São Paulo, terça-feira, 27 de setembro de 2005

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Com um número cada vez menor de pessoas dispostas a dar aulas, a crise na educação caminha para um cenário crítico; educadores calculam que, se nada for feito, a profissão corre o risco de acabar em pouco mais de dez anos

O quadro se agrava

Denise Ribeiro
colaboração para a Folha

Os professores andam assustados, desestimulados, doentes, com medo. Especialmente os da rede pública. O relato do professor José (nome trocado a pedido dele), que tem 33 anos e leciona há dez, é emblemático. Menos de um ano depois de prestar concurso e começar a dar aulas de história em uma escola estadual da zona norte de São Paulo, ele já pensa em pedir exoneração. O dia-a-dia na escola é estafante, mas foi um episódio envolvendo um dos alunos da quinta série que o deixou doente.
"Coloquei para fora da sala, à força, um menino de 13 anos que vivia me provocando. Ele atrapalhava o andamento das aulas, não levava material e me desacatava o tempo todo. Saiu quase arrastado da sala e ficou lá fora gritando, esmurrando a porta", relata o professor. Como a escola não tem inspetor de alunos, a sensação de impotência dos professores é total. "Na hora de ir embora, vi que meu carro estava todo riscado. Não posso acusar, mas sei que foi ele." Segundo ele, o garoto não apareceu mais na escola, mas mandou recado. "Disse que estava na minha cola e que ia me matar", afirma. "Ele é egresso da Febem, o pai está preso e a mãe diz que não sabe mais o que fazer com o filho. Faltei duas semanas e voltei decidido a me exonerar, comecei a ter insônia depois que uns amigos do garoto avisaram que estavam de olho em mim. Já sabiam, inclusive, onde eu morava." A diretora da escola sugeriu que José procurasse um psicólogo. Em licença desde abril, ele está tomando antidepressivo e fazendo psicoterapia. "Às vezes, encontrava uns alunos que trabalham num mercadinho perto de casa e só de ouvir eles me chamando de professor, já entrava em pânico, começava a suar frio", recorda. "Você entra num processo de baixa auto-estima que é meio degenerativo e começa a se questionar se vale à pena ser tratado dessa forma. Estudar tanto e ter de sucatear seu trabalho por causa de um sistema ineficaz, que obriga você a passar de ano crianças semi-analfabetas, sem noção de nada... A escola estadual virou depósito de alunos, você não consegue falar, não consegue dar aula", lamenta José. Ele afirma que a sala de informática da escola tem computadores novinhos, mas fica fechada porque não há um profissional treinado para dar apoio ao professor. "Ainda não sei se volto. Eu me inscrevi no concurso de remoção. Pelo menos, me livro daquelas pessoas."
Assim como José, muitos professores andam desiludidos com o sistema educacional. Nas escolas particulares também há indícios de que a falta de disciplina e de limites pode comprometer o relacionamento entre professores e alunos. O psiquiatra Paulo Gaudêncio, que trabalha com pais, professores e escolas, conta um episódio que revela a inversão total de valores nos ambientes de ensino voltados para a classe média alta. "Um menino de menos de dez anos disse para o professor: "Eu pago seu salário, cuidado com o que você faz comigo, senão, meu segurança vai te dar um pau". É a esse professor, tratado como inferior, que delegaram a tarefa de colocar limite? [Essa tarefa] é ímpossível e, se tentar, ele não vai conseguir. A escola não está preparada para esse desafio, os pais também estão perdidos, pedindo socorro. Estamos criando uma geração que não aprendeu a se colocar limites, que não tem competência para encarar frustrações", argumenta o psiquiatra. "Ganhamos em liberdade, mas perdemos em autoridade e disciplina. São extremos opostos. Tudo isso acaba se somando perigosamente. A classe média está indo para o crime", pondera. Para Gaudêncio, o professor da rede privada também se sente desamparado, já que, em eventuais embates com o aluno-cliente, é sempre a parte mais fraca. "Ele não tem o apoio dos pais, é muito cobrado e também não conta com o respaldo da direção da escola, que não pode perder alunos. O professor está com medo e não tem como colocar a agressividade para fora", completa. Para ele, a combinação desses fatores tem resultado, em muitos casos, em depressão. "Tenho atendido a vários professores em minha clínica e percebo que o desânimo deles está aumentando. É muito chato quando você deixa de ter uma profissão e passa a ter um emprego. Trabalha apenas pela remuneração, mas quer viver fora daquele ambiente", constata Gaudêncio. Esse desencanto dá força à tese, surgida há dois anos, de que a profissão de professor está em vias de extinção. O mote foi a divulgação, em 2003, de uma pesquisa feita pela CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação) que ouviu 4.656 pessoas, em dez estados, em todos os níveis e redes de ensino. O resultado é estarrecedor: 53,1% dos professores em atividade estavam na faixa dos 40 aos 59 anos e 38,4% estavam na faixa dos 25 aos 39 anos. Apenas 2,9% dos professores em atividade tinham entre 18 e 24 anos. Ou seja, o número de jovens ingressando na profissão é inexpressivo. Esse perfil etário é agravado por dois fatores: 85% dos educadores são mulheres, que se aposentam com 25 anos de carreira (conjugados com a idade), e a maioria dos entrevistados já somava 15 anos de profissão. A projeção dos analistas, na época da divulgação dos dados da CNTE, era que, em dez anos, a falta de professores -que já é crônica na rede pública, em disciplinas como matemática, física e química- chegaria a níveis alarmantes.

