São Paulo, terça-feira, 21 de dezembro de 2004

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sociais & cias.

Empresas adotam medidas para amenizar período que funcionários dispensados ficam sem emprego

Benefícios na demissão

Luanda Nera
especial para a Folha

Um processo de demissão de 16 executivos e 263 funcionários da Souza Cruz rendeu à empresa lugar de destaque nos "cases" da gestão de recursos humanos. Nenhum dos profissionais demitidos moveu ações contra a companhia. Situação ímpar num país em que 40% dos 2,5 milhões de demandas judiciais trabalhistas registradas por ano questionam a indenização oferecida ao empregado pela rescisão do contrato de trabalho. O desempenho da Souza Cruz no ano 2000 veio de uma prática aparentemente paradoxal: a demissão socialmente responsável.
Além dos direitos indenizatórios legais -como 13º salário e férias proporcionais, aviso prévio e multa de 40% sobre o FGTS-, os profissionais dispensados receberam durante seis meses benefícios como assistência médica e cesta básica. E todos tiveram a chance de participar de cursos de requalificação profissional e de receber a orientação de consultorias especializadas em recolocar trabalhadores no mercado.
O procedimento custou para a empresa R$ 73 mil (excluídas as indenizações) segundo Paulo Roberto Bittencourt, gerente de recursos humanos para a área industrial da Souza Cruz. Operações como essa não são mais iniciativas isoladas nas relações trabalhistas no Brasil. Hoje, dezenas de empresas celebram os resultados e afirmam: se tiverem de enfrentar novos processos de reestruturação, repetirão a dose.
O comportamento ético e transparente diante de demissões é tido hoje como fundamental para uma relação saudável de cada empresa com seu público interno, tão economicamente importante quanto clientes e fornecedores. A premissa faz parte dos indicadores do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, que reúne os parâmetros essenciais para que uma companhia possa ser considerada exemplar: discutir com os funcionários propostas para contenção e redução de despesas, adotar critérios socioeconômicos para a escolha dos demitidos e oferecer programas de recolocação. Mas as empresas têm ido além e já criaram seus próprios critérios: muitas oferecem benefícios adicionais, como extensão do convênio médico. Outras mantêm um colegiado interno para avaliar cada caso de dispensa. E há aquelas que não anunciam demissões na véspera de feriados religiosos ou do aniversário dos funcionários envolvidos.
O instituto norte-americano Great Place to Work, entidade presente no Brasil e que publica anualmente o ranking "As dez melhores empresas para trabalhar", também está de olho na política demissional das empresas. Para o diretor do instituto, Paulo Medeiros, 40, "Os empresários mais conscientes já perceberam que um processo de desligamento pode afetar significativamente os funcionários que continuarão empregados, o que é sinônimo de queda de produtividade".
As empresas já provaram que é possível oferecer segurança ao trabalhador sem aumentar muito os encargos trabalhistas. Eléu Magno Baccon, 41, diretor de operações de recursos humanos da Brasil Telecom, diz que os custos dos benefícios adicionais oferecidos aos 4.000 funcionários demitidos em 2000 corresponderam a apenas 3% do total da indenização determinada por lei. As demissões ocorreram depois que a empresa adquiriu dez companhias independentes, todas da área de telecomunicações. "Quando há uma incorporação desse porte, é natural que o quadro de funcionários seja reduzido. Mas nós não queríamos manchar a imagem da empresa, que estava começando suas atividades no Brasil. Pesquisamos experiências em países como a França e a Espanha, que já adotam o chamado plano social. O resultado foi surpreendente. Conseguimos reempregar 93% dos funcionários", relata.
A assessoria profissional para buscar recolocação, que antes era privilégio de executivos que ocupavam o alto escalão das grandes empresas, já atinge também os cargos operacionais, segundo a consultoria BPI (Business & People Integration), que atua na área. A proposta é fazer com que o profissional se recupere do choque da demissão e aproveite para repensar a carreira, traçar planos e identificar novas possibilidades de trabalho.
É o que está fazendo Vlamir Faria Barriento, 40. Depois de trabalhar por 16 anos como gerente de engenharia da Avon, recebeu a notícia de que tinha perdido seu emprego. Horas depois foi apresentado pela empresa à consultoria BPI para que começassem o processo de recolocação profissional. "Há cerca de cinco meses, fiz uma lista das 30 empresas nas quais tenho vontade de trabalhar, e estou me dando o direito de escolher o que quero fazer. Continuo recebendo orientação da consultoria paga pela Avon, e minha relação com a companhia é ótima. Sem mágoas".
A demissão também não deixou ressentimentos para o executivo Osvaldo Francisco Mônaco Filho, 43. Em novembro de 2002, teve que deixar o cargo de coordenador de processos da Ticket e hoje trabalha na principal concorrente da empresa, a VR: "Faço o que gosto. Ocupo um cargo ainda melhor do que eu esperava. Depois que perdi o emprego tive a chance de repensar na minha carreira, fazer um balanço. Minha relação com a Ticket é muito boa". Outro exemplo de "desligamento pacífico" é o do engenheiro Francisco Ricardo da Silva Gomes, 35, ex-funcionário da Volks. Depois de ser demitido e reempregado em um dos fornecedores da montadora alemã, Francisco Gomes não perde uma só festa de confraternização com os ex-colegas de trabalho.
