, Folha de S.Paulo - Serafina 13 - 26/04/2009


  São Paulo, domingo, 31 de maio de 2009

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FINO

Nas entrelinhas

por RAFAEL CARIELLO

Diretor de programação da Flip deste ano, Flávio Moura se divide entre a natureza reservada e a necessidade de exposição

Em um texto para a Folha em junho de 2007, seis meses antes de se tornar o diretor de programação da Festa Literária Internacional de Paraty, o jornalista Flávio Moura analisou a obra do escritor sul-africano J.M. Coetzee, principal estrela da Flip naquele ano.

Aos 28 anos, ele fazia reparos à ostentação erudita do prêmio Nobel de Literatura de 2003, derramada numa das passagens de seu livro mais famoso, “Desonra”. A “austeridade controlada” e a “contenção minuciosa da frase” do romancista, que Flávio elogia, perdem-se num dos últimos capítulos do livro, em uma digressão do personagem sobre a ópera que pretendia compor –nada menos contido, austero ou conciso.

“As passagens a esse respeito falam mais das veleidades eruditas do autor e dos artifícios de profundidade do que da crise de um professor universitário”, escreveu Flávio.

Dono de um mestrado em sociologia na USP sobre os jogos de poder no mundo literário e intelectual brasileiro, os temas da ostentação e da economia do prestígio estão no centro da vida desse paulistano: são não só um objeto de estudo, mas uma preocupação que orienta uma espécie de “etiqueta” cotidiana.

Queira ou não, a coisa se complicou em dezembro daquele ano, e ele entrou por inteiro nesse jogo de vaidades e cuidados quando aceitou dirigir um dos principais eventos culturais do país e um dos mais importantes festivais literários do mundo.

Na Vitrine

Às 11h, o “escritório” onde Flávio trabalha ainda está relativamente vazio. No espaço amplo que ocupa boa parte do terceiro andar de um prédio comercial no bairro de Santa Cecília, em São Paulo, há apenas outras quatro pessoas, todas em silêncio, olhando para telas de computador.

Ainda assim ele fala baixo. Não é a primeira vez que se diz incomodado com o fato de ser “personagem” de Serafina. “Mas, é claro, não dá para ter ingenuidade”, pondera. “Esse negócio envolve exposição. Se eu peço a todo mundo que se exponha em Paraty, como é que só eu não deveria me expor?”

Entre as pessoas que ele convenceu a dar a cara aos afagos de 20 mil frequentadores na Flip, de 1º a 5 de julho próximo, estão a atual santíssima trindade da prosa brasileira –Cristovão Tezza, Milton Hatoum e Chico Buarque–, o mais importante defensor ideológico do darwinismo, Richard Dawkins, o escritor português António Lobo Antunes e o jornalista norte-americano Gay Talese.

Em um artigo de 2005 para o site Trópico, Flávio se perguntava que razões levavam ao amplo culto da literatura e das ciências humanas no país atualmente –encarnado em “festas” como a Flip ou em instituições como a Casa do Saber –“justo em um momento em que, em termos de mercado editorial, essas coisas não existem”.

O texto se chamava “A Fetichização do Conhecimento”. Flávio avalia que esses eventos e escolas servem como uma “chancela”, “um carimbo que diferencia” autores. “Isso opera milagres”, sintetizou.

Caminha pelo “galpão” –como ele e seus colegas arquitetos, escritores, cenógrafos e designers, a maioria da mesma geração, na casa dos 30, chamam o espaço que dividem. E faz uma pausa para um reparo: “O título não era bom”. “Quando escrevi esse texto, não olhava de onde olho hoje. De fora, você não vê as dificuldades inerentes à organização da Flip. De dentro, você vê, por exemplo, como é difícil trazer alguns convidados.”

O “galpão” já está mais movimentado agora. O salão é um espaço aberto, sem divisórias, com grandes bancadas brancas, entre paredes da mesma cor e janelões por onde a luz entra à vontade.

Tudo no ambiente é elegante, limpo e ordeiro, além de simples. O escritório fica a meio caminho entre as ruas arborizadas de classe média alta de Higienópolis e o horroroso elevado Presidente Costa e Silva, o “Minhocão”.

Doutorado e Coxinhas

“O Flávio é muito modesto”, diz o sociólogo Sergio Miceli, orientador do jornalista no mestrado e, agora, no doutorado. “Nem sei se isso é muito bom na vida intelectual. Somos todos uns vaidosos. Tem alguma coisa que funciona quando a pessoa arrota confiança.”

A produção acadêmica de Miceli se ocupa justamente de “carreiras” artísticas e intelectuais. Ele aponta uma origem familiar para o “interesse real” de Flávio pela vida cultural. “É um pouco como ser filho de militar”, diz.

Isso porque Flávio é “filho de gramático”. Francisco Moura, 60, é professor de português e autor, ao lado de Carlos Faraco, de um dos livros didáticos mais adotados no país.

O caminho acadêmico, inevitavelmente, o atraiu, e um doutorado iniciado em 2007 virou motivo de preocupação depois que teve de assumir a Flip. Falta apenas um ano e meio de prazo para entregar sua tese, sobre o campo das artes plásticas no Brasil na segunda metade do século 20. “Existe o risco de eu não conseguir fazer o doutorado; não quero ficar aqui cantando de galo”, disse, durante uma conversa no bar e restaurante Ugue’s, famoso por suas coxinhas, na fronteira entre Santa Cecília e Higienópolis.

As múltiplas ocupações dificultam a tarefa. Além da Flip, Flávio dá aulas de jornalismo e edita uma das principais revistas de ciências sociais do país, a “Novos Estudos”, ligada ao Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

Miceli, o orientador, defende que o dilema é típico de uma geração em que as possibilidades?–e o mercado, como o próprio Flávio indica ao apontar a multiplicação das “casas do saber”– ampliaram-se para quem, como ele, tem interesses acadêmicos.

“Não é por acaso que ele está nesses lugares todos. Com essa idade, a perspectiva de uma carreira acadêmica ganhando a merreca que pagam não é tão atraente. O Flávio trabalha pra burro para ter o dinheiro dele. Isso é muito meritório.”

Além de material, seu “dilema” está em encontrar um equilíbrio possível entre a atividade de crítica e a possibilidade de intervir, como faz na Flip, nesse jogo que gosta de observar.

Admirador declarado de Flávio por seu texto, sua capacidade de análise e seu comportamento,?Miceli diz que a multiplicidade de atividades pode trazer algum risco para uma produção acadêmica mais sólida. “Você sabe, não demora tanto para se ter idade. Sendo muito talentoso, você pode ir adiando e terminar perdendo o pé.”



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