A educadora Rosana Aparecida Argento Rebelo é especialista em indisciplina. Sua dissertação de mestrado na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) é sobre o tema e acabou virando o livro "Indisciplina Escolar: Causas e Sujeitos" (Vozes, 124 págs., R$ 15,80)", que está na terceira edição. Além disso, Rosana tem de se deparar, diariamente, com problemas disciplinares na Escola Municipal José Honório Rodrigues, onde atua como coordenadora pedagógica. "A escola fica na Vila Curuçá, na zona leste de São Paulo, um dos 20 primeiros distritos da capital em exclusão social", contextualiza.
Segundo Rosana, são seis os principais responsáveis pela indisciplina: pais autoritários ou licenciosos demais, currículo elitista, prática pedagógica inadequada, falta de formação do docente, resistência do professor a mudanças e políticas públicas incompatíveis com a realidade escolar. "Sempre fui uma coordenadora muito criticada, afinal, o professor também é indisciplinado. Como ele pode bancar uma discussão em sala se não lê o jornal, não se informa, não tem um olhar crítico do mundo? Como pode despertar o interesse do aluno com uma prática pedagógica espontaneísta, do tipo "quem quer aprender, que aprenda, quem não quer, não me encha'? A escola pública é o único espaço onde o educador -e isso inclui coordenadores e diretores- acha que não precisa estudar nem aperfeiçoar sua formação", critica.

Para tentar mudar esse panorama, Rosana resolveu influenciar na formação de professores, influenciando-os na outra ponta: a universidade. Passou a ensinar prática de ensino e metodologia na graduação e na pós-graduação da Unicsul (Universidade Cruzeiro do Sul). "Meus alunos são obrigados a freqüentar cinema e teatro. Tem gente com 40 anos que não conhecia nem a avenida Paulista", relata. Na escola pública, no entanto, ela também conseguiu progressos. "Temos um grupo de professores que começa a entender algumas questões importantes. Ao conhecer os pais do Zezinho, entendem por que ele é indisciplinado. Por outro lado, para conseguir envolver a família, você não pode chamar os pais só para falar mal do filho. Com palestras, discussões e atividades, conseguimos trazer o pai um pouco mais para dentro da escola. Em nossa última reunião, compareceram 630 pais de mil alunos", comemora a coordenadora. Outra prática que Rosana recomenda é o diagnóstico anual do público atendido. "Fala-se muito em discutir valores, mas quais? Do professor ou do aluno? Na nossa comunidade, sabemos que 50% são católicos e 50%, evangélicos. A renda média é de três salários mínimos e a maioria dos pais tem ensino fundamental incompleto. Apenas 2% dos alunos possuem computador e, destes, só 1% tem acesso à internet. De posse desses dados, planejamos melhor nossas atividades. Tem gente que fecha os conteúdos antes de começar o ano. Como é possível dar uma aula interessante sem o diagnóstico?", questiona Rosana. Para a coordenadora pedagógica, é preciso mudar a visão da indisciplina. "Indisciplina, muitas vezes, não é desobediência, mas denúncia. Não dá para querer que as crianças tenham "corpos dóceis", como afirmava [o filósofo francês Michel] Foucault. A disciplina do corpo é também a da cabeça, forma o submisso. No conselho de classe, passam os alunos quietos, que fazem as atividades esperadas. Todo mundo fala de disciplina, não de aprendizado. Indisciplina existe quando você não está cumprindo o papel da escola, que é o de transformar informação em conhecimento", conclui ela.

