São Paulo, terça-feira, 22 de fevereiro de 2005

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Leituras cruzadas

Construção de ferrovias brasileiras, como a Madeira-Mamoré e a Noroeste, estimulou o surgimento de novas cidades e matou mais de 6.000 trabalhadores em conseqüência de doenças como a malária

Todas as Marias

Paulo Roberto Cimó Queiroz
colaboração para a Folha

Nenhum homem de "livre e espontânea vontade" teria participado da construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré: "somente o diabo poderia criar-lhe tantas vicissitudes, infortúnios e desgraças". Recuperada pelo pesquisador Manoel Rodrigues Ferreira, em seu livro "A Ferrovia do Diabo" (Melhoramentos, 400 págs., R$ 22,90), a criação da Mad Maria ilustra o fascínio e as desventuras que cercam parte da história ferroviária brasileira.
A construção, que se estendeu por cerca de 40 anos, desde as primeiras tentativas (frustradas) na década de 1870, motivaria diversas narrativas romanceadas, entre as quais se destaca "Mad Maria" (Record, 461 págs., R$ 45,90), de Márcio Souza, adaptada pela Globo em minissérie homônima. A Madeira-Mamoré -"espetáculo privilegiado da civilização capitalista na selva"- constituiria também o fio condutor do estudo de um dos maiores especialistas no assunto, Francisco Foot Hardman, autor de "Trem Fantasma" (Companhia das Letras, 345 págs., R$ 47).
A concepção da Mad Maria era simples: numa extensão de cerca de 360 quilômetros, a estrada deveria contornar o trecho encachoeirado do rio Madeira, passando pelas selvas a noroeste do atual Estado de Rondônia. Terminada, ela permitiria o acesso da Bolívia ao Oceano Atlântico, via navegação dos rios amazônicos. A região, no entanto, era propícia à malária e a outras doenças tropicais. Além disso, nenhuma outra ferrovia, antes ou depois, foi construída tão a oeste do Brasil, em lugar tão distante dos grandes centros. Essas circunstâncias deram à construção contornos tenebrosos.
A estrada começou a sair do papel em 1907, depois de ser incluída entre as obrigações assumidas pelo Brasil como contrapartida à aquisição do território do Acre, e foi concluída em 1912, mediante a mobilização de milhares de trabalhadores recrutados em várias partes do mundo. Manoel Rodrigues Ferreira calcula em mais de 6.000 o número de mortos em conseqüência de doenças adquiridas na área da construção.
Na primeira metade do século 19, as ferrovias surgiam como o meio quase mágico que permitiria transpor enormes distâncias com rapidez e grande capacidade de carga, atravessando qualquer tipo de terreno. Nos países centrais do capitalismo, elas logo venceram a concorrência com os meios de transporte preexistentes. No restante do mundo, as vias férreas correspondiam admiravelmente ao ímpeto avassalador do imperialismo, supostamente portador da "missão" de levar a "civilização" e o "progresso" aos mais remotos territórios. No Brasil, onde a era ferroviária se iniciou em 1854, algumas vozes apontaram o descompasso que tenderia a se verificar entre as modestas dimensões da economia nacional e os grandes investimentos requeridos para as construções ferroviárias. Em "Café e Ferrovias" (Pontes Editores, 178 págs., R$ 43), Odilon de Matos cita a frase de um importante estadista, segundo o qual os custos das ferrovias seriam tão altos que acabaríamos tendo "estradas de ouro" -ociosas, na maior parte do tempo, por falta do que transportar. Mas pontos de vista como esse foram vencidos pela fascinação exercida pelo trem de ferro e pela fé em seu poder de transformar a realidade: a chegada das locomotivas seria como o toque de fada pelo qual vastas áreas "atrasadas" ou incultas seriam instantaneamente transmutadas em modernos centros de produção.
As construções se concentraram no período que vai até 1920, quando a quilometragem total das vias férreas brasileiras já chegava a 75% de sua extensão máxima, atingida em 1960. Na época, a estrada de ferro mais importante do país era a Central do Brasil (antiga D. Pedro 2º), que ligava o Rio de Janeiro a São Paulo e a Belo Horizonte.

