São Paulo, terça-feira, 28 de junho de 2005

Próximo Texto | Índice

entrevista

Inspirado em um livro que o marcou em sua juventude, o empresário norte-americano e ex-hippie Todd Lockwood mantém uma biblioteca só de obras recusadas

O pai dos rejeitados

Gabriel Falcione
colaboração para a Folha

Na noite de 16 de agosto de 1989, Todd Lockwood voltava com sua esposa para casa depois de terem visto o filme "Campo dos Sonhos". Sua cabeça estava longe: sentia que era o momento de levar a cabo a Biblioteca Brautigan. Por pouco, porém, a idéia não deu certo. Já em casa, distraído, Lockwood se esqueceu de desligar o sistema de aquecimento. O cheiro de gás acordou sua esposa a tempo de evitar uma explosão. Esse fato o lembrou de uma cena do filme que acabara de assistir, na qual o fazendeiro Ray Kinsella (Kevin Costner) constrói um campo de beisebol ao ouvir uma misteriosa voz aconselhando-o a seguir os seus sonhos. "Eu posso dizer que, naquela noite, ouvi alguém me dizendo que era o momento de pôr em prática a biblioteca", relembra Lockwood, hoje com 54 anos. Em abril de 1990, a Biblioteca Brautigan, na cidade de Burlington, no Estado americano de Vermont, oferecia suas estantes a todos os escritores interessados em enviar livros que nunca tivessem sido publicados.
O desejo de criar essa original biblioteca acompanhava Lockwood desde que lera, em 1975, o livro "The Abortion" (incluído na coletânea "Revenge of the Lawn, The Abortion, So the Wind Won't Blow It All Away", Houghton Mifflin, 544 págs., R$ 38,15), do escritor norte-americano Richard Brautigan (1935-1984), cuja história se passa em uma biblioteca como a que Lockwood criou.
O sonho, porém, durou pouco. Em 1996, por falta de dinheiro e de espaço -dividia o mesmo prédio com um instituto de massagens-, a biblioteca fechou as portas. Hoje, os 350 livros, muitos deles escritos à mão, estão guardados em um depósito à espera de uma remoção para a biblioteca pública de San Francisco, onde se passa a história do "The Abortion". As negociações começaram em 1998 e só foram concluídas neste ano, depois que a biblioteca de San Francisco conseguiu criar um departamento para receber os livros.


A Biblioteca Brautigan pode se tornar um excelente apoio para interessados em esmiuçar as características da sociedade norte-americana do final do século 20.

[Recebemos] um livro que conta um dia na vida de um marinheiro que é a reencarnação de Elvis Presley. Posso lhe assegurar: é infinitamente melhor do que muita coisa publicada hoje nos EUA."



Pai de três filhos, formado em fotografia pelo Instituto Rochester de Tecnologia, na cidade de Nova York, e dono de quatro carros do tipo Ferrari, Lockwood espera que até o final de setembro os tratados filosóficos, histórias de famílias e de amor e até um inusitado ensaio físico sejam finalmente transferidos. "Meu maior sonho é que a biblioteca possa voltar a receber originais", diz. Um deles pode ser o livro que Lockwood planeja escrever aos 75 anos de idade.

 

Folha - Como você conheceu o livro "The Abortion" ("O Aborto")?
Todd Lockwood -
Um amigo me indicou a obra. Trata-se de um livro revolucionário, que causou um verdadeiro rebuliço quando foi lançado. Fiquei surpreso ao descobrir que se tratava de uma simples história de amor. O livro apresentou um novo conceito de herói masculino, bem diferente da abundância de testosterona do James Bond da época.

Folha - Qual a importância do livro para você?
Lockwood -
Eu gostei do livro por várias razões: os personagens eram muito interessantes e, é claro, havia uma maravilhosa biblioteca que só aceitava originais não publicados. Para mim, soou perfeitamente cabível algo assim na vida real. Eu reli "The Abortion" todo ano, por 15 anos seguidos, antes de decidir construir a biblioteca.

Folha - Por que você construiu a biblioteca?
Lockwood -
Se você quiser saber como funcionava o sistema econômico chileno no século 19 ou quais foram os bastidores da Segunda Guerra Mundial, basta ir aos livros de história. Mas, para conhecer a vida de gente comum, como eu e você, não havia nada que deixasse para a posteridade registros da vida, das agruras e dos sentimentos do norte-americano comum. A Biblioteca Brautigan pode se tornar um excelente apoio para historiadores do futuro interessados em esmiuçar as características da sociedade norte-americana do final do século 20.