Professora há oito anos, Maria de Fátima Bezerra, 31, faz mestrado em língua francesa na USP e dá aulas de português na mesma escola em que Rosana é coordenadora. Ela também sente o descontentamento dos colegas, mas vê um pouco de exagero nessa postura. "É preciso ter flexibilidade em sala, entender um pouco mais os anseios do aluno. Ele confia no professor e tanto se interessa pela aula quanto em falar das suas dúvidas, dos seus problemas, de suas emoções. Tem dia que você prepara a aula e eles querem discutir outra coisa, trazer para a realidade. No dia 7 de setembro, a turma da quinta série preferiu abordar o momento político do que pesquisar no dicionário o conteúdo do hino nacional. Aquele trecho "seu futuro espelha essa grandeza" provocou muitas reflexões. Eles sabem que são o futuro e acreditam nele, acham que o Brasil vai mudar para melhor."
A constatação de Maria de Fátima vai de encontro à pesquisa recente "Valores dos Jovens de São Paulo", realizada pelo ISME (Instituto SM para a Qualidade Educativa) e coordenada pelos pesquisadores Yves de La Taille e Elizabeth Harkot-de-La-Taille. Ela ouviu 5.160 alunos de instituições públicas e privadas de ensino médio da Grande São Paulo. Os resultados surpreendem: 89,4% disseram que a escola é importante para o seu desenvolvimento pessoal e 76,8% avaliaram positivamente a escola, qualificando-a como "um lugar no qual se ensinam os problemas da sociedade e a forma de enfrentá-los". Por que, então, a percepção do professor é diferente? "Existe um diálogo de surdos entre as duas gerações", avalia Yves de La Taille, que também é professor livre-docente do Instituto de Psicologia da USP. "As crianças têm noção de que aquilo que a escola ensina tem relação com o desenvolvimento delas e da sociedade, mas, talvez, os professores não consigam estabelecer claramente esse vínculo." Na opinião do pesquisador, o professor está muito isolado, sobretudo na escola particular. "É como se o problema de disciplina fosse dele, quando, na verdade, é da sociedade. A escola virou comércio, formadora de conteúdo para o vestibular. A maioria dos professores não vai sacrificar um minuto das aulas de ciências, português ou matemática para tratar das disciplinas transversais, como cidadania. Esse é um grande erro. É muito mais perigoso para a humanidade uma pessoa competente em matemática sem ética do que o contrário. Tenho absoluta certeza de que o professor que fizer esse link será tratado de forma diferenciada. Será autoridade em sala de aula e não entregador de disque-conhecimento", alerta De La Taille.

Aos 24 anos, Lucas Pereira de Mendonça faz parte do universo ínfimo de 2,9% de jovens ingressantes na carreira de professor. Estudante de física na USP, ele dá aulas há três anos e meio para adolescentes de primeiro a terceiro anos do ensino médio em duas escolas particulares, uma em Cotia (Grande São Paulo), outra em São Paulo. Lucas fazia meteorologia, mas desistiu da profissão porque não se interessava pelo tema. Por isso, entende a importância de seduzir o aluno pelo conteúdo e pela forma de transmiti-lo. Declara-se um apaixonado pelo magistério. "A sala de aula é o lugar onde você pode ser uma pessoa pública, pode ter importância para esse mundo aí fora. Você sente que pode fazer algo por outra pessoa para conseguir transformá-la", relata. Ele explica que faz acordos com os alunos para dar as aulas. "Tento democratizar a sala de aula fazendo pactos com os alunos no primeiro dia de aula, determinando o tempo em que eles falam, em que eu falo, o tempo das perguntas e das discussões entre eles. A indisciplina pode acontecer, mas, se você tiver uma boa aula preparada e eles perceberem que você domina a matéria e os respeita, também vão te respeitar. Sinto que, apesar da minha pouca idade, consigo ser ouvido", completa o professor de física. Lucas fala de outras coisas fora de moda, como a postura do professor em sala de aula, que deve "transmitir honra, ética e dignidade" e em "botar o coração" naquilo que se faz. Quantos, agora, esboçam um sorriso irônico diante do sonho romântico do jovem professor? Dos colegas mais velhos, ele diz que já se cansou de ouvir: "Calma, um dia você vai desanimar também". Lucas reage dizendo que a cada dia se sente ainda mais empolgado.

Assim como ele, Flavia Merigue, 23, estudante de letras e professora voluntária num projeto da Faculdade de Educação da USP, continua confiante no seu futuro profissional. "Sinto uma vontade grande de discutir idéias, criar dúvidas e fazer com que os alunos reflitam. Sei que tenho uma responsabilidade grande: passar valores e noções de como melhorar o mundo em que vivem", entusiasma-se.


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