Mas as ferrovias cuja construção causou maior comoção foram aquelas situadas no interior. Além da Madeira-Mamoré, esse é também o caso da Noroeste do Brasil, que ligou Bauru (SP) às margens do rio Paraguai (sul do antigo Mato Grosso) no início do século 20. A Noroeste foi objeto de um clássico da historiografia ferroviária brasileira, "Um Trem Corre Para Oeste" (Melhoramentos, 222 págs., esgotado), de Fernando de Azevedo, entre vários outros trabalhos, como "Memórias de um Ferroviário" (Edusc, 166 págs., R$ 22), de Gabriel Ruiz Pelegrina, e "Mulheres, Trens e Trilhos" (Edusc, 462 págs., R$ 39), de Lídia Maria Possas.
Concebida com finalidade essencialmente política, a Noroeste deveria constituir o trecho brasileiro de uma transcontinental, destinada a atravessar a Bolívia e o Chile e assim ligar os oceanos Atlântico e Pacífico. Sua construção tomou ares de epopéia, incluindo, no trecho paulista, resistência armada dos indígenas caingangues e violenta incidência da malária. No trecho sul-mato-grossense, um aterro contínuo de 40 quilômetros foi construído, em pleno Pantanal, por trabalhadores que dispunham apenas de carrinhos de mão e simples instrumentos de cavar.
As condições de trabalho eram tão desgastantes e espoliadoras que, para conseguir mais operários, a construtora chegou a usar certos "artifícios": segundo escreve a historiadora Maria Inês Castro em sua dissertação inédita sobre a Noroeste, indivíduos "que tiveram a má sorte de cair nas mãos da polícia", no Rio de Janeiro e em São Paulo, eram enviados à ferrovia "como deportados e postos, à força, para trabalhar".
É claro que o "mágico" poder das estradas de ferro não foi suficiente para alterar, com a rapidez que alguns brasileiros imaginavam, estruturas econômicas moldadas ainda na época colonial. A crença na força transformadora dessas estradas, aliás, nem sempre era sincera e ingênua: muitas vezes era proclamada pelos interessados nos grandes negócios representados pelas construções ferroviárias.
Assim, muitos trechos foram construídos sem uma efetiva justificação econômica, tornando-se deficitários. Com exceção das ferrovias cafeeiras -basicamente construídas no Estado de São Paulo-, as estradas viviam em constantes dificuldades financeiras. De acordo com o que Flávio Saes escreve em "As Ferrovias de São Paulo" (Hucitec, 199 págs., esgotado), as tarifas eram calculadas com base no valor das mercadorias, e o café era praticamente o único gênero valioso o suficiente para remunerar adequadamente as empresas.
Como as ferrovias tendiam a ser vistas como meros símbolos, o que se buscava era antes a quantidade que a qualidade: eram construídas estradas baratas e cheias de defeitos que, posteriormente, ampliavam os custos do transporte. Não apenas a construção mas também a operação das vias férreas dependeu de subsídios estatais. Além disso, as empresas sofriam pressões das camadas sociais dominantes, sempre em busca da menor tarifa, ainda que à custa do sacrifício das finanças das estradas.

De um ponto de vista econômico, não seria propriamente incorreto dizer que a experiência ferroviária no Brasil não passou de um relativo fracasso -que se traduziria, hoje, no predomínio das rodovias, ao contrário do ocorrido em outros países de grandes dimensões. De acordo com supostas explicações, o triunfo das rodovias no Brasil teria sido obtido graças a um complô que envolveria governos e grandes empresas petrolíferas e automobilísticas. Mas a verdade é que, além de outras deficiências estruturais, o setor ferroviário nacional nunca chegou a formar uma autêntica rede cobrindo todo o território. Como a economia dependia da agroexportação, o problema consistia simplesmente em ligar as regiões produtoras aos portos marítimos.
A partir dos anos 30, quando se colocou o desafio da efetiva integração econômica do país como parte do processo de expansão do mercado interno, os transportes rodoviários -mais ágeis, necessitando de uma infra-estrutura muito menor que a das vias férreas- demonstraram uma flexibilidade que o trem não tinha como acompanhar.
Isso não significa que as ferrovias não tenham desempenhado um importante papel econômico no país. Elas foram fundamentais no período dominado pela agroexportação e continuaram a ser importantes também no contexto da industrialização acelerada.
É certo que uma estrada como a Mad Maria teria poucas possibilidades de sucesso empresarial: no mesmo ano em que ela foi concluída, iniciou-se a definitiva crise da borracha -único gênero produzido em maior escala na região. Com isso, como nota Francisco Foot Hardman, a Madeira-Mamoré se tornou, precocemente, uma verdadeira "ferrovia-fantasma".
Mas as estradas de ferro não podem ser analisadas apenas mediante critérios estritamente econômicos. No Brasil, as ferrovias criaram novas cidades, como Porto Velho (RO), ponto inicial da Mad Maria, e revitalizaram antigas. Representaram uma experiência indelével -freqüentemente dramática- para os trabalhadores mobilizados nas construções. Objeto de fascínio, elas impuseram um novo ritmo de vida, marcado pelos horários dos trens, e reorganizaram os espaços urbanos, nos quais as estações se destacavam como "catedrais" da ciência e da técnica.
Hoje, parecem surgir indícios de que as ferrovias brasileiras poderão redimir-se de seu relativo fracasso. Com certo otimismo, pode-se vislumbrar o fim da primazia das rodovias, que parecem ter cumprido sua tarefa de integrar economicamente o país. Em muitas partes do interior, bens já são produzidos em uma escala capaz de justificar a substituição dos caminhões pelos trens (ou pelas hidrovias). Mas, nessa eventualidade, as estradas de ferro figurarão como simples meios mecânicos de transporte: terá ficado irremediavelmente no passado seu lugar privilegiado no espetáculo da técnica moderna, e elas não mais serão cercadas pela antiga aura de empreendimento mágico e quase sobre-humano.


Paulo Roberto Cimó Queiroz, 47, é professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Publicou dois livros sobre a Noroeste: "As Curvas do Trem e os Meandros do Poder" (UFMS) e "Uma Ferrovia Entre Dois Mundos" (Edusc).


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