Folha - Qual foi o primeiro original que chegou à biblioteca? E qual foi o livro mais lido?
Lockwood -
O primeiro a chegar foi uma coletânea de cartas enviadas por um morador de Vermont a editores de um jornal local. Ele escrevia sob pseudônimo e criou um personagem nesse processo. Não sei mensurar o mais lido, mas a autobiografia de uma motorista de ônibus de Burlington foi tão lida que atraiu o interesse de uma editora.

Folha - Você pode citar outros livros igualmente curiosos?
Lockwood -
Um escritor chamado Albert Helzner nos encaminhou cerca de dez originais. A maioria deles defende uma tese sobre a origem do universo. Segundo Helzner, vivemos numa era pré-Big Bang: a grande explosão ainda está por vir e será desencadeada quando uma das pirâmides do Egito for iluminada por um raio de sol em um determinado ângulo. Também há dois livros que me chamaram muito a atenção. Um deles é um ensaio econômico que apregoa a falência do dinheiro e sugere, em troca, a adoção do "Sistema Areia", no qual as pessoas usariam areia como moeda. O outro é um livro que conta um dia na vida de um marinheiro que é a reencarnação de Elvis Presley. O desfecho é hilário: o protagonista morre em meio a uma tempestade cantando "Love me Tender". Posso lhe assegurar: é infinitamente melhor do que muita coisa publicada hoje nos EUA.

Folha - Por que separar os livros por potes de maionese?
Lockwood -
A idéia surgiu em uma reunião com os principais colaboradores da biblioteca. Brautigan dedicou um capítulo de seu livro mais famoso, "Pescar Truta na América", à maionese. Decidimos homenageá-lo e dividir fisicamente as diversas categorias por vidros cheios de maionese. Uma vez, um dos vidros de maionese que separam as prateleiras caiu no chão: o cheiro da maionese vencida foi tão insuportável que tivemos de fechar a biblioteca por um dia inteiro.

Folha - Os livros são divididos em quais categorias?
Lockwood -
Procurávamos um meio de agrupar os livros em temas, uma vez que era impossível dividi-los apenas em "ficção" e "não-ficção". Criamos, então, as séries "amor", "o futuro", "aventura" e "vida na rua". Alguns livros, porém, não se encaixavam em nenhuma dessas divisões. Daí surgiu a categoria "todo o resto".

Folha - A biblioteca contou com algum tipo de patrocínio?
Lockwood -
Nenhum. As funções eram desempenhadas por voluntários e amigos interessados em fazer aquela idéia se tornar realidade.

Folha - Vocês cobravam pelo envio dos originais?
Lockwood -
Cobrávamos uma quantia simbólica de US$ 50 [cerca de R$ 118]. Ela era usada para comprar estantes e pagar a encadernação padrão que fazíamos em todos os livros. Também sugeríamos a todos o envio, a título de colaboração, de um vidro de maionese.

Folha - Você vê algum futuro para a biblioteca, com o advento da internet e dos blogs?
Lockwood -
O conceito original da biblioteca é o de servir como uma fotografia da América comum. A internet e o fortalecimento dos blogs certamente irão transformar o mercado editorial. A meu ver, porém, ainda é cedo para mensurar o grau de mudança. Pode ser que as pessoas que tinham dificuldade em publicar seus livros escrevam suas histórias em blogs. Tenho uma certeza: nada substitui o livro, fisicamente falando. Por isso, não acredito na falência da Biblioteca Brautigan.

Folha - Por sua trajetória, você se considera um hippie que se transformou em um yuppie?
Lockwood -
Cresci numa família de classe média. Quando jovem, era cabeludo e me interessava pelos ideais dos anos 60. Fui ao festival de Woodstock, compactuava com aquele clima, embora não percebesse a importância daquilo no momento. Não me considerava um hippie. Gostava de ser guiado por minhas idéias e não pelas dos outros. Depois da faculdade, abri um estúdio comercial de fotografia. Hoje, trabalho com produtos que interessam a proprietários de Ferrari, de miniaturas a acessórios para o carro. Será que virei um yuppie?

Saiba mais
Brautigan Library www.eoiweb.com/brautigan/brautigan_ library.htm
Biblioteca Pública de San Francisco http://sfpl.lib.ca.us
Site dedicado a Richard Brautigan www.brautigan.net/brautigan



Próximo Texto: Sociais & cias.: Os invisíveis
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.