São Paulo, domingo, 29 de Maio de 2011

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ENSAIO

Viagem à Turquia interior

por Debby Gram, texto Zeca Camargo

Palácios, cisternas, haréns e igrejas esculpidas na rocha seduzem? o viajante e convidam para um mergulho dentro de si mesmo

Por fora, Istambul te convida. São as cúpulas, os minaretes -as curvas e as retas. São as orações que irradiam das torres, os vapores das chaminés. São os cortes de luz, os inesperados jardins, os reflexos da água (quanta água!), a promessa do outro lado -do rio, da ponte, do morro. Mas é por dentro que Istambul te seduz. Senti isso numa das minhas primeiras aventuras na cidade. Na porta do Çimberlitas -o hamman ou banho (turco, claro) mais conhecido e visitado da cidade-, uma placa promete uma experiência sensorial exótica. Na minha primeira visita, quase caí na armadilha da minha imaginação, elaborando fantasias orientalistas em cima de vagas imagens de antigos cartões-postais. Mas, ao entrar no enorme vestiário, com seus andares de pequenas e imaculadas cabines para a troca de roupa e um mosaico de toalhas penduradas que dão uma sensação de infinito ao vão central, as vozes graves dos visitantes locais se misturaram aos sussurros dos turistas, e fui transportado a um espaço atemporal. Conduzido por comandos fortes até a sala principal do banho, entreguei-me sem resistência ao aconchegante mármore central, tentando fixar meu cansaço em um dos pequenos pontos de luz que estão no teto há uns bons séculos. Esquecendo-me do próprio trajeto que fiz para chegar lá, a única certeza que tinha, no conforto daquele mormaço, é que eu era bem-vindo. A mesma relação surpreendente entre dentro e fora vale para interiores ainda mais grandiosos. Se as mesquitas são imponentes por fora, as ricas decorações de suas paredes internas e as pinturas elaboradas de suas abóbadas suavizam e enfeitam a visão de quem elas recebem, redefinindo a relação entre o humano e o sagrado. Vale ainda para os bazares, onde a desordem externa dá lugar, uma vez que se cruza uma de suas portas, a uma infinidade de provocações a todos os seus sentidos. Numa visita dessas, jamais seja refém apenas de seu olhar. Abra os ouvidos para a cacofonia poliglota de seus vendedores, sinta mais aromas do que seu nariz é capaz de contar, experimente sem medo cada doce e cada especiaria oferecida -e ,sobretudo, toque: ?tecidos, metais, tapetes, mãos acolhedoras. Em dezenas de bons restaurantes, a mesma relação. Seja uma porta ordinária em Beyoglu (que te conduz a pequenas salas com mesas coletivas repletas de convivas e "mezzes" para beliscar), ou um antigo pórtico de uma daquelas casas de madeira à beira do Bósforo (que te encaminha para uma enorme cozinha onde o jantar é servido no balcão, em meio a uma torrente de vozes, barulho e cheiros), estar dentro de algum lugar em Istambul é sentir que chegou aonde você deveria estar há muito tempo. Mas em nenhum desses sítios a sensação de ter pertencido sempre a ele (sem nunca tê-lo visitado antes) é mais forte do que na Cisterna da Basílica. Com uma simplicidade que inclusive contrasta com a de outros interiores da cidade, esse é o ponto final de qualquer visita à capital turca. Colunas, luzes, e água (mais uma música clássica, ora européia, ora otomana) conspiram para que você tenha a certeza de que seu destino sempre foi andar naquelas passarelas. Todas as vezes em que fui lá, durante os lentos minutos de cada visita, a Istambul de lá de fora ficava impossivelmente longe -e, ainda que por um breve tempo, eu me sentia estranhamente feliz de não saber se um dia veria de novo o Sol refletir no Chifre de Ouro.

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