São Paulo, domingo, 31 de maio de 2009

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FINA

Adivinhe quem veio para jantar

por CARLA RODRIGUES

A anfitriã de Simone de Beauvoir no Brasil relembra o encontro com a autora de “O Segundo Sexo”, que completa 60 anos em junho

Por conta das atividades do pai, o intelectual Caio Prado Júnior, era rotina para a jovem Yolanda Prado mandar trazer livros da Europa, procedimento comum entre os brasileiros que combinavam requinte intelectual com boa situação econômica nos anos 1940. Foi numa dessas remessas que leu, na língua original, “O Segundo Sexo”, publicado na França em junho de 1949. De casamento marcado para o mesmo ano com Paulo, seu único marido, Danda (apelido de infância) tomou conhecimento do lendário livro que inaugurou, no século 20, o debate sobre a emancipação feminina. Hoje, prestes a completar 80 anos, decidiu contar sua história na biografia que lança pela editora Brasiliense, que o pai fundou em 1943, ela herdou e administra desde 1992. “Renata Pallottini conta Danda Prado” tem lançamento previsto para o segundo semestre deste ano. Em junho, pela Nova Fronteira, sai a edição comemorativa dos 60 anos de “O Segundo Sexo”.

Em 1960, quando o casal Jean-Paul Sartre-Simone de Beauvoir veio ao Brasil, Danda se ofereceu para recebê-los em São Paulo. As afinidades, naquele momento, eram mais políticas do que propriamente ligadas à liberação da mulher. Filha do historiador Caio Prado –militante do Partido Comunista nos anos 30, ele ficou dois anos preso no Brasil e foi exilado para Paris por liderar a Aliança Libertadora Nacional contra o Estado Novo de Getúlio Vargas– Danda integrava, levada pela madrasta de mesmas convicções, à Federação de Mulheres do Partido Comunista Brasileiro. As referências a animaram a escrever uma carta para Beauvoir se propondo a acompanhar a visita do casal em São Paulo. Sartre e Simone passaram dois meses no país. Foram também a Brasília, a Salvador e ao Rio de Janeiro. Em São Paulo, Danda os ciceroneou e recebeu para jantar. Antes que eles chegassem, alertou os dois filhos mais velhos, Claudia e Nelson: “Vocês vão conhecer duas pessoas das quais nunca se esquecerão. Quando crescerem, vão entender a importância deles”.

Danda também não se esqueceu do encontro. Guardou na memória a francesa elegante que quis conversar com as empregadas na cozinha, o jeito maternal com que cuidava de Sartre –sua agenda na passagem pelo Brasil foi condicionada às atividades do marido– e seu interesse pelo cardápio do jantar. “Simone quis ver como a comida era preparada e o que seria servido a ele, que tinha o estômago muito frágil”, lembra.

Vovó e os homens

Yolanda voltaria a procurar Simone dez anos depois, quando, repetindo os passos do pai, chegou a Paris para um exílio político. Levava só a caçula, Carla, que não havia testemunhado o encontro em São Paulo. No Brasil, com Paulo –àquela altura já ex-marido– ficaram os dois mais velhos.

Na Paris dos anos 1970, a conversa com Simone de Beauvoir tinha objetivos políticos: novamente preso, Caio Prado havia escrito um artigo na cadeia, e queria divulgá-lo. Yolanda levava o texto e um pedido a Beauvoir para que o publicasse na revista “La Nouvelle Question”, fundada por Sartre. De quebra, também queria orientação sobre onde aconteciam os encontros das feministas francesas.

Beauvoir, que em 1974 fundaria a Liga dos Direitos das Mulheres, apresentou Danda à sua assistente, Anne Zelensky, a quem a brasileira acompanharia nas reuniões sobre legalização do aborto e violência contra mulheres. Embora separada, integrava o grupo das mulheres casadas. O tema do casamento foi parar em sua tese de doutorado e no livro “Ser Esposa – A Mais Antiga Profissão” (Brasiliense, 1979), em que discute questões clássicas do feminismo.

Danda ainda se impressiona com os livros didáticos que apresentam as mulheres como únicas responsáveis pelos trabalhos domésticos. “Os homens continuam sendo educados da maneira errada”, argumenta. É esse o discurso feminista que faz aos quatro netos –dois meninos e duas meninas– quando tem de explicar que não, vovó não é contra os homens, mas contra “a exploração da mulher pelo homem”.

Pecado supremo

Passados 60 anos da publicação do livro que inaugurou o feminismo contemporâneo, Danda acha que a vontade da mulher ainda não é respeitada. Não foi esse, no entanto, o exemplo que teve em casa. Sua mãe, Hermínia –ou Baby, como gostava de ser chamada–, foi uma mulher rica, bonita e independente, que trocou São Paulo pelo Rio com os três filhos pequenos, separada de Caio Prado. O casamento acabou depois de ele ter amargado dois anos na cadeia e outros tantos de exílio. Tudo muito inovador para os anos 1940. “Vivi numa família muito exótica”, diz Danda.

Exótica é como ela define a combinação entre a herança intelectual do pai e as reivindicações de liberdade da mãe. No Rio, Danda foi matriculada no Sion, tradicional colégio católico, mas aceita com ressalva, “apesar de os pais serem desquitados”. A exceção vinha acompanhada da constatação de que Baby não voltara a se casar, o que seria considerado pecado supremo. A opção de Baby não era por recato, mas para manter em sigilo um romance com D. João de Orleans e Bragança.

Rebelde e independente, a mãe de Danda também era, à sua maneira, uma feminista. Apesar de não se associar aos engajamentos políticos de Caio, Baby foi uma mulher corajosa que enfrentou a intolerância quando o marido era agredido aos gritos de “comunista”. A pequena Danda via da janela cruzes incandescentes sendo arremessadas no jardim da casa da família na rua Itacolomi, em Higienópolis.

Da imponente residência ela guarda a lembrança da imensa biblioteca de títulos ingleses e franceses, à qual tinha acesso restrito. “Eu lia tudo escondido.” Até que, 60 anos atrás, veio Beauvoir e escreveu para as mulheres um livro que lhes garante, inclusive, o direito de ler.

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