São Paulo, domingo, 28 de março de 2010

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POP UP

O artista Stephan Doitschinoff pinta ruas, telas e cidades com a alma

por IARA CREPALDI

JANELA DA ALMA

Um dos mais intrigantes artistas de sua geração, Doitschinoff criou vocabulário próprio ao misturar o urbano e o sagrado; depois de pintar o município de Lençóis, na Bahia, ele se prepara para colorir outra cidade

Ele ainda se lembra de algumas passagens da Bíblia que teve de memorizar na infância. Nascido em São Bernardo do Campo, filho de um pastor evangélico, neto e bisneto de espíritas, o artista Stephan Doitschinoff despeja em seu trabalho toda a carga espiritual que absorveu nos primeiros anos de vida.
Fruto de uma educação religiosa rígida, ele cresceu com medo de arder no fogo do inferno se não seguisse os preceitos transmitidos pela igreja, pelas escrituras, pelos santos, pelos líderes espirituais.
Mas havia também a cidade. E foi em São Paulo, mergulhado num caldo de violência, miséria, pressa e cultura urbana que surgiu Calma, do latim "con alma", seu pseudônimo nos tempos em que pintava mais muros do que telas.  
Aos 33 anos, Stephan já exibiu seu trabalho em 16 cidades. Eleito Artista Revelação de 2009 pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, foi selecionado pela Fundação Nacional das Artes e pelo Ministério da Cultura para instalar um mural e uma grande escultura de cerâmica, "A Mão", perto do Museu Afro, no parque Ibirapuera, a partir de abril.
Autodidata, não concluiu a faculdade de comunicação social e nenhum dos cursos de arte que começou. Seu trabalho é a síntese do legado punk e skatista da capital combinado ao estudo pessoal sobre arte sacra, às práticas espirituais de sua família e ao ambiente sincrético brasileiro, marcado pelo catolicismo europeu e pelas crenças africanas.
Expressa por meio de desenhos, pôsteres, murais, adesivos, pinturas, estênceis, instalações e esculturas, sua narrativa provocativa é uma reflexão sobre a transitoriedade da vida, a corrupção da sociedade e da religião, a decadência, a culpa, a paz e a redenção. "Para viver na sociedade de hoje, eu tenho que ter muita fé e acredito que, nos livros considerados sagrados, há uma verdade profunda, inspirada e iluminada."

CIDADE DE DEUS
A partir de 2002, Stephan ganhou destaque no cenário da arte urbana de São Paulo e participou de exposições em cidades brasileiras, americanas e europeias. Foi para a Inglaterra fazer uma residência artística e, quando voltou, trabalhou por dois anos para juntar dinheiro e executar seu projeto mais ambicioso: pintar uma cidade inteira. "Durante esse trabalho, vivenciei manifestações em resposta à minha arte que nenhum artista imagina viver. Numa exposição, as pessoas no máximo batem palma, mas, em Lençóis, no sul da Bahia, os moradores apedrejaram algumas obras e rezaram na frente de outras." O projeto foi documentado no curta-metragem "Temporal" e pode ser assistido na versão digital da Serafina.
Após desenhar nos muros, nas casas, na capela e em alguns túmulos da comunidade quilombola de Lençóis, Stephan pretende estender sua arte para outro povoado.
"Quero criar em conjunto com a sociedade e levar o conceito de arte pública para um patamar diferente. Vou inserir as obras nos instrumentos de trabalho da população. Mas os meus desenhos serão vistos de longe. Será uma intervenção no micro e no macrocosmo", adianta, em tom misterioso.
Diferente do projeto em Lençóis, financiado pelo próprio artista, a nova ideia deve ser executada com ajuda de parceiros que ele define como "limpos", ou seja, que não estejam em conflito com sua ideologia, também presente no tema de suas próximas exposições, na galeria Acervo da Choque, de 10 de abril a 3 de maio, em São Paulo, e no Museu de Arte Contemporânea de San Diego, nos EUA, de 25 de julho a 28 de novembro –além de estar tatuada nos antebraços do artista, sob as iniciais N.A., de "novo asceticismo".
"Inspirado pela vida dos ascetas, que se excluíam da sociedade e desenvolviam práticas de privação, o novo asceticismo é uma reflexão sobre a fé e sobre como conseguimos viver em sociedade sem sermos dragados."
Do ponto de vista de Stephan, os conglomerados de mídia e as grandes corporações atuam para criar rebanhos obedientes. "Somos estimulados a seguir novos comportamentos, por exemplo, pelas redes sociais online, que incentivam as pessoas a abrirem sua intimidade de maneira nunca vista. Isso diminui drasticamente e até anula a intensidade das vivências pessoais."
A exposição em San Diego é a primeira do artista em um museu fora do Brasil. A mostra da Choque, intitulada "Cras" (amanhã, em latim), é marcada pela figura de Santo Expedito, que, segundo o artista, simboliza a urgência de fazer o que deve ser feito.
A única pista que dá de seu próximo passo é que deve pintar uma cidade litorânea. "Não quero divulgar o local, porque não sei quanto tempo vai demorar até eu conseguir dinheiro para pintar esse lugar. Se alguém bancar, pode ser daqui a dois meses", diz. Com fé. 

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