São Paulo, domingo, 31 de maio de 2009
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ONDE

Chapa quente

por RONALDO BRESSANE

Saiba como o pé-sujo mais clássico da Vila Madalena se tornou o epicentro da vida artística paulistana

Sou um zangão que mora em uma garrafa peluda. Uma garrafa peluda de cachaça Germana, estacionada a cinco metros do solo. Uma garrafa peluda entre tantas garrafas peludas nas últimas prateleiras do bar. Os pelos são formados por décadas de acúmulo de pó e partículas não identificadas sobre a superfície oleosa das garrafas que adornam as prateleiras acima do balcão, da caixa registradora e da chapa da Mercearia São Pedro. O álcool me conserva bem: pela quantidade de coisas que passaram por meus cinco olhos, imagino que devo ter uns 40 anos.

Cheguei depois de muito zanzar pelas lombas da Vila Madalena?–era bom ficar no alto desse morro, na rua Rodésia. Quando aqui me aferrei, a Mercearia era só a venda tocada pelo seu Pedro, descendente de sírios. Ele nunca imaginou que seria o bar mais tradicional do mais boêmio dos bairros de São Paulo.

Lembro-me de quando aquele menino, Marcos Issa Benuthe, hoje com 50, ficava aporrinhando seu Pedro, que queria usar o terreno da rua Rodésia, 34, para uma casa de materiais de construção. Seu Pedro lotou a venda de privadas, canos, azulejos e uns bagulhos esquisitos. O moleque, então com dez anos, batia o pé: aquele espaço seria mais bacana se frequentado pela vizinhança. Pouco a pouco, a vendinha foi sendo dominada mais pelos molhados do que pelos secos. Finado seu Pedro em 1996, hoje Marquinhos responde pela noite e o irmão Pedrão toca o dia, ladeados pelo atlético primo Marcelo, o gerente afobadinho Neto e mais 22 profissionais.

Geração Nojenta

O bar assistiu a um monte de modas boêmias desfilarem e continua exatamente igual, quiçá com os mesmos amendoins e grãos-de-bico de 40 anos atrás. O chope sem colarinho, o estrogonofe com Château Duvalier, o vinho alemão de garrafa azul, a meia-de-seda... Tudo foi soprado pelo vento dos insuperáveis pastéis de carne-seca, hoje sob a espátula de seu Antonio, o chapa-quente mais sério da área (“nossa envergadura moral”, assevera Marquinhos).

Do mesmo modo, daqui de cima das ampolas peludas vi uma série de ondas culturais virem e irem. A primeira a bater ponto foi a Raízes de América, uma das favoritas da intelectualidade pé-sujo da Vila nos anos 70, quando o bairro ainda era habitado principalmente por estudantes da USP, professores e artistas plásticos e sequer imaginava ser invadido por playboys em busca de bares descolados ou ateliês de design que vendem uma cadeira ao preço de uma picape.

O cinema pré-Collor, ainda nos 80, foi a segunda onda: a Vila Madalena se propunha berço de várias produtoras e Marquinhos, cinemaníaco programador do extinto Cineclube Oscarito, exibia filmes como “Frankenstein Punk”, de Cao Hamburger, tendo o bar como audiência e o paredão da escola em frente como tela. O cineasta alemão Peter Sempel (de “Flamenco Mi Vida”), amigo de Nick Cave, era outro que vivia mostrando a fachada.

É, Nick Cave foi fiel habitué durante o par de anos que morou em São Paulo. Um vídeo fofo no YouTube mostra o compositor australiano embalando o filho brasileiro num bucólico fim de tarde dos anos 80, quando a Madalena parecia vila do interior. Hoje, quem esvazia engradados ali é gente como (as bandas) Nação Zumbi, Instituto, Cidadão Instigado, Otto, Junio Barreto, Hurtmold, Orquestra Imperial, Vanguart. O fechamento oficial é 2h, mas meus cinco olhos já viram a luz do sol pegar muita gente de calça curta.

Cineastas, músicos, artistas plásticos, jornalistas e fotógrafos à parte, o lugar é mesmo território de escribas. Muito por conta de a Mercearia, além de videolocadora e armazém, ser sobretudo uma das livrarias essenciais de São Paulo. Os primeiros a desaguarem no convés capitaneado por Marquinhos foram Reinaldo Moraes e Matthew Shirts, escritor e jornalista americano, respectivamente, no final dos 80. Na década seguinte, autores da (mal) falada Geração Noventa se juntaram aos bons, levados por Joca Terron e Marcelino Freire após tentativas de unir a nascente cena literária em botecos, pizzarias, livrarias e até um café da Vila.

Pegou: em 2003, Joca lançou “HotelHell” pela editora gaúcha Livros do Mal, de Daniel Pellizzari e Daniel Galera, que, mais tarde, também estreariam livros entre aquelas mesas. Pelo menos uns cem livros tiveram ali sua primeira vez, tomando do bar Balcão (nos Jardins) a primazia de botequim literário e devolvendo o estatuto de esbórnia à noite de autógrafos –esse evento que recende a vinho de segunda e parece festa de aniversário comemorada em cartório. A Noventa, também nomeada Nojenta por detratores (a maioria, abstêmia), arrastou aos domínios da cachaça com pernil autores de todo o país.

Memórias bêbadas

Na infinita fila do banheiro, entre os bebuns que abundam às dúzias no mesmo metro quadrado, alguns reclamando do serviço (reclamar só piora... Na “Merça”, é você quem corre atrás dos garçons), lembro-me de quando as poderosas moças do teatro da praça Roosevelt invadiram o cenário e botaram pra correr o enxame de “marias-teclado” que ziguezagueavam atrás de uma história perdida ou de um escritor achado.