A administradora Geila Pereira Malvestiti Alves, 43, superou o choque da notícia da demissão quando percebeu que a mudança poderia ser positiva: "Eu tive que me mexer profissionalmente. Uma das lições que aprendi com a empresa de recolocação profissional foi rever minha lista de contatos. E foi exatamente assim que consegui um novo emprego", comemora. Ela ocupava o cargo de gerente administrativa da Metrored Telecomunicações, empresa comprada pela Brasil Telecom, e hoje é coordenadora administrativa da Sky TV.
Para o metalúrgico José Nelson dos Santos, 48, que em 2001 entrou em um programa de demissão voluntária na Volkswagen, onde trabalhou por mais de 26 anos, o choque foi menos demitir-se do que descobrir novos caminhos profissionais. "Depois de tanto tempo em um só lugar, eu não sabia fazer mais nada, só trabalhar. Com a assessoria para a recolocação, comecei a ler jornais, acessar a internet e até fiz meu currículo. Confesso que nem pensava mais em trabalhar, mas fui chamado para uma vaga muito boa", conta Santos, hoje encarregado de produção na indústria metalúrgica Polimetri.
O diretor da BPI no Brasil, Gilberto Guimarães, 57, explica que é possível amenizar os impactos das demissões -muitas vezes inevitáveis em processos de reestruturação, fusão ou privatização- oferecendo benefícios adicionais ao funcionário: "Além de demonstrar respeito e valorizar o trabalho do profissional demitido, a empresa preserva sua imagem com fornecedores, clientes e funcionários". A média de recolocação de um trabalhador com o apoio da consultoria é de quatro meses, segundo Guimarães. De acordo com dados do Dieese, o tempo médio no país para o demitido encontrar um novo trabalho é de 13 meses. Em novembro, de acordo com dados do Cadastro Geral de Admitidos e Desligados, do Ministério do Trabalho e Emprego, foi registrado um saldo positivo de 79.022 postos de trabalho em todo o país, mas o número oculta o número de demissões: 852.104
O trabalho de recolocação de um profissional demitido não envolve apenas a busca por um novo emprego formal, com carteira de trabalho assinada. Quando fazem um balanço de sua carreira e descobrem novas potencialidades, muitos optam por atuar como autônomos, dedicar-se aos estudos e, em grande parte, tornar-se um empreendedor. De acordo com Gilberto Guimarães, da BPI, esta é a opção de 30% dos profissionais desligados.
Um deles é o analista de processos Natal Cavalcanti, 45, que aderiu a um programa de demissão voluntária da Volkswagen depois de 30 anos de dedicação exclusiva à empresa. "A consultoria me motivou a fazer cursos no Sebrae, a descobrir outras potencialidades. Eu já nem sabia mais quem eu era, nem currículo tinha. Cheguei a receber propostas de emprego formal, mas optei por abrir um negócio", relata Cavalcanti, hoje revendedor de produtos naturais para emagrecimento.
O vice-presidente de recursos humanos da Volkswagen do Brasil, João Rached, 50, conta que os 800 funcionários que a empresa precisou demitir, em novembro de 2001, reagiram inicialmente com desconfiança quando a eles foi oferecida a possibilidade de participar de um processo de recolocação. "No começo, todo mundo acha que é 'douração de pílula'. Aos poucos, eles foram percebendo que o trabalho era sério e decidiram aderir. Muitos nos procuraram para agradecer. O resultado? 94% de sucesso na recolocação profissional."
Os exemplos bem-sucedidos da iniciativa privada, porém, beneficiam só uma pequena parcela de trabalhadores no Brasil. Isso porque a legislação trabalhista não acompanha as tendências contemporâneas na gestão de recursos humanos.
Um grande passo para que esse problema fosse amenizado poderia ter sido dado em 5 de janeiro de 1995, quando o país ratificou a Convenção 158 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que determina critérios para as demissões e oferece garantias ao trabalhador demitido. Mas a novidade nem chegou a sair do papel: em 20 de novembro de 1996, pouco mais de sete meses após a entrada oficialmente em vigor da Convenção 158, o Brasil desistiu de participar do acordo internacional. Foi o único caso entre os 34 países que concordaram com a norma. "O Supremo Tribunal Federal argumentou que a norma era inconstitucional. Mas, sem dúvida, houve um lobby muito forte dos empresários, que temiam ser financeiramente atingidos", diz Sebastião Caixeta, 38, presidente da ANPT (Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho).
É essa também a opinião de Grijalbo Coutinho, 39, presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho). Ele acrescenta que nem seria preciso buscar normas internacionais para disciplinar a demissão de funcionários no Brasil. "A própria Constituição, no artigo 7, inciso 1, garante estabilidade a todos os empregados. O problema é que esse artigo ainda não está regulamentado".
Tanto a Anamatra quanto a ANPT defendem a importância de uma lei que discipline o processo demissional. Uma proposta nesse sentido está sendo analisada pela Câmara dos Deputados. É o chamado Pade (Programa de Apoio Demissional), projeto de lei 2.323/2003, de autoria do deputado federal Pastor Reinaldo (PTB-RS). O projeto propõe, por exemplo, que as empresas com mais de 30 funcionários, públicas ou privadas, prestem assistência aos funcionários demitidos por pelo menos 90 dias e ofereçam cursos de requalificação e programas de recolocação profissional.
O psicanalista e cientista social francês Dominique Clavier, 61, diretor de desenvolvimento do grupo BPI e um dos responsáveis pela elaboração do sistema de proteção ao empregado na França, faz críticas ao modelo trabalhista brasileiro, que, na sua opinião, dificulta e encarece as demissões. E não acredita que o processo de transformação comece nos tribunais: "A filosofia e a prática da responsabilidade social dependem de mudanças culturais, e não jurídicas. A lei apenas formaliza o que é normalidade cultural".


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