São Paulo, terça-feira, 22 de fevereiro de 2005

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sociais & cias.

Comércio justo cresce no Brasil, envolve mais de 20 mil empreendimentos solidários e começa a ganhar espaço no mercado convencional

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Luanda Nera
enviada especial a Porto Alegre

Uma longa e simbólica trajetória se completou quando cada um dos 155 mil participantes do Fórum Social Mundial recebeu uma bolsa de pano com a logomarca do evento. O acessório -que fez parte do figurino básico de todos os presentes em Porto Alegre (RS), no encontro ocorrido em janeiro- foi confeccionado por mais de 500 trabalhadores associados a 35 empreendimentos do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do Paraná.
Essa rede solidária começou com o próprio fio do algodão -desenvolvido por 120 associados da Cooperativa Nova Esperança, de Nova Odessa (SP). Na etapa seguinte, 60 integrantes da Coopertêxtil, de Santo André (SP), transformaram o fio em 15 mil metros de tecido, manuseado pelas costureiras e serigrafistas da região Sul do Brasil. "Já tínhamos participado das outras edições do fórum, mas essa é a primeira vez em que conseguimos formar uma cadeia produtiva completa com base na economia solidária", comemora Isaurina Alzira da Silva, 62, que faz parte da Cooperativa de Costureiras Unidas Venceremos, de Porto Alegre.
A confecção das bolsas distribuídas no Fórum Social Mundial indica que conceitos como economia solidária não fazem parte apenas do discurso de trabalhadores como a costureira Isaurina. Planejar, produzir, gerir e comercializar de forma cooperada e democrática são as bases de um modelo econômico até pouco tempo atrás considerado utópico e incoerente com os princípios do sistema capitalista. Hoje, o Brasil já abriga mais de 20 mil empreendimentos solidários, que começam a ganhar espaço no mercado convencional.
Prova disso é que, nas quatro edições anteriores do Fórum Social Mundial, as questões relacionadas ao comércio ético e solidário ocupavam posição periférica. Neste ano, protagonizaram as discussões teóricas e ganharam a prática. Além da confecção das bolsas, diversas cooperativas foram responsáveis por cuidar das praças de alimentação, da instalação dos pisos, dos serviços de limpeza e até da construção das cabines para tradução das palestras. Juntos, os grupos movimentaram mais de R$ 2 milhões do total de R$ 14 milhões do orçamento geral do evento.
"No Brasil, o movimento da economia solidária se consolidou a partir do Fórum Social Mundial. Esse foi nosso grande laboratório", afirma Ary Moraes, um dos responsáveis pela inserção do tema no evento. "As iniciativas de criação de uma rede solidária no país já acontecem há mais de dez anos, mas a organização do movimento é bastante recente", diz Ademar Bertucci, representante da Cáritas brasileira e coordenador-geral do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, que existe desde 2003.
Na teoria, a economia solidária integra um conjunto de iniciativas -que envolvem a produção de bens, a distribuição, o consumo e a prestação de serviços- organizadas por meio da autogestão. Os trabalhadores são os protagonistas de seus próprios empreendimentos e articulam redes de cooperação. O movimento tem como princípios básicos o combate à exclusão social no mercado de trabalho, a valorização de toda a cadeia produtiva e o respeito ao consumidor. Na prática, aparece em situações simples e cotidianas, seja em eventos criados especificamente para aproximar o produtor de seu cliente, seja quando um grande supermercado decide comprar alimentos de cooperativas.
Para que a proposta de uma economia solidária seja concretizada, produtores, comerciantes e consumidores devem atuar de maneira ética e harmônica. A integração entre os três elos é a nova cara do movimento no Brasil. As campanhas pelo consumo consciente e a aproximação de grandes empresários que já investem em práticas de responsabilidade social mostram que um ciclo começa a se formar. "Não podemos acreditar que as corporações vão abrir mão do lucro, mas sabemos que elas podem interagir com as cooperativas. Grande parte dos empresários está disposta a discutir desenvolvimento econômico com distribuição de renda", argumenta Dilermando Allan Filho, fundador da Cives (Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania).

Exemplo disso é a postura adotada pela empresa Fersol, de Limeira (SP), especializada em produtos químicos para agricultura, veterinária e saúde pública. Michael Haradom, presidente da companhia, conta que a prática do comércio justo é uma das ações de responsabilidade social adotadas. "Damos preferência a produtores da América Latina e de países emergentes. Compramos materiais reciclados por cooperativas e adquirimos alimentos diretamente dos produtores."
Os profissionais que atuam nos empreendimentos solidários afirmam que hoje já é possível sentar à mesa com grandes empresários para realmente tratar de negócios -e não mais de filantropia. "Muitas empresas já perceberam que as cooperativas não querem ajuda, querem trabalhar", resume Maria Lúcia Ribeiro, 65, da Associação de Artesãs Sergipanas.
"As fábricas doam retalhos de tecidos para fazermos o artesanato. Mas também precisamos de espaço para vender os produtos", conta Maria Regina de Moura, 34, vice-presidente do Clube de Reciclagem do Morro da Cruz, de Porto Alegre. Mãe de três filhos, ela encontrou no trabalho cooperado a saída para garantir o sustento da família, cuidar das crianças e ainda ajudar sua comunidade. Tão importante quanto o apoio das empresas convencionais é o trabalho de conscientização dos consumidores. "Em cada ato de consumo apoiamos uma cadeira inteira por trás, que pode ser exploratória ou baseada em justiça, ética e solidariedade. Cabe a nós escolher", prega a cartilha "O Comércio Ético e Solidário no Brasil", divulgada em dezembro pelo grupo Faces do Brasil, uma das principais entidades articuladoras das atividades de economia solidária no país. Laura Prada, representante do grupo, diz que o consumo consciente é a base do comércio ético: "Informação é uma das premissas para dar transparência na cadeia comercial e aproximar produtores de seus clientes". É o que garante o ciclo solidário da nova economia que se fortalece no Brasil.


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