Lembro-me de quando o poeta carioca-paraguaio Douglas Diegues e o artista El Domador de Jakarés lançaram o movimento do Portuñol Selbaje; lembro-me de quando Wander Wildner, Paulo César Pereio e Mário Bortolotto cantaram totalmente bêbados “sou quase um alcoólatra” em um show que deu ao bar a multa de R$ 24 mil (maldita Lei do Psiu). Lembro-me ainda de quando o cartunista Jaguar me ensinou que o segredo para jamais ter ressaca era nunca parar de beber, enquanto aprendia que, para os sócios, o bar se chama A Merça –como o apelidam Rafa Coutinho, Rafael Grampá, Fábio Moon & Gabriel Bá, a jovem guarda do cartum. E lembro-me da vez em que Xico Sá vituperou contra o excesso de frescura dos jornalistas mauricinhos, ébrios de prudência, cool jazz e vinho com ecos amadeirados e toques de cassis, pouco antes de se atirar aos pés de uma deusa calipígea.

Lembro-me até dos desmancha-rodinha que chafurdaram na desgraça: do cantor que mandou duas canas, cantou a mulher do dramaturgo e foi catar um molar debaixo de um carro; do cronista sustentado pela mãe que arrotava seu talento e foi ficando cada vez mais só e fanho numa mesa... Os causos são inumeráveis. Nomes? Passo; o espaço acabou. Humilde zangão, não vou dedurar tudo o que vi e arriscar o lugar cativo na minha peluda, doce garrafa peluda. Só quando as garrafas passarem pela depilação total, aí sim é sinal de voar atrás de outro bar.

ADENDO

XÔ!

por RONALDO BRESSANE

Escritor arisco adverte: não vá à Mercearia São Pedro

Não vá.
A Mercearia São Pedro é um boteco chato. Lugar de escritores, cineastas, músicos, atores. Só pode ser chato. O que você vai fazer por lá? Se você não gosta de livros. É o que mais tem. Argh! Borges e Cortázar e Campos de Carvalho a caminho do banheiro. Clarice e pastel. Não cheira bem.

Não vá.
Há bares melhores ali por perto, na Vilaboim Madalena. Se você gosta de decoração, então... O que vai fazer na Mercearia? É uma agonia de design. Putzgrila. Vai dar vontade de você espanar as garrafas. Tirar o pó das grades e das estantes. Jogar tudo que é recorte de jornal fora. Por que danado penduram tantas notícias antigas, ora? Por que, em vez de dar recados em placas computadorizadas e luminosas, escrevem à mão, em gordurosas cartolinas? Minha Santa Periquita! Ave! A Mercearia, ao que tudo indica, existe para dar vexame.

Um dos donos é o Marquinhos Benuthe (o outro é o Pedro, seu irmão). Menino, eu não lhe conto. O gênio que o Marquinhos tem. Você não vai conseguir fazê-lo de tonto. Exigir saideira. Mandar?–como você está acostumado. Assim, a confundir: bar com banco. Só porque paga a conta, acha que pode sair gritando. Lá não. Freguês não tem vez. Baixa a cabeça. E espera a cerveja. E o sanduíche, nu na chapa, zelosamente feito pelo Antônio.

Os garçons são rápidos. Prestativos. Só não venha dizer o que eles têm de fazer. Eles já sabem. Sob a abnegada orientação de um piauiense chamado França (não confundir com um francês chamado Piauí), trazem baldes, descolam cadeiras extras. Mas repito: não adianta se você não é provido de uma gentileza. De uma delicadeza bêbada. Se você é daqueles que preferem outro colarinho branco.

Não vá.
Logo no balcão dá para se situar. Do tipo de frequência. Sabe aquele dramaturgo? Sem pompas na língua? De coturno? Sim, o ?Mário Bortolotto está sempre em pé. É só você não se aproximar. É só deixar ele na dele, sozinho. Bebendo vinho.

Outro que não merece a sua confiança é o polêmico Cláudio Assis, pois é. Aquele que dirigiu o perverso e pervertido filme “Baixio das Bestas”. Em tempo: apaixonado por cinema, Marquinhos espalhou cartazes pelas paredes. Filmes que, com certeza, não farão a sua cabeça: de Fellini, Kubrick e Pasolini. Gente que adoraria um cenário desses.

Como adorou o mexicano Guilhermo Arriaga. Sim, aquele que roteirizou o longa “21 Gramas”.?E ainda: figuras avessas como o escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez e o autor colombiano Efraim Medina Reyes elegeram a Mercearia como o Melhor Boteco do Mundo. Quanto exagero! Motivo ainda maior para você desconfiar onde estará se metendo. É fria.

Já pensou se você marca com os amigos engravatados da firma? Ou o seu aniversário de casamento? Quanta decepção! Você vai ficar com cara de bundão. Todo mundo fica com ares de bundão. Ao passar pelo corredor polonês. Explico: para ir ao sanitário, o caminho é estreito. Apertado. Sempre tem um músico tarado. Pernambucano. Batendo um olho no seu balanço.

Eu juro, eu imploro. Não vá. A Mercearia não foi feita para você. Há 40 anos, aquela bagunça existe. E ninguém faz nada. Sério. E sírio. Começou como uma quitanda de imigrantes, vendendo feijão, linguiça e desinfetante. Aí resolveram vender bebida. E, depois, virou locadora. E, não faz muito tempo, uma livraria. Já pensou? Tomar conhaque com Pinho Sol? Uma dose de água sanitária no seu ketchup?

Melhor evitar.

Recapitulando: escritores, cineastas, músicos, atores nunca foram boa companhia. São grotescos. Ariscos. E, sobretudo, egoístas. Não gostam mesmo de se misturar. Por favor, não apareça, não dê as caras, não vá.

De repente, periga você me encontrar.



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