os hábitos da gente desta terra", ela disse.
Um desses livros é um clássico da literatura colonial: "Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas", do jesuíta João Daniel. Escrito entre 1757 e 1776, é um dos relatos mais impressionantes sobre a região, e nele não faltam referências a modos de preparar peixes, quelônios, carne de caça. Mas muito antes de compulsar os relatos de viajantes e missionários, Maria do Céu já se interessava pela culinária, uma arte que herdou dos pais.
Ela conta que, às quintas-feiras e aos domingos, o pai a levava ao Mercado Municipal para comprar peixe e tartaruga. Pai e filha acordavam às 4h, saíam da casa na rua Emilio Moreira e caminhavam até o mercado.
"Andávamos na escuridão, no sereno da madrugada", lembra Maria do Céu. "O único ruído da cidade era o motor das Kombis que transportavam os frequentadores do mercado, mas meu pai preferia ir a pé."
O mercado era uma espécie de palco gastronômico. O pai de Maria do Céu gostava de tucunaré, pescada, acará-açu. Esses peixes de escamas ficavam separados dos peixes lisos (de couro), que os amazonenses não apreciavam porque eram muito reimosos. Uma lenda supersticiosa dizia que esses peixes provocavam doença de pele. Ela ficava fascinada com o desenho rajado e brilhoso do surubim, com as feições pré-históricas do acari. Para surpresa de seu pai, ela teimou em preparar um acari na festa de aniversário de dez anos. Não foi apenas um arroubo de cozinheira precoce, e, sim, ,o começo de uma carreira que continuou em Belém, onde viveu vários anos com o marido paraense.
Em Belém, Maria do Céu superou de vez o preconceito a peixes lisos, experimentou o pato no tucupi, a maniçoba, a casquinha de caranguejo, conheceu as dezenas de ervas e aromas do Ver-o-Peso e percebeu que o jambu é um dos mais poderosos ingredientes da culinária do Norte.

ILUMINAÇÃO
Impecavelmente limpa, a cozinha do Centro de Gastronomia da Amazônia foi montada com equipamentos de última geração. Seus três assistentes –Calib, Alex e Joselita– seguem à risca os ensinamentos da chef. Eles ajudaram Maria do Céu a preparar o risoto de tacacá, a costela de tambaqui e a farofa d’água que saboreei sem pressa. Esses quitutes, regados com gotas de pimenta murupi, deixaram-me sem fala.
"Cozinhar é surpreender", disse Maria do Céu. "Há muita invencionice por aí, mas não criação. Criar um prato leva tempo, às vezes a experiência dura seis meses; mas há pratos que surgem num estalo, como se fosse uma iluminação."
A farofa d’água, memória de sua infância, é preparada com água, coentro, cebolinha, tomate e cheiro verde. A costela de tambaqui assada é um dos grandes clássicos da culinária amazonense, mas é preciso saber escolher o peixe, o ponto para assá-lo deve ser exato, e o tempero, mínimo, sem extravagância.
O tacacá não é uma unanimidade nacional. Mário de Andrade, com uma pitada de exagero, chamou-o de trágico, talvez por causa da mistura inusitada de goma de tapioca com a acidez do tucupi e o sabor singular do jambu. Eu diria que o tacacá é afrodisíaco: um caldo quente em que as folhas de jambu anestesiam a língua, para, em seguida, liberá-la com um leve tremor, um súbito frenesi que nos faz suar e sonhar.
Enquanto eu comia, às vezes contemplando o buritizal à minha frente, a chef falava de outros pratos, alguns recentes, e outros antigos, que vinham de sua infância, quando ela e os dez irmãos disputavam os ovos que a tartaruga prenhe botava no banheiro da casa. Hoje, tartaruga só de cativeiro. Mas, nos anos 1950 e 1960, os quelônios eram comprados no mercado.
Eu já tinha raspado meu prato e, mais por timidez que por educação ou bons modos, não pedi para repetir tudo. Tive coragem de dizer que, na próxima visita a Manaus, eu gostaria de provar o rocambole de pirarucu, quem sabe um picadinho de tartaruga, ou ainda uma posta de rabo de jacaretinga assado.
"É só avisar", ela riu, sem esconder uma ponta de orgulho. "E ainda preparo uma sobremesa."
"Sobremesa?", perguntei, ansioso. "Um rocambole de castanha recheado com doce de cupuaçu", ela sugeriu. "Ou uma musse de cupuaçu com calda de chocolate. Mas posso preparar também uma musse de manga ou de castanha. Ou de tucumã..."
Tive a impressão de que todos os peixes e frutas da Amazônia esperavam uma receita de Maria do Céu. Todos é um exagero: a natureza amazônica ainda guarda muitos segredos. Mas um dos desafios de Maria do Céu é transformar o que já se conhece em "supimpas iguarias", como escreveu Guimarães Rosa, referindo-se a uma outra culinária.

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